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Alexandre de Moraes restabelece liminar que impede ofertas online de hospedagem em Paraty/RJ

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, manteve a validade de decreto municipal de Paraty/RJ que determina o bloqueio de vagas disponíveis de hospedagem em plataformas de venda online. Assim, restabeleceu liminar de 1º grau que impedia os sites Booking e AirBnb de ofertarem reservas na cidade durante o período de isolamento, medida de prevenção ao coronavírus.

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O ministro acolheu pedido do município e aplicou o entendimento firmado pelo STF no sentido de que Estados, DF e municípios possuem competência, juntamente com a União, para a tomada de providências relativas ao combate à pandemia do novo coronavírus.

A suspensão de reservas online foi adotada para evitar entradas e saídas constantes de pessoas na cidade histórica, aumentando o risco de contaminação de habitantes e turistas, e de colapso do sistema de saúde local.

Ofertas suspensas

Em 12 de abril, foi deferida, em 1º grau, liminar contra os sites Airbnb e Booking, que ficaram proibidos de ofertar hospedagens em Paraty/RJ durante o período de isolamento social previsto em decreto municipal.

Mas o TJ/RJ derrubou a medida. Para a desembargadora Natacha N. G. T. G. de Oliveira, “cabe à municipalidade verificar, nos estabelecimentos físicos, o respeito às normas municipais, e não transferir às rés o ônus de bloqueio de datas”

Em 24 de abril, o município de Paraty buscou o STF para suspender a decisão do TJ/RJ, mas, por questões processuais, o ministro Dias Toffoli negou seguimento ao pedido. Ministro destacou a impossibilidade de concessão da medida de suspensão quando necessário o revolvimento fático-probatório do caso. E, no caso, não vislumbrou suposta grave lesão à ordem pública a justificar a admissibilidade da medida excepcional.

Agora, na RCL 40.161, o município questionou a decisão do TJ/RJ. O ministro Alexandre de Moraes concedeu a liminar ao constatar a plausibilidade da alegação de descumprimento, pelo TJ, da decisão do plenário do STF na ADIn 6.341.

Nesse julgamento, explicou o ministro, dentre outros pontos, “a Corte explicitou que as medidas adotadas pelo governo Federal para o enfrentamento da pandemia não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”.

Leia a decisão.

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Presidente do TRF-3 nega recurso de Bolsonaro contra divulgação de exame

O presidente do TRF da 3ª região, desembargador Mairan Maia, negou neste sábado, 2, um segundo recurso da AGU ao Tribunal contra a divulgação dos exames de coronavírus feitos por Bolsonaro. 

Na análise do primeiro recurso, feita horas antes pela desembargadora plantonista Mônica Nobre, o governo conseguiu a suspensão, por cinco dias, do envio dos documentos cujo prazo para entrega se encerrava neste sábado, 2. O novo prazo se deu para que o relator do caso na Corte analise o pedido.

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Não se trata de personalíssimo direito à manutenção da privacidade dos resultados dos exames, senão de informação que se reveste de interesse público acerca do diagnóstico da contaminação ou não pelo covid-19“, concluiu o presidente da Corte.

Ao analisar o segundo recurso, o presidente do TRF-3 negou o pedido para derrubar a decisão da JF/SP, que determinava a divulgação dos resultados de exames em um prazo de 48 horas.

“A União Federal limita-se a justificar que não existe obrigatoriedade no fornecimento dos laudos dos exames realizados pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Não demonstra, ainda que de maneira superficial, em que medida a decisão de primeiro grau tenha o potencial concreto de ofensa à ordem pública.”

Para a AGU, o entendimento do desembargador Mairan Maia “não altera a decisão que desobrigou a União de fornecer os laudos ainda neste sábado (02/05) e estabeleceu prazo de 5 dias para que o relator da ação no TRF-3 analise o caso”.

O caso

A ação foi ajuizada pelo jornal O Estado de S. Paulo contra a União. O veículo aduziu que, após viagem de comitiva presidencial aos EUA, 23 pessoas que compuseram e acompanharam o cotejo foram infectadas, suscitando especulações e dúvidas sobre a saúde do presidente.

Bolsonaro já disse que o resultado deu negativo, mas se recusa a divulgar os papéis. Em entrevista a uma rádio gaúcha na última quinta-feira, o presidente admitiu que “talvez” tenha sido contaminado pelo novo coronavírus.

Ao deferir o pedido em 1º grau, a juíza Federal Ana Lucia Petro Betto, da 14ª vara de SP considerou que o povo tem direito de ser informado quanto ao estado de saúde do representante eleito.

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Gilmar Mendes: “Lava jato é pai e mãe do bolsonarismo”.

