Barreto e Flores: A relação entre racismo, violência e ensino jurídico

Rocha Rossi: Como ficam os pagamentos de mensalidades escolares?

Buscaremos responder a essa pergunta a partir de um episódio ocorrido no dia 11 de maio envolvendo a postagem de uma conhecida escola preparatória para concursos públicos na rede social Instagram. Essa escola, contando com cerca de 1,2 milhão de seguidores somente nessa rede social, utilizou-se de uma questionável estratégia de marketing. O post, já apagado da página oficial da escola, trazia um vídeo no qual um homem negro, sem camisa, carregava uma jovem, branca, aparentemente também sem roupa, em seus ombros. O sujeito aparecia seguido por diversos homens, todos negros, todos descamisados. Na captura da imagem aparecia, como legenda, sobre a cabeça da jovem, a expressão “concurseiro”. Os homens, por sua vez, apareciam identificados com a legenda “Examinadores do Cespe”. A imagem parecia assim sugerir que os homens a levavam para um quarto para violentá-la. Depreende-se a violência não apenas pelo conteúdo do vídeo, mas pelo nome do local atribuído pela escola no Instagram: “Casa da Dor e do Sofrimento” [1].

O racismo é perpetrado diariamente de diferentes modos, revestindo-se dos mais variados formatos. Este lamentável episódio, por exemplo, representa um caso típico de “racismo recreativo”, expressão utilizada por Adilson Moreira para denominar aquelas práticas que expressam o desprezo por minorias raciais sob a forma de humor [2]. Moreira, ao longo dessa obra, vai nos mostrar como o racismo é um fenômeno complexo, marcado por diversas dimensões (social, psicológica, comunicacional…) que não devem ser ignoradas.

Ora, postagens como essa buscam normalizar e naturalizar, por meio do recurso ao humor, as mais diversas representações discriminatórias. Nesse caso em particular, na descrição do vídeo, a escola sugere que o concurseiro estabeleça aquilo que denomina de “retaguarda de conhecimentos” (retaguarda, no caso, sublinhe-se, como sinônimo de bunda, traseira) para que “aguente a profundidade com que a banca introduz os conteúdos e as diversas posições doutrinárias”  banca de examinadores representada pelos homens negros. “E aí”, dizem os autores do post, “…a situação fica preta”. E, para o concurseiro, “não passar por isso e nem levar trolha na prova”, a escola sugere que seus alunos compareçam à live marcando aqueles amigos que já passaram por este “momento tão doloroso”.  

Vale observar como, em uma única postagem, a escola traz diversas representações problemáticas. De um lado, discrimina gênero, ao retratar a mulher como um ser frágil, indefeso, simbolizado pela jovem branca. De outro, discrimina raça, ao relacionar a presença de negros a dificuldades (“a situação fica preta…”) e à dor perpetrada pelos estupradores na “casa da dor e do sofrimento”. Assim, a escola recomenda que, para que não sejam violentados e sucumbam (“levar trolha na prova”), os concurseiros assistam às lições ministradas pelos professores. “Trolha” é uma colher utilizada para rebocar paredes, muros, remetendo, assim, ao ofício de pedreiros. E, embora possua outros nobres e louváveis significados, trolha, nesse contexto, possui uma conotação negativa: remete a surra, briga e dor.

Como fica estranho uma escola preparatória para concursos dirigida que está à formação de futuros delegados, juízes, etc. ser enquadrada no crime de racismo (Lei Nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989), a postagem foi rapidamente apagada após a repercussão negativa em meio aos usuários do Instagram. Contudo, sabemos, a internet é um bom repositório de lembranças. Sejam boas ou más.

No caso em análise, mesmo depois de apagado o infeliz post, o episódio foi mitigado por meio de deboche dos administradores do Instagram da escola ante os comentários inflamados de usuários e usuárias que viam, na postagem, expressões claras de racismo e sexismo. Mitigações, do ponto de vista dos “Estudos Críticos do Discurso” de van Dijk [3], podem ser entendidas como formas de negação do racismo. Ou seja, amenizam-se, minimizam-se ou empregam-se eufemismos para descrição das próprias ações negativas. As críticas dos membros do Instagram foram, assim, classificadas como “mimimi” pela própria escola [4].

Segundo Joana Plaza Pinto, a expressão “mimimi” pode facilmente ser “substituída por diminuir o ato de fala de uma pessoa'”, se não aceitamos o mentalismo internalista da expressão “manifestação de ideias” [5]. Ou seja, práticas de racismo e sexismo são muitas vezes entendidas como choro ou ranço dos descontentes. Mas não se trata disso, naturalmente. Estamos diante de claras violações a direitos humanos embora saibamos que os direitos humanos também são entendidos como “mimimi” por muitas pessoas, inclusive juristas. Porém, não podemos esquecer que estratégias de mitigação entram em campo geralmente naquelas “situações sociais nas quais as normas relevantes são mais fortes. Desse modo, podemos presumir que quanto mais rígidas forem as normas contra a discriminação e o racismo mais pessoas tenderão a recorrer a negações e também a mitigações” [6].

