Cícero Bisneto: Responsabilidade civil de autoridades públicas

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Diversas e relevantes questões têm sido postas sob debate no que toca às consequências contratuais em razão da disseminação do novo coronavírus. Pouco se tem discutido, no entanto, acerca da aplicação dos pressupostos da responsabilidade civil em tempos de crise pandêmica, em que pese a sua relevância no cenário atual. Faz-se necessário, nessa toada, verticalizar a análise jurídica de alguns casos que podem vir, em curto espaço de tempo, a efetivamente ocupar o Judiciário sem que as bases teóricas fundamentais à resolução destas demandas tenham sido discutidas a contento.

Este breve artigo tem por desiderato tratar da hipótese de responsabilidade por causalidade psíquica [1]. Tem-se assistido a uma profusão de notícias na mídia informando que alguns agentes ocupantes de elevados cargos políticos, bem assim empresários e influenciadores da opinião pública, reiteradamente, e à revelia das recomendações científicas e médicas, acabam por recomendar à população, seja através de discursos, seja por comportamentos, um maior contato social. Os argumentos variam desde a não gravidade da doença, até mesmo à advertência acerca das consequências econômicas devastadoras do isolamento.

Questiona-se, portanto, se seria possível a responsabilização de tais indivíduos pela não observância, por parte da população, das recomendações médicas, ocasionando a proliferação do surto pandêmico, bem como a morte de pessoas que, influenciadas por tais discursos, tiveram a vida ceifada por terem mantido intenso contato social durante a disseminação viral. Trata-se de problemática que merece maior atenção da doutrina, eis que os atos mediados por influência psicológica, ainda que tenham sido alvo de estudo no direito estrangeiro, não constituem, até o momento, objeto de análise mais aprofundada no seio da literatura jurídica nacional.   

Para ilustrar a questão da causalidade psíquica, em casos envolvendo discursos ou recomendações de autoridades, políticas ou médicas, traz-se à baila o rumoroso caso do terremoto ocorrido na cidade de L’Aquila, capital de Abruzzo, cidade assentada em uma das áreas de maior sismicidade da Península Itálica. 

É sabido que a região tem sido sacudida, durante sua história, por diversos eventos telúricos, sendo que o primeiro tremor de terra que se tem notícia data de 3 de dezembro de 1315. Outros tantos terremotos se seguiram a este, destacando-se o abalo sísmico ocorrido em 1703, em que mais de três mil pessoas perderam a vida e diversas construções da cidade, entre elas as igrejas, ruíram. Tendo em vista o abandono em massa da cidade, o papa Clemente XI resolveu enviar padres e freiras com o fim de repovoar a região. O terremoto de maior repercussão, no entanto, deu-se nos idos de 1786, ocasião em que nada menos que seis mil pessoas pereceram. 

Em termos jurídicos, contudo, adquiriu relevo o sismo de L’Aquila, de magnitude 6,3 graus na escala de Richter, ocorrido em 6 de abril de 2009, às 3h32, quando 309 pessoas perderam a vida, além de terem sido registrados 1,6 mil feridos. Quase cem mil pessoas tiveram ainda que deixar às pressas o centro histórico [2]. A Itália recordou no último dia 6 o aniversário de 11 anos do terremoto que devastou a cidade. A tradicional procissão em homenagem às vítimas da tragédia não ocorreu este ano, em virtude da pandemia do coronavírus. Janelas e varandas das casas na localidade, contudo, permaneceram iluminadas durante a madrugada [3].   

Cumpre registrar que o abalo principal ocorreu em um contexto de instabilidade sísmica que já durava vários meses, principiando em junho de 2008. Antes da fatídica data, já havia sido registrado um choque de 4,1 graus às 15h38 horas do dia 30 de março de 2009. No dia seguinte ao abalo de maior magnitude, foi convocada uma reunião pelo chefe do Departamento da Proteção Civil, Guido Bertolaso, em L’Aquila, com o objetivo de fornecer aos cidadãos de Abruzzo toda a informação à disposição da comunidade científica sobre a atividade sísmica das últimos semanas. A Comissão de Grandes Riscos teria, no entanto, segundo a versão da acusação criminal, emitido mensagens tranquilizadoras para a população, ao não recomendar que os populares abandonassem suas casas [4], não obstante mais de 400 tremores terem sacudido a região por mais de quatro meses.

Foi proposta ação penal relativamente a 42 vítimas (37 mortos e cinco feridos). Isso porque, de acordo com a acusação, só em relação a essas pessoas lesadas é que o nexo de causalidade entre a conduta denunciada aos arguidos e a opção de permanecer em casa à noite entre 5 e 6 de abril foi verificada. No resultado da primeira instância, o Tribunal de L’Aquila, em sentença proferida em 22 de outubro de 2012 [5], declarou os réus culpados dos crimes que lhes foram imputados, em relação a 33 pessoas (29 mortos e quatro feridos), condenando-os ainda ao pagamento de indenização por perdas e danos a favor de algumas das partes no processo civil em curso, conjuntamente e a título solidário.

O Tribunal de Recurso de L’Aquila reformou parcialmente a decisão de primeiro grau [6], alegando que nem todos os membros da Comissão de Grandes Riscos poderiam ser responsabilizados, e confirmou apenas a condenação do vice-presidente de Proteção Civil, Bernardo de Bernardinis, autor de uma polêmica entrevista na televisão, cujo conteúdo foi considerado, mesmo em segunda instância, indevidamente tranquilizador [7]. O Tribunal de Cassação, na sentença n. 12478/16, de 19 de novembro de 2015, negou provimento aos recursos de Bernardo De Bernardinis e confirmou a sentença de segundo grau [8].