Quem elegeu Jair Bolsonaro foi a “força tarefa” da “lava jato”, que tinha no seu comando o juiz Sérgio Moro e como assessores, os jornalistas que cobriam as condenações em série que celebrizaram seus protagonistas. Não exatamente com essas palavras, mas com essa concatenação, o ministro Gilmar Mendes, do STF, revisitou, neste sábado (2/5), a produção do atual momento político brasileiro, em entrevista à Rádio Gaúcha (https://soundcloud.com/radiogaucha/gilmar-mendes-ministro-do-supremo-tribunal-federal-01052020).

“Isso foi fruto de uma ampla construção”, analisou o ministro. Especialmente do eco que a imprensa deu “aos eflúvios, às emanações de Curitiba, da ‘lava jato’”. O itinerário foi simples e eficiente: “Se o Supremo decidia alguma coisa que afetava a ‘lava jato’, o STF é que estava errado — nesse contexto que se desenvolveu o repúdio contra o STF, do qual a mídia foi parceira”.

Para Gilmar, a ‘lava jato’ é o pai e a mãe do bolsonarismo. Desse bolsonarismo vitorioso”. Instado a analisar a colisão de Moro com Bolsonaro, o ministro tentou cautela, mas ressalvou que não se pode ignorar os fatos: ao vazar graves acusações, baseadas em pretensa delação de Antônio Palocci, às vésperas da eleição, é inquestionável que o então juiz atuava como cabo eleitoral do governo que ele passaria a integrar. “A mim me bastam os fatos”, disse o ministro do STF.

Bem humorado, Gilmar lembrou o dia em que Paulo Guedes, já ministro da Economia, contou-lhe que antes mesmo da posse pedira aquiescência de Bolsonaro para convidar Moro para o governo. E recordou o quanto Guedes ficou curioso ao ouvir que ele “deveria escrever isso na sua biografia”. O motivo seria uma inestimável contribuição com o Brasil — que seria tirar Moro de Curitiba.

Os jornalistas pediram avaliação de Gilmar sobre o episódio em torno do livro de Rodrigo Janot, em que o ex-procurador disse que se embriagava durante o dia, na PGR, e que certa vez foi armado ao Supremo, pensando em atirar no ministro e matar-se depois. “Isso mostra a tristeza desse período”, comentou o ministro, rememorando que a própria imprensa apurou que, no dia indicado por Janot, ele sequer estava em Brasília. “Se esses falsos heróis fossem obrigados a pedir desculpas pelo mal que fizeram ao país, precisariam de mais duas ou três vidas para se redimir”, afirmou Gilmar depois da entrevista.

Questionado sobre a Comissão de Inquérito do Congresso criada para investigar a fabricação de notícias fraudulentas, Gilmar Mendes comparou os agrupamentos que as geram como “um tipo de religião sem deus”. Lembrou da ação nociva dessas milícias na votação do Brexit, no Reino Unido, e na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos.

No Brasil, comentou o ministro, “esses agrupamentos falam em aniquilar pessoas, matar, ‘cancelar o CPF’, como pistoleiros virtuais”. Para ele, “é preciso saber quem patrocina isso”. E voltou a defender o inquérito aberto no Supremo, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes — que deu passos importantes nesse sentido”.

“Uma coisa positiva, nesse cenário de tantos desacertos e infelicidades é que o país está voltando a valorizar o jornalismo profissional, está voltando ao normal para se reencontrar consigo mesmo”, concluiu.

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Barroso suspende ordem de retirada de diplomatas venezuelanos

O ministro Luís Roberto Barroso suspendeu hoje a expulsão de funcionários da Embaixada da Venezuela em Brasília e consulados em Belém, Boa Vista, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo.

A retirada compulsória do corpo diplomático venezuelano (ao todo, 34 cidadãos) havia sido determinada por ato do presidente do ministro das Relações Exteriores na última terça-feira (28/4).

Retirada dos diplomatas havia sido determinada por Ernesto Araújo
Carlos Humberto/SCO/STF

O ministro atendeu pedido do deputado Paulo Pimenta (PT-RS) e concedeu liminar por considerar que pode ter ocorrido violação a normas constitucionais brasileiras, a tratados internacionais de direitos humanos e às convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares.

A suspensão vale por dez dias e o ministro requisitou, nesse período, que o presidente da República e o ministro das Relações Exteriores prestem informações sobre a expulsão.

Riscos

Para o ministro, a retirada implica em “riscos concretos à incolumidade física e psíquica” dos diplomatas venezuelanos. Ele também considerou urgente a decisão em razão da pandemia de Covid-19 reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Para ele, a ordem de saída imediata “viola razões humanitárias mínimas” porque os integrantes do corpo diplomático “não representam qualquer perigo iminente”.

A decisão lembra que, nesta sexta-feira (1º/5), o procurador-geral da República já havia recomendado ao ministro das Relações Exteriores a suspensão da medida para evitar riscos físicos e psíquicos aos envolvidos. 