Mas o que leva um fato como esse ocorrer em um estabelecimento educativo, que deveria dar exemplo em termos de educação? Trata-se de um fenômeno psico-social que revela um grave problema educacional, que afeta todas as suas modalidades. Nessa perspectiva, talvez dois dos principais aspectos dessa problemática sejam a banalização da importância da educação e a banalização das manifestações autoritárias, discriminatórias e preconceituosas [7].

A banalização da educação se revela na medida em que ela não é explorada em sua íntegra. Desde os gregos, pode-se conceber a educação basicamente em três perspectivas complementares: a) a educação técnica; b) a educação ética; e c) a educação política.

Em pleno século XXI, um dos principais equívocos é a educação ser simplificada e reduzida predominantemente aos seus aspectos técnicos. Ao acentuar basicamente um aspecto parcial, a técnica, a tendência é de se instrumentalizar processos, desumanizando as relações, do ponto de vista de reconhecer o outro como um igual na relação.

A filosofia, através da qual se poderia pensar as perspectivas éticas e políticas, é muitas vezes menosprezada e esvaziada em sua importância. Essa instrumentalização afasta todos os questionamentos que eventualmente poderiam revelar as insuficiências e distorções no processo de ensino, como no caso relatado, as diversas manifestações de violências simbólicas contra negros e mulheres [8].

O problema é que qualquer processo de ensino que careça de um suporte reflexivo filosófico não permite nem que se compreenda as implicações de uma questão mais complexa. O que muitas vezes ocorre são tentativas de minimizar a gravidade das questões, como sinalizamos anteriormente. Isso, além de revelar traços de discursos marcadamente autoritários, também demonstra uma grande incapacidade compreensiva, observada na tentativa de normalização e naturalização de posturas absurdas, preconceituosas e autoritárias.

Convém recordar aqui à famosa frase de Bertold Brecht “a cadela do fascismo está sempre no cio”, chamando atenção sobre o fantasma do fascismo que pode sempre estar rondando silenciosamente as consciências exaustas pelas crises políticas e sociais, que aprisionam as suas insatisfações, aguardando alguém para culpar e descarregar toda energia de ódio e agressividade. Da mesma forma, Umberto Eco nos chama atenção mencionando que “o Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, as vezes em trajes civis” [9]. E continua alertando que “o Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas a cada dia, em cada lugar do mundo” [10].

Apesar dos avanços em legislações sobre direitos humanos, tanto em âmbito nacional como internacional, o ser humano parece ainda estabelece uma animalidade que volta e meia emerge e se expressa através das mais diversas formas de violência, paradoxalmente revelando uma estranha atração pelo prazer com a dor do outro. Isso é mais um indicativo de que vivemos um contexto autoritário, que gera empoderamento de personalidades violentas desencadeando as mais variadas manifestações de ódio e descaso com as diferenças [11].

Para enfrentar esses desafios, convém também recuperar as reflexões trazidas por Theodor Adorno em sua obra “Educação e Emancipação”, que traz o texto cujo título é: “Educação após Auschwitz“. Já no início do texto, Adorno afirma que “qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita” [12]. Sugere a importância de pensar a educação concebendo toda a conjuntura e estrutura social, que por sua vez compreende inclusive condições materiais e estruturais.

Nesse sentido temos a oportunidade de constatar que uma educação meramente técnica pode em si ser uma violência ao desenvolvimento humano por negligenciar outras dimensões da educação e condenar o aluno a uma educação para manter certa ignorância, que, por sua vez, impede o desenvolvimento mais pleno e complexo, algo que fará falta no futuro. Mas talvez possa ser tarde.

Para tanto, é preciso de um ensino jurídico comprometido com o verdadeiro conhecimento (e não com fórmulas prontas, decorebas e piadas) a fim de esclarecer tanto sobre direitos e deveres do cidadão, como também sobre aspectos éticos e morais.

Assim, pode ser possível se superarem eventos cada vez mais frequentes de demonstração daquilo que Hannah Arendt definiu como a banalidade do mal [13]. É preciso, pois, de uma educação em geral e, sobretudo, de um ensino jurídico capaz de ensinar para o desenvolvimento de cidadão emancipado, que possa se comprometer tanto com a valorização dos direitos fundamentais, como com a melhoria de estruturas e instituições que não admitem em seus quadros apenas bons técnicos, mas cidadãos com boas noções sobre valores éticos e morais.

Para que não precisemos ver violência, discriminações e violações de direitos justamente por parte de quem deveria evitá-las, devemos alertar para o perigo da banalização do ódio. Devemos exigir a responsabilidade e o respeito com as diferenças. Essa é uma condição fundamental e básica quando se pensa em desenvolver a necessária capacidade de conviver com o outro em um contexto civilizatório.

 é professor convidado da Escola de Direito da Universidade do Minho, Portugal, e doutor em Direito.

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