João Felipe Assis: A PEC do Orçamento de Guerra e o Bacen

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Aprovar a PEC 10/2020, também conhecida como PEC do Orçamento de Guerra, tem sido visto como essencial para o combate à crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19. Ela acrescenta o artigo 115 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Entre outras disposições ela permite que o Banco Central (Bacen) compre títulos em mercados secundários de instituições não financeiras. Isso tem causado preocupação em certos setores, pois existe o medo de que a nossa autoridade monetária comece a descuidar da estabilidade monetária e sofra uma captura pelo governo.

Em diversos países com independência legal da autoridade monetária levantam-se dúvidas sobre a legitimidade dessas burocracias com tantos poderes. No caso brasileiro, em que o Bacen não tem uma independência legal, foi levantado o risco de esse órgão ser capturado pelo governo e, usando seus novos poderes, colocar em risco a estabilidade monetária adquirida desde o Plano Real.

Antes de tudo, temos de entender o porquê de uma autoridade monetária independente. Alan Blinder, ex-dirigente do FED (banco central dos EUA), defende de maneira paradigmática esse arranjo. O controle da inflação é uma meta de longo prazo e os governos teriam foco no curto prazo nomeadamente, no calendário eleitoral. Em diversas situações, a estabilidade monetária exige sacrifícios no curto prazo, algo que os políticos poderiam se recusar a fazer em virtude de uma eleição próxima. Por isso, assim como Ulisses pede para ser amarrado pela sua tripulação para não ser seduzido pelas sereias em A Odisseia, os governos se amarram a um corpo técnico independente: o Banco Central. Nesse arranjo, o Bacen deveria cumprir as metas estabelecidas em lei pelos agentes políticos, mas teria liberdade na forma de executar essas metas. Para isso, os dirigentes dos bancos centrais teriam mandatos fixos [1].

Em resumo, o governo oferece esse poder a uma burocracia não eleita, mas exige transparência e limita sua competência a um tema específico. Em regra, os Bancos Centrais só guardam pela estabilidade de preços e, subsidiariamente, pela higidez do sistema financeiro. Ousar ir na contramão desse modelo seria flertar com a possibilidade de crises inflacionárias.

A história brasileira contribui para esse entendimento. A Lei 4595/64 previa independência e mandatos fixos paras os dirigentes do Bacen. Contudo, alterações ulteriores nos governos militares (em especial durante o governo Costa e Silva) retiraram essa independência legal e usaram o Banco Central para financiar o governo [2]. O resultado disso foram as décadas de hiperinflação. Esse problema só foi controlado pelo Plano Real, que estabeleceu uma independência de fato, mas não alterou a Lei 4595/64. Ou seja: o Bacen não é formalmente independente.

No ano passado, o governo enviou uma proposta de lei completar (PLP 112/19) para conferir mandatos fixos à diretoria do Bacen e fixar como seus objetivos a estabilidade de preços e a proteção do sistema financeiro. A crise do coronavírus virou essa pauta de cabeça para baixo e a ordem do dia passou a ser impedir uma depressão econômica. A PEC do Orçamento de Guerra vai nesse segundo caminho.

Como dito anteriormente, ela autoriza o Bacen a comprar títulos no mercado com autorização do Ministério da Economia e devendo avisar ao Congresso quando faz isso. Isso contorna uma proibição do parágrafo 1º do artigo 164 da Constituição, que proíbe que o Banco Central empreste para instituições não financeiras [3].

Essa ideia não vem do nada. Na crise de 2008, os bancos centrais agiram comprando diversos títulos no mercado financeiro injetando liquidez no mercado e emitindo dinheiro “do ar”, algo admitido pelo próprio presidente do FED da época, Ben Bernanke. Esse fenômeno ficou conhecido como quantitative easing (QE). Havia uma expectativa de que, após dez anos da crise, fosse deixada para trás essa alquimia de criar dinheiro. Christine Lagarde, a atual presidente do BCE (Banco Central Europeu), assumiu o cargo prometendo rever a política de QE, mas o coronavírus a fez voltar atrás e injetar 750 bilhões de euros na economia via QE. Nessa crise, o FED está operando para salvar as pequenas empresas e o Bank of England assumiu que irá financiar o governo com emissão de moeda.