Competência

O ministro lembrou que o artigo 84, inciso VII, da Constituição estabelece a competência privativa do Presidente da República para “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes”.

No entanto, no caso concreto, os autos foram instruídos “somente com cópia da ordem emanada do ministro de Estado das Relações Exteriores”. Assim, segundo Barroso, isso em princípio “atrairia a competência do Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, alínea ‘c’, da CF/88”.

Ainda assim, “o quadro de urgência retratado na petição inicial deste habeas corpus justifica o deferimento da tutela de urgência”, entendeu o ministro.

Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

Clique aqui para ler a decisão

HC 184.828

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Admissão de HC contra monocrática mantém posicionamento do STF

Decisão desta sexta-feira (1º/5) do Plenário do STF admitiu um Habeas Corpus impetrado contra decisão monocrática de ministro que havia negado um agravo regimental. 

Apesar da admissão do HC, ministro Moraes afirma que entendimento do STF sobre a matéria não foi alterado

Conforme informou a ConJur, a matéria teve algumas idas e vindas nos últimos anos. O entendimento mais recente era o de que HC em circunstâncias assim não poderia ser admitido.

O julgamento se deu no plenário virtual. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, votou pela admissibilidade do recurso, mas negou, no mérito, o pedido. Segundo o site do STF, foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Luiz Fux e Celso de Mello. 

Os ministros Gilmar Mendes, Dias Tofolli e Luís Roberto Barroso também acompanharam o relator, mas com ressalvas. Edson Fachin e Rosa Weber divergiram. A ministra Cármen Lúcia não votou, por estar impedida — ela foi a relatora do agravo regimental inadmitido que ensejou o HC.

Após a publicação da reportagem, a ConJur teve acesso ao voto do ministro Fux, que firmou sua posição no sentido de que votou apenas quanto ao mérito do HC.

 “Acompanho a conclusão do relator exclusivamente quanto ao indeferimento da ordem. Sem prejuízo desse encaminhamento, deixo consignada a minha posição quanto à inadequação da via eleita, tendo em vista o não cabimento de Habeas Corpus contra decisão proferida por ministro ou turma do Supremo Tribunal Federal (Súmula 606 do STF)”, afirmou o ministro.

A Súmula 606 diz não ser cabível HC originário “para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso”. Mas silencia quanto a decisão monocrática.

O ministro Alexandre de Moraes afirmou que também irá apresentar ressalvas. Portanto, segundo ele, “o posicionamento [do STF] não foi alterado”.

O voto do ministro Barroso também apontou para a “inadequação da via eleita”.

Balizas

O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, entendeu ser cabível HC contra decisão monocrática, com a ressalva de que é “necessário impor determinadas balizas a seu emprego, sob pena de sua utilização indiscriminada não apenas subverter o sistema recursal, mas também inviabilizar o funcionamento do Supremo”.

HC 103.620

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Opinião: Da videoconferência à teleaudiência

Quando Mauro Cappelletti pensou nas três ondas renovatórias de acesso à justiça, certamente sabia que a coisa não pararia por ali. Porém, dificilmente imaginava, já naquela época, que a quarta onda caberia na palma da mão, com uma espécie de prestação jurisdicional exercida em nuvem, acessível por meio da utilização de dispositivos tecnológicos, a exemplo de um prático smartphone.

O tema não é propriamente uma novidade. O Poder Judiciário brasileiro iniciou seu processo de informatização há cerca de 30 anos e, ainda no início deste século, a Justiça Federal lançava os primeiros sistemas de processo judicial eletrônico, na época de uso restrito aos Juizados Especiais Federais. De lá para cá, a civilização do nosso tempo testemunhou uma acelerada evolução tecnológica, plenamente possível de ser aplicada à prestação jurisdicional.

Nos últimos três anos, os debates em torno da inovação jurídica ganharam ainda maior relevância no Brasil. O número de lawtechs disparou, os escritórios de advocacia passaram a exigir como nunca dos advogados habilidades envolvendo o emprego da tecnologia no direito e mesmo o tradicionalíssimo Poder Judiciário passou a instalar laboratórios de inovação com o objetivo de melhor enxergar seu próprio design organizacional. O fenômeno parecia vir acelerado, mas ainda esbarrava num traço muito significativo do ambiente jurídico: uma cultura organizacional densamente marcada pela tradição.

Aí veio uma pandemia…

Todos sabem o que veio depois, porque o depois é hoje e sabemos o que estamos vivenciando. O sistema jurídico brasileiro, mais do que a maioria dos seus congêneres estrangeiros, empresta acentuado prestígio ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Todavia, de um dia para o outro, juízes, promotores e advogados viram, assustados, o fechamento de fóruns, promotorias e escritórios de advocacia.

Fecharam os prédios, mas o sistema de justiça não parou.

