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O tema nunca foi fácil, mas, em tempos de pandemia, a tarefa de bem interpretar a Constituição e expor o papel de cada ente federado e os limites de suas respectivas competências ostenta ares de desafio.

Esse texto pretende contribuir com o debate e parte da premissa de que a avaliação jurídica da questão não deve ser influenciada por preferências políticas, proposições utilitaristas ou discursos voltados à ideia, bastante errada, de que a excepcionalidade dos tempos pode ser usada como instrumento de salvaguarda de medidas contrárias ao ordenamento.

Parafraseando Rui, fora da Constituição não há salvação. Se a atual Constituição não contempla instrumentos eficazes para que o Estado possa combater a pandemia, que seu texto seja alterado pelo Poder Legislativo, com o estrito cumprimento das regras que permitem reformas constitucionais, e não através de interpretações subjetivas e voluntaristas que, por mais bem intencionadas que sejam em um primeiro momento, nada mais são do que a abertura perigosa ao arbítrio.

Assim, o ponto de partida não pode ser outro, senão o texto constitucional que, em seu art. 23, II, estabelece competência administrativa comum aos entes da federação para “cuidar da saúde”, competência executiva essa que deve ser exercida com base em legislação criada de modo concorrente por todos eles, nos termos de seu art. 24, XII, sobre “proteção e defesa da saúde”.

Aos entes caberá, assim, a adoção de medidas administrativas para a promoção da saúde, sendo-lhes outorgada, ainda, a aptidão para legislar concorrentemente sobre o tema. No contexto das competências legislativas concorrentes, por expressa disposição constitucional (art. 24, § 1º), cabe à União editar normas gerais, cuja função primordial é a de harmonizar a produção de normas e o agir administrativo por parte de todas as pessoas políticas. Afinal, é preciso respeitar o princípio federativo e a autonomia dos entes subnacionais, mas não se pode esquecer que as competências federativas precisam ser exercidas em prol da nação como um todo.

A figura das normas gerais, não apenas em matéria de saúde pública, mas também, por exemplo, na seara tributária, é de fundamental importância para que o princípio federativo seja respeitado, bem como a autonomia dos entes preservada: de um lado, promovem os meios necessários para que as diretrizes mestras sejam exercidas em prol do país, e, de outro, quando interpretadas em conjunto com outras regras constitucionais (vg., o art. 30, I, que fala da competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local), oferecem mecanismos para que as competências das pessoas jurídicas de direito constitucional interno não sejam reciprocamente vilipendiadas.

A Constituição não define de modo expresso o que são normas gerais, mas há relativo consenso quanto ao entendimento de que são regramentos que produzem efeitos para todas as unidades federativas, devendo criar balizas para que as normas por estes editadas possam atuar com alguma uniformidade. São, assim, normas sobre produção normativa.

A competência legislativa concorrente, portanto, prevê um mecanismo de equilíbrio e harmonização nacional dentro da Federação, sendo este papel exercido pela União mediante edição de normas gerais que podem ser veiculadas por lei ordinária ou complementar, a depender da matéria envolvida.

Parece-nos que essa é a única forma juridicamente admissível de se interpretar os conteúdos normativos veiculados pela Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que “dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

Muito embora o corpo da lei não mencione em qualquer passagem o fato de estar editando normas gerais em matéria de proteção à saúde, a conclusão é nesse sentido, a despeito da deficiente técnica legislativa observada no texto de seu art. 3º, cuja má-redação (“as autoridades poderão adotar”) deu ensejo à proliferação de Decretos Estaduais e Municipais adotando diretamente algumas das medidas ali elencadas – à míngua, em muitos casos, de leis estaduais ou municipais.

Com efeito, no sistema da legislação concorrente vigente entre nós, Governadores e Prefeitos não estão autorizados a buscar fundamentos de validade de seus Decretos diretamente de lei que prescreve normas gerais, sendo fundamental a edição de leis específicas em âmbito estadual e municipal.

Aqui ainda cabe a ponderação de que o enfrentamento à pandemia dificilmente contemplará medidas que possam ser enquadradas como de interesse estritamente local, o que impõe um diálogo intenso entre os Municípios e seus respectivos Estados de modo a evitar-se sobreposições de competências.

No ponto, o exemplo das restrições ao comércio impostas por diversos Decretos Estaduais e Municipais – em alguns casos, inclusive, com choques frontais entre eles – escancara o potencial conflito federativo, a ser resolvido por uma avaliação do texto constitucional.

Muito embora o Supremo Tribunal Federal tenha jurisprudência pacífica no sentido de caber ao Município fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial (Súmula Vinculante nº 38) e esse entendimento tenha amparado diversas decisões judiciais durante a crise sanitária que afastaram restrições impostas pelos Estados, a matéria merece melhor análise. A fixação do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais pode deixar de ser de interesse local em vista de circunstâncias específicas como a que estamos vivenciado com a pandemia. A liberação ou fechamento total do comércio deixa de ser de interesse local justamente porque a proliferação da doença em um Município pode ser vetor de risco para todo o Estado e, não se pode deixar de argumentar, para todo o país.

