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A Covid-19 será um divisor de águas para a vida em sociedade como um todo. Com o Direito Administrativo não seria diferente. Entre a gama de cenários jurídicos que emergem fruto dessa pandemia, um que se mostra da mais alta essencialidade diz respeito à responsabilidade extracontratual do Estado, em particular quando se apuram as inúmeras medidas envolvendo restrições ao funcionamento normal de estabelecimentos comerciais (lockdown, toques de recolher, restrição ao horário de funcionamento e/ou ao número de clientes atendidos, imposição de medidas sanitárias, determinação de afastamento social e uso de máscaras, entre outras).

A questão da responsabilidade estatal decorrente de medidas que acabam impondo restrições a liberdades, em especial as afetas ao exercício da atividade comercial, deve ser analisada com cautela. Há situações variadas que precisam ser consideradas. Um primeiro aspecto é quando essas restrições adotadas pelo Estado pairam no campo da ilicitude.

Nesta hipótese a infração ao ordenamento jurídico pode se mostrar de maneiras diversas: a) a violação pode ser decorrente de uma inconstitucionalidade, envolvendo a violação à repartição constitucional de competências. Esse talvez tenha sido um dos grandes problemas enfrentados durante está pandemia, qual seja, compreender os limites e formas de atuação de um Estado federado como o brasileiro, entendendo o conteúdo das competências atribuídas aos entes federados pela Constituição. Há casos reais verificados em que determinado estado estabeleceu a proibição do funcionamento de certa atividade por meio de um decreto e um município deste Estado, por meio também de um decreto, autorizou essa mesma atividade. A qual determinação estatal atender? Aqui resta evidente que algum dos entes políticos extrapolou de alguma forma os limites da regulação no âmbito da sua competência. Em síntese, uma primeira ilegalidade decorrerá da apuração da violação da repartição de competências no que tange à adoção de medidas para fins de contingenciamento da Covid-19; b) um segundo aspecto diz respeito à proporcionalidade das medidas adotadas. Se de um lado é certo que o Estado é detentor do poder de limitar a propriedade e a liberdade, dentro de uma relação de poder de polícia e de supremacia do interesse público, também é correto que esta atuação estatal precisa ser exercida de maneira proporcional, sob pena de se tornar abusiva e, por conseguinte, antijurídica. Será que o fechamento de todo e qualquer estabelecimento, sem que se faculte medidas alternativas de funcionamento, com protocolos sanitários adequados a cada setor, seria proporcional? Além disso, quais as penalidades aplicáveis em caso de não cumprimento dessas medidas restritivas? Estariam limitadas pela proporcionalidade? e c) o abuso pode advir não da medida restritiva em si, mas da forma que ela acaba sendo cumprida e exigida pelo poder público. Imagine-se agentes públicos que vão fiscalizar o atendimento a um toque de recolher imposto pelo Estado. Caso aqueles humilhem os cidadãos, agredindo-os, física ou verbalmente, haverá um evidente abuso de direito (conduta ilícita).

Nesses casos de ilicitude, a responsabilização estatal nos parece mais clara e óbvia. Nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, o Estado responderá na modalidade objetiva, cabendo ao particular comprovar a conduta do Estado, o dano (certo e jurídico) e o nexo de causalidade (direto e imediato).

Por outro lado, em não se averiguando nenhuma ilicitude nas restrições tomadas pelo Estado, haveria como ele ser responsabilizado?

Deve-se lembrar, tratando-se de lição comezinha entre os administrativistas bem como na jurisprudência pátria, que, em tese, o Estado também pode ser responsável pela prática de condutas lícitas. A melhor doutrina aponta que o fundamento de tal responsabilização é o princípio da isonomia, no sentido de que, se uma conduta lícita do Estado gera benefícios a toda a coletividade, não seria isonômico que somente um sujeito ou um grupo de sujeitos determinados arcasse com praticamente todos os ônus decorrentes do ato estatal. A responsabilização do Estado representaria, então, uma repartição desses ônus. Ocorre que, para que haja esse reconhecimento, é necessário que o dano sofrido pelos particulares apresente algumas características próprias. Além de ter que ser certo e jurídico (exigência presente também para a responsabilização do Estado por atos ilícitos), o dano precisaria ser especial (onere determinado ou determinados particulares, não sendo um dano genérico) e anormal (aquele que ultrapassa os meros agravos patrimoniais inerentes ao convívio social).