Se, de um lado, percebemos que os avanços tecnológicos já nos ofereciam bem mais do que imaginávamos, o fato é que a tradição nos fazia resistir ao aproveitamento de todo esse potencial. Durante a pandemia, felizmente a tradição cedeu à inafastabilidade da jurisdição e fomos obrigados a inovar. Há mais de uma década empregávamos videoconferências nas audiências, mas estas eram irremediavelmente sediadas dos fóruns. Como a pandemia transformou nossas casas em fóruns e escritórios, o jeito foi criar novos modelos: as teleaudiências.

O principal traço distintivo entre as audiências tradicionais e as teleaudiências consiste na absoluta desterritorialização do ato. Não há dúvida de que o Código de Processo Civil prescreve um conjunto de regras permissivas da realização de atos processuais por meio eletrônico. Contudo, até dois meses atrás, estes eram invariavelmente estruturados a partir de um epicentro, que era o fórum, de modo que, ainda que praticados em meio eletrônico, o modelo era desenhado a partir do pressuposto de uma sede territorial. A teleaudiência, portanto, expressa simplesmente um novo modelo de trabalho, com regular suporte normativo na legislação em vigor.

Inovação é essencialmente um processo colaborativo em busca de uma transformação da realidade através de métodos de experimentação que lidam mais facilmente com o erro como referencial de aprendizado coletivo. Sob essa premissa, a 6ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, que tem como juiz titular um dos autores deste texto, decidiu realizar uma audiência-laboratório, objetivando construir um modelo de teleaudiência baseado na cooperação.

Foi então marcada a teleaudiência, com a finalidade de que, com a colaboração entre juiz, advogado e procurador, pudesse ser construído esse modelo, buscando resguardar garantias processuais, prerrogativas de todos os participantes e a privacidade das partes. Forte nesse espírito de cooperação, foi também convidada uma observadora externa para a teleaudiência, a professora Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave, atualmente conselheira federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pelo Rio Grande do Norte e também autora deste texto. Na condição de representante da academia e da OAB, ela teve a missão de participar do momento de feedback após a realização do ato e de acompanhar toda a sua preparação.

O objetivo deste texto é apresentar um breve relato da experiência e suscitar algumas reflexões, as quais também servirão de subsídios para uma proposta de modelo nacional, tendo em vista que o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal afetou esse tema para estudo e elaboração de nota técnica.

Como ponto de partida, o juízo abriu um quadro no aplicativo trello para desenhar um fluxo de trabalho inicial para o ato processual e estruturar um protocolo para a teleaudiência. Após o despacho de marcação desta, foi criado um grupo de whatsapp com a participação do juiz federal, servidores da vara, advogados, procuradores e mesmo da testemunha cujo depoimento seria colhido. A observadora também integrou esse grupo.

No momento da criação desse grupo virtual, foi enviada uma mensagem padronizada de boas-vindas, com a solicitação de indicação de provas que seriam produzidas, a fim de que o juízo pudesse viabilizar a devida estrutura, assim como com a informação de que seria utilizada a plataforma zoom. Mais adiante, foi postado no grupo de whatsapp um tutorial para uso desse aplicativo, com a informação de que seria realizada uma pré-audiência de teste, com a participação de todos, o que ocorreu dois dias antes da efetiva realização do ato processual.

Nessa pré-audiência de teste, todos receberam a recomendação de emprego do mesmo código de vestimenta de uma audiência tradicional, como sinal de respeito ao ato processual e aos demais participantes. Por óbvio, não foi imposto um código específico, até por falta de previsão legal, mas se ponderou que cooperação pressupõe também empatia, razão por que esse seria um gesto de deferência aos demais participantes.

Na data marcada, abriu-se a teleaudiência, com um preliminar protocolo de atuação em ambiente virtual. O juiz federal informou que faria o controle do áudio a fim de evitar microfonia e propôs uma recodificação da linguagem judicial a partir dos recursos do aplicativo. Assim, o tradicional “pela ordem” seria substituído pelo recurso “levantar a mão” e o uso dos emojis foi estimulado para busca de consenso. No feedback final, surgiu posteriormente a ideia de também fazer constar do protocolo o estímulo ao uso do chat, que pode substituir o tradicional requerimento para “consignar em ata”, concedendo maior autonomia a advogados e procuradores.

Porém, o juiz federal cometeu um erro! Ele era o anfitrião da reunião no aplicativo e esqueceu de acionar a gravação do vídeo. Por sorte, lembrou-se de fazê-lo durante a colheita do depoimento, tendo sido o equívoco recebido com bom humor pelos participantes, que de forma bastante cooperativa concordaram com uma repetição resumida. No feedback, ao final, chegou-se à conclusão de que o assistente de audiência teve ressignificado o seu papel e deve figurar como coanfitrião do juiz na condução da reunião no aplicativo, a fim de assegurar o cumprimento de um fluxo de registro eletrônico do ato processual, inclusive da qualidade de áudio e vídeo, além, por óbvio, da elaboração da ata, a qual, no caso específico, continha elementos de design, em sintonia com a linguagem atualmente empregada em âmbito virtual.