O papel da União, vale dizer novamente, é o de editar normas gerais, que servirão de balizas normativas aos parlamentos estaduais e municipais. É, por assim dizer, legislação que ocupa uma posição intercalar. É lei nacional, e não meramente federal. Os órgãos legislativos dos entes subnacionais, sim, ostentam legitimidade constitucional para inserir em seus respectivos ordenamentos as tão severas medidas que vem sendo adotadas Brasil afora, o que, registre-se, evidentemente não afasta a possibilidade de controle de constitucionalidade das medidas em si, no que toca, por exemplo, a possíveis invasões competenciais ou eventuais ofensas a princípios constitucionais como a proporcionalidade ou a liberdade econômica.

Ao apreciar a cautelar postulada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na mesma ADPF nº 672, o Ministro Relator deixou expressamente assentado que as “regras de repartição de competências administrativas e legislativas deverão ser respeitadas na interpretação da Lei 13.979/2020, do Decreto Legislativo 6/20 e dos Decretos presidenciais 10.282 e 10.292, ambos de 2020, observando-se, de ‘maneira explícita’, como bem ressaltado pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO, ao conceder medida acauteladora na ADI 6341, ‘no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente’”.

Findou o Ministro Alexandre de Moraes, portanto, por conceder a medida cautelar a fim de determinar a fiel observação dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição, que tratam respectivamente: i) da competência comum das unidades federadas para cuidar da saúde e para promover programas de saneamento básico; ii) da competência concorrente dos entes para legislar sobre defesa da saúde; iii) da competência dos Município para legislar sobre assuntos de interesse local; iv) da descentralização, com direção única em cada esfera de governo, do Sistema Único de Saúde.

Além do estabelecimento de normas gerais, cabe também à União, através da edição de lei complementar, editar o que se pode chamar de normas de cooperação no âmbito da competência administrativa comum. Nos termos do parágrafo único do art. 23 da Constituição, cabe a União editar normas de cooperação entre os entes federados, “tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”, o que permitiria que o Congresso Nacional viesse a estabelecer como e quem pode desempenhar um papel de coordenação efetiva das medidas federais, estaduais e municipais que vêm sendo adotadas no combate à pandemia.

Em vista dos tempos em que vivemos, é importante consignar que nada do ponto de vista constitucional impede que essa coordenação a ser estabelecida por lei complementar seja realizada por um órgão ou comitê criado especialmente para o combate à pandemia e com participação de membros dos Estados federados e da União, sem que essas medidas de coordenação sejam outorgadas de modo individual a quaisquer Chefes dos Poderes Executivos.

De modo bastante direto: ofende à ideia de federalismo cooperativo que pessoas estejam morrendo em um Estado por falta de respiradores enquanto em outro Estado eventualmente sobrem vagas em unidades de tratamento. Não faz sentido, perante o modelo federativo positivado no Brasil, que máscaras de proteção e equipamentos estejam em falta em um Município, mas estejam largamente estocadas pela Secretaria de Saúde de outro. É preciso que haja uma coordenação central, com avaliação dos recursos que o país dispõe, forma eficiente de alocação e possível distribuição dos doentes ao longo de toda a rede pública de saúde.

A Federação brasileira enfrenta há muitos anos a chamada guerra fiscal, causando danos econômicos relevantes ao país. Não se pode tolerar uma guerra fraticida por saúde. A federação e a autonomia de cada um dos Estados e Municípios têm de ser respeitada, mas a Constituição – mediante a permissão para que a União edite normas gerais e discipline a forma de cooperação administrativa entre os demais entes da federação –, conforma juridicamente o caminho para que a reação à pandemia seja nacional, e não regionalizada.

As correlações entre federalismo e seus impactos no combate à pandemia da Covid-19 têm sido objeto de reflexões em outros países, especialmente nos Estados Unidos, tomados como exemplo de nação em que as autonomias e competências de entres subnacionais são reconhecidas e respeitadas. Não há, no entanto, um arquétipo absoluto de federalismo, cabendo a cada país, em vista de suas particularidades, construir o seu melhor modelo de federação.

No Brasil, o pacto federativo construído em 1988 tem sido testado em muitas oportunidades, não sendo poucas as vezes que se propugnou pela refundação da federação brasileira.  Não há dúvida de que o nosso modelo merece reparos e foi sendo desgastado por medidas diretas e também indiretas de menoscabo ao federalismo cooperativo.

Urge, portanto, que a União exerça sua competência constitucional para, via edição de normas gerais e normas de cooperação, harmonize e defina a forma de coordenação dos esforços de todos os entes no combate a esse que parece ser o maior desafio a ser enfrentado, até agora, por nossa geração. Que o enfrentemos como nação, e não como um conjunto embaralhado de entes federados.

 é advogado, professor de Direito Financeiro e Tributário da UFBA e do Ibet, doutor pela USP e mestre pela PUC-SP. Presidente do Instituto de Direito Tributário da Bahia (ITB).

 é advogado e consultor jurídico do TCE-RN, professor do Ibet, onde é coordenador (Natal-RN). Mestre pela PUC-SP e vice-presidente do Instituto Potiguar de Direito Tributário (IPDT).

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