Justa causa e in dubio pro societate nas ações de improbidade

Leniência: força maior, imprevisão, função social e boa-fé (parte I)

Para quem é inocente, o só fato de ser réu numa ação de improbidade se revela sanção por demais gravosa.

Foi tendo bem presente, pois, a potência do instituto da improbidade e dos recursos a ele inerentes que o legislador inseriu na Lei 8.429/1992 não apenas a exigência de que a petição inicial se fizesse acompanhar de “documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade” (artigo 17, parágrafo 6º), mas um duplo filtro judicial (pré-autuação e pré-recebimento) capaz de eliminar, no nascedouro, persecuções sancionadoras desprovidas de justa causa.

Justa causa, a propósito, como corolário do devido processo legal, representaria o conjunto de indícios mínimos aptos a legitimar o regular exercício de uma pretensão sancionadora por parte do Estado. A devassa da vida pessoal e o constrangimento social de se figurar no polo passivo de uma demanda sancionadora ganham o acréscimo, na improbidade, da possibilidade de bloqueios e, até, de afastamento cautelar das funções, o que, em última análise, e inexistindo ato ímprobo, reverte em desfavor do próprio interesse público.

Daí por que entendemos que a justa causa se integraria à necessidade como parte do interesse processual[1], para o fim de tornar sua aferição, em improbidade, mais rigorosa, porque exigiria não só “o relato do ilícito, mas também a demonstração da existência de fortes indícios de sua ocorrência.”[2]

Mais bem explicando, em ação de improbidade, “a petição inicial (…) deve ser proporcionalmente mais substancial do que a de outras ações que não têm esta fase preliminar de admissibilidade da inicial em contraditório tão aguda. Nestas condições, a delimitação dos fatos, da causa de pedir, e a produção da correspondente prova (quando disponível de imediato) devem ser impecáveis, sob pena de comprometer, já de início, o seguimento da ação e, até mesmo, sua rejeição com apreciação de mérito.”[3] Ou seja, o parágrafo 6º do artigo 17 da Lei 8.429/1992 tem o condão de recrudescer a exigência já feita pelos artigos 319, III e IV, e 320 do Código de Processo Civil.

Apesar de tudo isso, como já pudemos pontuar anteriormente, a ação de improbidade parece ter se tornado refém de sua própria efetividade, com o crivo da justa causa sendo gradativamente automatizado até dar lugar ao in dubio pro societate como critério (ou ausência de) para recebimento da inicial. O que chama atenção, porém, é a origem obscura dessa tredestinação conceitual do princípio.

Na doutrina[4], não é incomum identificar uma associação daquela máxima, em sede de improbidade, à defesa do erário e do interesse público, a partir de uma leitura literal do parágrafo 8º do mesmo artigo 17. Essa tese, sem embargo, é antagonizada pelo raciocínio de que não deveria ser menos cara ao interesse público a tutela dos direitos fundamentais, entre os quais o contraditório corporificado no tema pela justa causa.

Indo além, cumpre rememorar que, conquanto censurável, a apropriação do rito da ação civil pública pela pretensão sancionadora por ato de improbidade produziu como resultado franquear ao Ministério Público a possibilidade de instauração de procedimento preliminar inquisitório[5] previamente ao eventual ajuizamento de ação. É dizer, a exigência de justa causa deveria ter sido na verdade agravada frente à possibilidade (ao menos para o órgão ministerial) de procedimento inquisitivo ao longo do qual lhe seria dado funcionar, antes, como juiz da sua própria pretensão, municiando-se de elementos para, então, deduzir ou não sua pretensão — em verdade, a possibilidade de inquérito onera o órgão ministerial em duas vertentes: se instaurado, e tendo resultado no ajuizamento de ação, deve ter tido o condão de municiar a inicial; não instaurado, quando poderia tê-lo sido, exige um crivo rigoroso da inicial, que deve ser robusta em que pese a não instauração prévia de procedimento para reforçá-la.