Houve um específico cuidado com a testemunha, a fim de resguardar sua incomunicabilidade. No início da audiência, ela foi informada de que ficaria na sala de espera do aplicativo até o momento em que seu depoimento seria colhido. Na mesma ocasião, o juiz federal solicitou que postasse no grupo de whatsapp o seu localizador, a fim de que as partes e advogados tivessem ciência de onde ela se encontrava. Não houve solicitação de que filmasse o ambiente de onde prestaria o depoimento, mas isso poderia ter sido feito.

Encerrada a audiência, deu-se um rico momento de feedback. Todos os participantes, salvo a testemunha, já então dispensada, puderam colaborar com a avaliação do ato. Advogado e procurador só enxergaram pontos positivos e atribuíram nota 10,0 ao ato processual, com o detalhe de que este participou de Recife, enquanto os demais se encontravam em Natal. O juiz federal deu nota 8,5 ao ato processual, furioso por conta do próprio erro de esquecer da gravação. O assistente de audiência foi mais generoso e concedeu nota 9,0. De certo modo, os dois últimos, que se prepararam bastante para o sucesso do ato, confessaram suas frustrações pelo erro cometido pelo juiz.

A observadora também atribuiu nota 10,0, salientando inúmeros pontos positivos, mas também suscitou alguns aspectos que merecem reflexão para definição de um protocolo para as teleaudiências.

O primeiro diz respeito à importância de controle do áudio, que pode comprometer o exercício da defesa. Daí a sugestão de que o assistente atue como coanfitrião da reunião no aplicativo. O juiz federal, por sua vez, afirmou ser relevante fazer constar no protocolo uma rotina de confirmação do áudio durante o ato, com auxílio dos emojis disponíveis no aplicativo. Também se concluiu que se deve recomendar, quando possível, o uso de microfones, que podem se tornar um novo artefato necessário do ambiente jurídico.

Um segundo ponto bastante relevante diz respeito à identificação da testemunha. De fato, o juízo não procedeu à identificação formal da testemunha e não houve impugnação, porque, de alguma forma, a teleaudiência parece criar um ambiente de confiança. Mas a advertência é bastante válida e o procurador sugeriu que isso fosse feito no futuro com a exigência de postagem, no grupo whatsapp, do documento de identificação e uma selfie da testemunha.

Outro ponto relevante é a preservação mínima da imagem e da privacidade no ato, evitando a sua espetacularização por eventual transmissão ao vivo, por exemplo. Como medida preventiva, chegou-se à conclusão de que deveria constar, no protocolo, o compromisso das partes e advogados de condicionar a realização de uma espécie de live-audiência à autorização judicial.

A maior preocupação da teleaudiência, sem dúvida, diz respeito à higidez da prova testemunhal. Ainda há espaço para se refinar o controle da identificação e da incomunicabilidade. No caso específico, como referido, o juízo usou como recursos a sala de espera do aplicativo e a determinação de postagem do localizador no grupo de whatsapp, mas outras medidas podem ser prestigiadas, como a exigência de uma luminosidade mínima no vídeo e a realização de uma espécie de google street view caseira no ambiente em que esteja a testemunha.

Outra preocupação relevante diz respeito ao ônus da estabilidade da transmissão, que parece ser do Poder Judiciário, já que cabe ao juiz a presidência do ato. Assim, a dificuldade de acesso ao link, por motivo técnico, não deve implicar prejuízo à parte, advogado ou procurador que não obtiver acesso. Ora, o link é o substituto da porta de entrada da sala de audiência tradicional. Se esta por algum motivo se fecha, não poderiam partes, advogados e procuradores ser prejudicados.

Por óbvio, esses efeitos podem também ser objeto de disposição em negócio jurídico processual celebrado pelas partes. Aliás, esses mecanismos podem estimular uma cultura de maior autonomia entre advogados quanto à produção da prova, como o uso negociado de escritórios de advocacia para a prática do ato, mesmo sem a presença do juiz, com o acerto quanto à respectiva validade.

A experiência comum a ser formada também passará a oferecer elementos para reflexão sobre padrões éticos de conduta em ambiente virtual, que serão amadurecidos com o tempo. Assim, no futuro, muito provavelmente teremos alguns critérios, inclusive técnicos, para definição de um possível conceito de deslealdade processual digital ou de má-fé processual digital. Todavia, por ora seria prematuro aplicar sanções processuais, reconhecer preclusões ou determinar conduções coercitivas de testemunhas pelo não acesso à teleaudiência.