Feitas essas considerações teóricas preliminares, resta então saber se as restrições à atividade comercial, que sejam enquadradas como lícitas, poderiam ser enquadradas como indenizáveis ou não. Veja que quanto ao aspecto do dano anormal nos parece aceitável que ele se encontre presente. Não se pode ter como algo rotineiro ou esperado da vida em sociedade ter que manter seu estabelecimento comercial fechado por semanas, talvez meses. Ou ter que reduzir para até 30% o número de clientes atendidos por vez, por exemplo.

O ponto-chave reside justamente no quesito da especialidade do dano. Com a proporção que a pandemia atingiu, aliada às medidas estatais adotadas por quase todos os estados e municípios brasileiros, verifica-se que o dano não atingiu só um sujeito ou grupos específicos e determinados de sujeitos. A atividade comercial como um todo foi afetada. Alguns tiveram danos maiores, outros menores, mas aproximadamente todos (com exceção de setores pontuais, como fabricantes de álcool em gel, por exemplo) tiveram algum tipo de dano em razão das medidas de contingenciamento adotadas pelo Estado. Nota-se que o aspecto da especialidade fica fluido, uma vez que temos um dano compartilhado por praticamente toda a população. Além disso, lembrando-se do fundamento da responsabilidade por ato lícito, a igualdade ou isonomia, ela perderia o sentido no momento em que se apura que a sociedade como um todo sofreu danos. Responsabilizar o Estado, neste caso, seria ampliar a repartição do ônus com todos que já estão a sofrer danos.

Ademais, levando-se em consideração a previsão do artigo 21 da LINDB, que traz a necessidade de se levar em conta as consequências jurídicas e administrativas no momento de se proferir uma decisão judicial (dentro dos limites jurídicos, para não se cair em uma ideia puramente pragmatista), apura-se que, caso se permita, de maneira irrestrita, uma responsabilidade do Estado por ato lícito, tendo em vista que as medidas restritivas estatais afetaram praticamente toda a população, o Estado estaria figurando, utilizando-se de uma expressão corrente, como um “segurador universal”, que teria que indenizar cada indivíduo, o que, diante do cenário atual, mostrar-se-ia faticamente impossível, ainda mais quando se recorda que quem financia o Estado, essencialmente, são os cidadãos por meio do pagamento de tributos.

A síntese, portanto, é que, diante do cenário global da pandemia e que as medidas estatais adotadas afetaram a sociedade como um todo, tornando-se fluida a questão da especialidade do dano eventualmente sofrido, como regra não há como se pensar em responsabilização do Estado pelos atos estatais lícitos de contingenciamento. É evidente que a casuística pode trazer novos contornos, porquanto, analisando-se casos concretos específicos, pode-se apurar que as restrições pelo Estado trouxeram a sujeitos determinados danos extremamente gravosos, muito superiores aos sofridos pelo resto da sociedade, o que permitiria analisar (a depender do conjunto probatório) se seria o caso ou não de o Estado vir a ser responsabilizado. Mas, diante do atual cenário, estas hipóteses seriam excepcionais.

De qualquer maneira, a melhor forma de atuação do Estado nesses casos será, sem sombra de dúvida, agir por meio de uma administração consensual. Primeiramente, cabe ao Estado adotar medidas (tributárias, administrativas, previdenciárias, assistenciais etc) que visem a minimizar as perdas sofridas pelos particulares. Por outro lado, também se faz imprescindível que Estado e particulares façam concessões mútuas, na via administrativa, principalmente, de modo a acordarem eventuais pagamentos de cunho indenizatório ou medidas compensatórias, de comum acordo.

Em algumas palavras finais, o cenário implantado pela Covid-19 nos traz novos dilemas e novos desafios. Temos que solucioná-los, levando-se em consideração as particularidades inerentes à situação excepcional vivenciada, mas sem abandonarmos todo embasamento jurídico já construído até então. Pregar uma responsabilização genérica e total do Estado, ademais de não encontrar respaldo em toda a construção jurídica já feita até então, não será a solução mais adequada para a crise pela qual passamos.

 é professor, procurador da Fazenda Nacional, pós-doutor pela PUC-PR e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP.

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