A Corte de Cassação considerou um nexo de causalidade psíquico entre a comunicação externada e a decisão dos cidadãos de L’Aquila de permanecer em suas casas. A escolha condicionada das vítimas, portanto, representa o chamado evento psíquico que determina o evento naturalista da morte ou lesão. Para tanto, a corte estabeleceu um método de avaliação da causalidade psíquica, não muito diferente do da causalidade naturalista, a fim de fornecer uma explicação adequada da influência exercida pelo estímulo psíquico no processo causal do evento, utilizando como parâmetro as máximas de experiência da comunidade [9].

Restou reconhecida, nesse caso, a existência de um nexo de causalidade psíquico, diverso da tradicional causalidade física ou mecânica, comprovável por meios tecnicamente seguros. A doutrina alemã há muito vem debatendo situações semelhantes, à luz do § 823, I, do BGB, tendo sido elaborados critérios de imputação específicos, como a fórmula do desafio (Herausforderungsformel[10], embora o tema seja controvertido em sede doutrinária e jurisprudencial.

À luz do ora exposto, e partindo-se do pressuposto da existência de uma causalidade psíquica, pode-se indagar se os indivíduos que estimulam um comportamento desviante dos padrões técnicos e científicos adotados internacionalmente podem ser responsabilizados civilmente pela disseminação do coronavírus em determinado seio comunitário ou relativamente a certos e específicos indivíduos. A influência de certo ocupante de cargo público, por exemplo, na psique individual ou no comportamento coletivo pode gerar a sua responsabilização pelos danos daí decorrentes?

Um determinado segmento doutrinário parece negar tal vínculo psicológico, evidenciando a preeminência do livre arbítrio do indivíduo [11]. Sustenta-se, neste ponto, que a autodeterminação pessoal [12] é ontologicamente capaz de eliminar completamente a incidência de uma psique na outra [13], interrompendo qualquer conexão de condicionamento [14]. Segue-se que uma conduta comunicativa, com o objetivo de influenciar o comportamento de outras pessoas, nunca poderia realmente ser definida como a causa desta.

Em que pese o livre arbítrio do indivíduo pareça efetivamente ocupar papel de destaque no comportamento adotado, figurando como exceção a hipótese de responsabilização, certas peculiaridades do caso concreto, tal como a relevância do cargo ocupado pelo comunicante e o grau de incitação praticado, podem acabar por ensejar a responsabilidade civil daquele que estimula ou encoraja determinada conduta sabidamente prejudicial  à saúde ou integridade física de terceiros. Certo é que em muitos países a causalidade psíquica é acolhida, embora nem sempre os julgados adentrem o mérito da questão [15].

Uma vez fixada a responsabilidade do responsável pela comunicação da recomendação indevida, deve-se analisar ainda a aplicação do disposto no artigo 945 do Código Civil de 2002, que trata da concorrência de culpas. A doutrina majoritária, no entanto, entende que a “culpa da vítima” constituiria uma questão meramente causal  [16]. Há de se questionar, nesse ponto, se aquele que descumpriu as regras do isolamento, embora influenciado por terceiro, deveria arcar com parte dos prejuízos suportados. Uma análise preambular da problemática parece indicar que a resposta a esta pergunta é afirmativa. A incitação e o encorajamento dificilmente aniquilarão por completo a vontade do lesado, de forma que não parece acertado que a imputação da responsabilidade recaía integralmente sobre o agente infrator.

As problematizações ora expostas de forma breve merecem maior aprofundamento, visto que a temática desperta apaixonados e controversos debates no direito estrangeiro, embora ainda não tenham sido enfrentados com profundidade pela doutrina nacional.

 


[1] A peculiaridade da causalidade psíquica, muitas vezes denominada pela doutrina alemã de causalidade mediada psiquicamente (psychisch vermittelte Kausalität) (LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadenersatz. 3. Auflage. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 131), tem por nota característica a influência mental que um primeiro ator exerce em um segundo, sem que tal fenômeno possa ser cientificamente comprovado através de leis naturais (ZHANG, Mia. Aktiv psychische Kausalität im Deliksrecht. Berlim: Duncker & Humblot, 2016, p. 14). A causalidade mediada psiquicamente distingue-se do choque nervoso” (Schockschaden), no direito civil alemão, pois nesta última hipótese não há que falar em ato voluntário do lesado ou de um terceiro participante, mas de uma reação involuntária daquele que sofre a lesão nervosa (WALDKIRCH, Conrad. Zufall und Zurechnung im Haftungsrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018, p. 376).

[11] Sustenta-se que, em regra, o lesado deve suportar todos os prejuízos negativos aos seus interesses legais. Forst menciona mesmo um princípio de autorresponsabilidade (Selbstverantwortungsprinzip) (FORST, Stephan Philipp. Grenzen deliktischer Haftung bei psychisch vermittelter haftungsbegründender 
Kausalität. München: WF, 2000, p. 124).

[13]Another point concerns our expectations concerning individuals. We conceive them as independent persons able to determine with more or less freedom their acts. We expect them to resist undue influences from outside” (ZIMMERMANN, Reinhard; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; WINIGER, Bénédict (Eds.). Essential Cases on Natural Causation. Wien, NewYor: Springer, 2007, p. 253)

Cícero Dantas Bisneto é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia; mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); e membro do IBERC.

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