A teleaudiência é apenas um átimo dessa onda de acesso à justiça na palma da mão. Na verdade, abre-se um riquíssimo campo teórico de ressignificação de pressupostos fundamentais de um processo judicial democrático. Ao se tratar de acesso à justiça digital, é preciso refletir sobre a correta escolha de um aplicativo ou mesmo sobre a concepção de uma plataforma oficial, porque estamos lidando com inovação jurídica num ambiente de exclusão digital, num país em que um magistrado paulista, conterrâneo da observadora da teleaudiência relatada neste texto, pode estar colhendo o depoimento de uma testemunha em Taipu, no Estado do Rio Grande do Norte, berço da família do juiz federal que a presidiu.

Com efeito, ao se preocupar com as repercussões jurídicas da qualidade de áudio e vídeo da audiência, estamos velando por uma espécie de ampla defesa digital. Outrossim, a reflexão sobre os efeitos processuais de determinados fatos ocorridos nesse ambiente virtual também revela o cuidado de se iniciar a construção de critérios para resguardo de um devido processo legal digital.

Um aspecto muito curioso diz respeito ao potencial de mudança na comunicação jurídica. Paradoxalmente, o emprego da tecnologia permite o estabelecimento de uma comunicação mais empática, por meio de novos signos linguísticos concebidos sob a ótica do design, como aconteceu na teleaudiência relatada, na qual o tradicional “pela ordem” foi representado por um emoji. Por incrível que pareça, isso permite a preservação da tradição jurídica, porque para os operadores do direito aquele pictograma continua expressando a mesma carga semântica no discurso jurídico, porém agora o “pela ordem” será mais facilmente compreendido pela população.

A propósito do campo linguístico, talvez a experiência mais impactante da teleaudiência relatada tenha ocorrido após sua realização, quando o juiz federal foi mostrar o termo de audiência à esposa, que exerce a função de promotora de justiça, e esta perguntou o que eram “aquelas figurinhas”, tendo a filha Bebel, de sete anos, que estava ao lado, respondido prontamente que eram pictogramas, matéria da aula de robótica! Em outras palavras, a criança compreendeu a linguagem do termo até mais facilmente do que a mãe, integrante do Ministério Público, mais habituada à linguagem jurídica tradicional.

Por fim, uma constatação final: a experiência mostrou como o ambiente virtual foi capaz de reforçar o dever de cooperação previsto no artigo 6º do Código de Processo Civil. Apresentado o protocolo da teleaudiência, seguindo-se a um breve treinamento sobre as funcionalidades do aplicativo, colheu-se a concordância das partes e a coisa fluiu com uma naturalidade impressionante. Não havia quem atropelasse a fala do outro e cada um agia com a devida autonomia, utilizando-se dos recursos disponíveis, a exemplo do chat.

É difícil prever o futuro, mas parece que essas novas experiências podem silenciosamente romper alguns paradigmas clássicos do pensamento jurídico. A autoridade parece estar sendo substituída pela liderança. O pensamento jurídico racional parece admitir uma conciliação com o experimental, reconhecendo maior valor científico aos referenciais de tentativa e erro, com maior prestígio ao método indutivo. Por fim, a melhor de todas: a litigiosidade pode finalmente ceder à cooperação.

É ver para crer…

Marco Bruno Miranda Clementino é juiz federal no Rio Grande do Norte.

 é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

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Suspensa decisão que obrigava Bolsonaro a mostrar exame

A desembargadora platonista Mônica Nobre, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, suspendeu, pelo prazo de cinco dias, a decisão que obrigava o presidente Jair Bolsonaro a entregar à Justiça os laudos de todos os exames feitos para verificar se ele foi contaminado pelo novo coronavírus. 

Desembargadora suspendeu decisão que obrigava Bolsonaro a mostrar exame
Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

A decisão foi tomada para possibilitar que o relator do caso na segunda instância possa analisar os argumentos da União.

“Diante dos fatos e de sua repercussão para ambas as partes, a conclusão que se afigura mais razoável é a dilação do prazo indicado na decisão agravada, medida que, em sede de exame em plantão, é suficiente para garantia de análise do pleito formulado pelo relator designado”, afirma a decisão.

Ainda segundo a magistrada, “a dilação do prazo, ao mesmo tempo em que evita a irreversibilidade da medida sem que se dê a análise pelo magistrado competente, também não acarreta prejuízos irreparáveis ao recorrido, até mesmo diante do fato de que se trata de ação ajuizada em 27 de março de 2020”. 

A decisão foi proferida após o governo enviar um relatório, assinado por dois médicos da Presidência em 18 de março, informando que Bolsonaro estava assintomático e havia testado negativo. 

Em primeira instância, a juíza Lúcia Petri Betto, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, acatou pedido feito pelo jornal o Estado de S. Paulo, determinando que o veículo tenha acesso aos testes de Covid-19 a que o presidente foi submetido. Na ocasião, definiu que o presidente deveria apresentar os exames em um prazo de dois dias.