A par do exame criterioso já exigido pelo parágrafo 6º, a defesa preliminar ainda traz ingrediente adicional que subsidia o juízo de delibação, em favor de um exame lúcido e atento da inicial. Curiosamente, a introdução legislativa dessa etapa no rito da improbidade, segundo nos noticia a doutrina, se deu em resposta a um uso abusivo do instituto:

O objetivo do novo procedimento, que a princípio pode parecer repetitivo, é o de filtrar as ações que não tenham base sólida e segura, obrigando o juiz (…) a examinar efetivamente, desde logo, com atenção e cuidado, as alegações e os documentos da inicial (…). O instituto da defesa preliminar funciona como uma proteção moral para o agente público acusado, para quem o simples fato de ser réu pode implicar mancha na reputação.[6]

A despeito de tudo isso, o in dubio pro societate, mesmo sem previsão legal, receberia a chancela jurisprudencial para se tornar uma espécie de álibi argumentativo, um fundamento em si apto a desonerar fundamentações adicionais. Pedro Passos, em importante trabalho acadêmico[7] orientado por Rafael Araripe Carneiro, investigaria as origens do acolhimento judicial do princípio no Superior Tribunal de Justiça, identificando o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 842.768/PR, julgado em 2009, como aquele que primeiro se associou o princípio à seara da improbidade, ainda que para o fim de rechaçar honorários sucumbenciais em desfavor do Ministério Público. A incidência do brocardo para fins de justificativa de recebimento da inicial se daria também em 2009, mas no Recurso Especial 1.108.010/SC, de cujo acórdão constaria a seguinte passagem:

O objetivo da decisão judicial prevista no art. 17, parágrafo 7º, da Lei 8.429/1992 é tão-só evitar o trâmite de ações clara e inequivocamente temerárias, não se prestando para, em definitivo, resolver – no preâmbulo do processo e sem observância do princípio in dubio pro societate aplicável na rejeição da ação de improbidade administrativa tudo o que, sob a autoridade, poder de requisição de informações protegidas (como as bancárias e tributárias) e imparcialidade do juiz, haveria de ser apurado na instrução.

Dali em diante, até o final de 2019, Pedro Passos identificaria 149 acórdãos abordando o tema do recebimento da ação de improbidade à luz do in dubio pro societate. Desses julgados, 30 acórdãos (20,13%) reformaram decisões que deixavam de receber a petição inicial, 2 acórdãos (1,35%) reformaram decisões para determinar a extinção da ação por ausência de justa causa e 13 casos (8,72%) mantiveram decisões de rejeição — o saldo presumidamente diria respeito a acórdãos que se limitaram a pressupostos de admissibilidade recursal.

Se os números acima demonstram a consagração jurisprudencial do in dubio pro societate em sede de improbidade, a verdade é que a posição produziria ainda outros desdobramentos, como a relativização da nulidade decorrente da ausência de notificação para apreciação de defesa preliminar.[8] O paradoxo que se instaura, pois, é o de criar presunção relativa em desfavor do requerido no que concerne ao recebimento da ação e à sua convolação em réu, ao mesmo tempo em que também se inverte em seu desfavor o ônus da demonstração de eventual prejuízo oriundo da não oportunização sequer da chance de se desincumbir daquele primeiro ônus (!).

Em outras palavras, a jurisprudência, placitando a banalização do recebimento da inicial de improbidade, criou premissa segundo a qual a defesa preliminar, presumidamente, não faria diferença, cabendo ao réu demonstração de prejuízo, o que, na prática, é inútil, eis que, revelados argumentos que convenceriam sobre o potencial da defesa para impedir o recebimento da ação, o resultado seria a extinção do feito com fundamento no parágrafo 11 do artigo 17, tornando inócuo o reconhecimento de qualquer nulidade. Por tudo isso, estamos com a parcela da doutrina que entende que a demonstração de prejuízo pela não oportunização de defesa preliminar é prova diabólica[9], devendo a falta ser tratada como verdadeira nulidade absoluta.[10]

Concluindo, não pretendemos subverter o parágrafo 8º do artigo 17, mas lê-lo em seus termos, à luz da justa causa como parte integrante do interesse processual e corolário do devido processo legal, além de tomar em conta os instrumentos disponíveis para que uma inicial de improbidade seja robusta, consentânea com o crivo mais rigoroso por que passa em relação às demais ações. Na esteira disso, temos que o “convencimento” exigido para a rejeição liminar da inicial deve ser harmonizado com a cognição sumária e com a delibação da etapa em que ocorre; um convencimento, portanto, pautado em (in)verossimilhança e (im)probabilidade. Ainda que assim não seja, o que seguramente não podemos conceber é uma automatização do juízo de admissibilidade em sede de improbidade sob o color de um in dubio pro societate, que, a pretexto de fundamentar, não fundamenta. Que a admissibilidade seja real, e não ilusória.

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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