O Brasil, como já foi visto, tem proibições constitucionais de operações de financiamento com as instituições não financeiras. Por isso, a PEC do Orçamento veio para flexibilizar essas restrições. Mas isso não ameaça a estabilidade alcançada desde o Plano Real? É importante tomar algumas lições da nossa história monetária para ter uma resposta a essa pergunta.

O cientista político americano Matthew Taylor, em um estudo sobre o Bacen, aponta um dado interessante: as principais mudanças nessa instituição ocorrem sem grandes mudanças legislativas ou momentos disruptivos [4]. O golpe de 64 criou a lei que instituiu o Bacen e lhe conferiu independência, tirada já no segundo governo militar sem alterar a Lei 4595/64 por completo. A Constituinte de 88 estabeleceu essas proibições ao Bacen e nem assim a inflação conseguiu ser controlada até o Plano Real, que não estabelece de maneira formal a independência de nossa autoridade monetária. Ou seja, há algo mais do que o Direito Positivo no tema da independência dos Bancos Centrais a ser levado em conta.

Bruce Ackermann, professor de direito constitucional de Yale, em seu artigo “A nova separação dos poderes”, sugere que instituições como os Bancos Centrais devam ser incluídos nos desenhos de separação de poderes. Isso porque o núcleo da doutrina da separação de poderes seria da limitação do poder, e não ter três poderes especificamente [5]. Nesse tema, os juristas brasileiros têm debates similares com instituições como o Ministério Público e os Tribunais de Contas.

A PEC do Orçamento de Guerra inclui o Bacen nesse desenho maior. Nos parágrafos do novo artigo 215 dos ADCT, a necessidade de o Bacen informar seus atos nessa crise confere poderes ao Congresso Nacional para sustar as decisões desse órgão. Isto é, existe a previsão de um controle do Legislativo para impedir a captura do Bacen pelo governo no desenho da PEC, ou seja, na própria Constituição.

Evidentemente, isso não é garantia de que não haverá uma captura, afinal como a nossa história mostra os grandes arranjos institucionais não são o suficiente para garantir a estabilidade monetária. Apesar disso, esse é um risco necessário se quisermos combater a crise econômica provocada pela pandemia. O foco parece ser passar a enxergar o Bacen não apenas como um tema para economistas, mas também para o direito constitucional.

Mesmo com o fim da crise (que há de chegar), ainda haverá o dilema enfrentado em países com Bancos Centrais independentes: depositar um grande poder em uma autoridade não eleita. Acreditava-se que as autoridades monetárias não fariam outro QE depois de 2008, mas as crises são imprevisíveis.

O Bacen é um tema que ainda ocupará o nosso debate jurídico. Aliás, em um certo tom de blague, os juristas já estão no centro desse debate mesmo sem perceber. Jerome Powell, presidente do FED, e Cristine Lagarde, presidente do BCE, (dois dos maiores Bancos Centrais do mundo) não são economistas de formação, mas juristas. Falta agora o restante da comunidade jurídica ingressar no debate e se debruçar sobre o Banco Central com a atenção que ele merece. Isso será essencial para que a PEC do Orçamento de Guerra não ameace a independência do Bacen.

 


[1] BLINDER, Alan. Bancos centrais: teoria e prática, São Paulo: Ed. 34, 1999.

[2] FRANCO, Gustavo. A Moeda e a Lei. São Paulo: Zahar, 2017.

[3] cf. Constituição Federal: Artigo 164. A competência da União para emitir moeda será exercida exclusivamente pelo banco central. § 1º. É vedado ao banco central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira.

[4] TAYLOR, Matthew. Institutional Development through Policy—Making: a Case Study of the Brazilian Central Bank. World Politics 61—3 (2009): 487—515.

[5] ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review 113 (2000): 633–729.

 é mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e licenciado em Direito pela Universidade de Lyon III — Jean-Moulin, na França.

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