Ao analisar a matéria, a magistrada elencou justificativas e precedentes para basear a decisão e lembrou que “no atual momento de pandemia que assola não só Brasil, mas o mundo inteiro, os fundamentos da República não podem ser negligenciados, em especial quanto aos deveres de informação e transparência”.

A juíza também citou precedentes do Supremo Tribunal Federal e lembrou que “os mandantes do poder têm o direito de serem informados quanto ao real estado de saúde do representante eleito”. Por fim, a juíza fixou multa de R$ 5 mil por cada dia de omissão injustificada no cumprimento da decisão.

Clique aqui para ler a decisão

5010203-13.2020.4.03.0000

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Juiz absolve homem acusado de transportar 173 quilos de maconha

In dubio pro reo

Juiz absolve homem acusado de transportar 173 quilos de maconha no MS

Por 

Juiz absolveu homem acusado de ajudar a subtrair maconha de delegacia 
Reprodução

O juiz Vinicius Aguiar Milani, da Comarca de Itaquiraí (MS), absolveu um homem acusado de supostamente ter ajudado a roubar aproximadamente 173 kg de maconha da delegacia de polícia da cidade

Segundo a denúncia do Ministério Público, o réu teria colaborado com um investigador de polícia para consumação do delito de peculato-apropriação e tráfico de drogas. Uma caminhonete — supostamente, de sua propriedade  teria sido usada para transportar drogas e as trocar pelas apreendidas na delegacia. Estas seriam de qualidade superior.

A defesa do réu arguiu a nulidade da decisão de recebimento da denúncia sob o argumento de que não foi adotado o procedimento descrito na Lei de Drogas ou dos crimes praticados por servidor público contra a Administração, não tendo sido dada oportunidade de defesa prévia.

Os advogados também apontaram a parcialidade das testemunhas inquiridas em juízo e a fragilidade das provas arrecadadas.

Ao analisar o caso, o magistrado apontou que “não restou demonstrada em relação ao acusado, havendo nos autos apenas indícios de sua participação na empreitada criminosa, os quais não foram confirmados pelas provas arrecadadas na fase policial e em juízo”.

O juiz também aponta que os autos do processo traziam apenas a confirmação de policiais civis de que a caminhonete utilizada para o transporte da droga seria do acusado. “Não se pode desprezar que o réu não foi identificado como o condutor do veículo e, ainda, sequer houve de que tal automóvel lhe pertencia. Em relação ao réu Cristiano o que existe nos autos é a mera alegação dos policiais civis, no sentido de sabem que o acusado possui uma caminhonete”, assinalou.

Por fim, o magistrado considerou os elementos probatórios da acusação frágeis demais para sustentar a condenação e o absolveu com base no princípio do in dubio pro reo. O réu foi representado pelos advogados Wilson Tavares de Lima e Samuel Chiesa, da banca de Advogados Wilson Tavares & Advogados Associados.

Clique aqui para ler a decisão

0001169-92.2019.8.12.0051

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 2 de maio de 2020, 16h58

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Decisão do STF que admite HC contra ato de ministro é elogiada

O Supremo Tribunal Federal admitiu nesta quinta-feira (30/4) Habeas Corpus contra atos individuais de seus membros, formando novo precedente.

Especialistas ouvidos pela ConJur consideraram acertada decisão do STF
123RF

De acordo com o relator, ministro Marco Aurélio, o HC é cabível contra decisão formalizada por integrante do Supremo, considerando que a súmula 606 “alcança ato de Colegiado, e não individual”. 

O HC em análise, procedente de Roraima, foi impetrado contra decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, que havia negado um agravo regimental. O paciente alega que está submetido a constrangimento ilegal pela não apreciação do recurso interposto, havendo risco à liberdade, considerada a certificação do trânsito em julgado da decisão condenatória.

Em seu voto, Marco Aurélio admitiu o HC, rejeitando as preliminares invocadas pela Procuradoria Geral da República. O pedido, contudo, foi negado, pois o ministro vislumbrou “ausência de ilegalidade a ser reparada”. De todo modo, a simples admissão do HC criou novo entendimento na Corte.

Marco Aurélio foi acompanhado com ressalvas pelos ministro Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso. Toffoli reiterou que seu entendimento pessoal é pelo cabimento do HC contra decisão individual de seus membros.

Proteção da liberdade

Especialistas ouvidos pela ConJur afirmaram que a decisão do STF foi acertada, possibilitando o aperfeiçoamento dos procedimentos jurisdicionais da Corte e criando um novo canal para que liberdades ilegalmente cerceadas sejam revistas. 

Para Cristiano Zanin, do Teixeira, Martins & Advogados, “o período de arbitrariedades e de restrições indevidas às garantias fundamentais que o Brasil assiste há alguns anos está diretamente ligado à limitação do uso do HC pelos tribunais, por meio da chamada jurisprudência defensiva”. 

Ainda de acordo com ele, “esse precedente do STF não colide com a Súmula 606 e sinaliza que a Suprema Corte está disposta a retomar o papel fundamental que sempre exerceu em relação ao instituto, à proteção da liberdade e dos direitos correlatos”. 

O advogado Eduardo Carnelós diz esperar que a decisão seja o início do fim das “indevidas e injustificáveis” restrições impostas pela corte ao uso do Habeas Corpus. 

“Ao inscrevê-lo [o HC] como garantia individual, a Constituição não previu nenhum obstáculo de ordem processual ao seu manejo, e não há razão para o intérprete maior da carta o fazer”. 

Para ele, “se o HC é conhecido justamente como remédio heroico, ao Supremo cabe o papel de aplicá-lo sempre que a liberdade de alguém for ilegalmente cerceada, ou sofrer qualquer ameaça de vir a ser atingida, ainda que imediatamente”. 

Idas e vindas

A constitucionalista Vera Chemim explica que o entendimento da corte a respeito do tema variou bastante no decorrer dos últimos anos. 

Ela lembra, por exemplo, qu,e em 2007, ao julgar o HC 84.444, sob relatoria do Ministro Celso de Mello, o Plenário do STF reconheceu a possibilidade de impetração de HC quando deduzida em face de decisões monocráticas proferidas pelo relator, conforme jurisprudência prevalecente àquela época. No caso do HC 97.229, de relatoria do ministro Cezar Peluso, a corte também decidiu de forma semelhante. 

Nos anos 2001, 2008 e 2011, por outro lado, houve o entendimento de que não caberia pedido de HC contra ato de ministro, por meio de aplicação analógica da Súmula 606. 

“Ao admitir o HC negado por decisão monocrática, o STF está tentando aperfeiçoar os seus procedimentos jurisprudenciais, no sentido de aumentar ainda mais a ‘força normativa da Constituição’, conforme tese defendida pelo conceituado jurista alemão Konrad Hesse em seu renomado ensaio A Força Normativa da Constituição“, afirma. 

Ainda de acordo com ela, “trata-se de uma interpretação destinada a tornar mais efetivos os dispositivos constitucionais inerentes ao tema, quais sejam, as alíneas ‘d’ e ‘i’, constantes no inciso I, do artigo 102 da Constituição, assim como os direitos fundamentais elencados no seu artigo 5º, especialmente o direito à liberdade, um dos mais caros ao ser humano e que por razões óbvias não deve se restringir ao julgamento monocrático, sob risco de afrontar a justiça e a Constituição”.

HC 130.620

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Cícero Bisneto: Responsabilidade civil de autoridades públicas

Diversas e relevantes questões têm sido postas sob debate no que toca às consequências contratuais em razão da disseminação do novo coronavírus. Pouco se tem discutido, no entanto, acerca da aplicação dos pressupostos da responsabilidade civil em tempos de crise pandêmica, em que pese a sua relevância no cenário atual. Faz-se necessário, nessa toada, verticalizar a análise jurídica de alguns casos que podem vir, em curto espaço de tempo, a efetivamente ocupar o Judiciário sem que as bases teóricas fundamentais à resolução destas demandas tenham sido discutidas a contento.

Este breve artigo tem por desiderato tratar da hipótese de responsabilidade por causalidade psíquica [1]. Tem-se assistido a uma profusão de notícias na mídia informando que alguns agentes ocupantes de elevados cargos políticos, bem assim empresários e influenciadores da opinião pública, reiteradamente, e à revelia das recomendações científicas e médicas, acabam por recomendar à população, seja através de discursos, seja por comportamentos, um maior contato social. Os argumentos variam desde a não gravidade da doença, até mesmo à advertência acerca das consequências econômicas devastadoras do isolamento.

Questiona-se, portanto, se seria possível a responsabilização de tais indivíduos pela não observância, por parte da população, das recomendações médicas, ocasionando a proliferação do surto pandêmico, bem como a morte de pessoas que, influenciadas por tais discursos, tiveram a vida ceifada por terem mantido intenso contato social durante a disseminação viral. Trata-se de problemática que merece maior atenção da doutrina, eis que os atos mediados por influência psicológica, ainda que tenham sido alvo de estudo no direito estrangeiro, não constituem, até o momento, objeto de análise mais aprofundada no seio da literatura jurídica nacional.   

Para ilustrar a questão da causalidade psíquica, em casos envolvendo discursos ou recomendações de autoridades, políticas ou médicas, traz-se à baila o rumoroso caso do terremoto ocorrido na cidade de L’Aquila, capital de Abruzzo, cidade assentada em uma das áreas de maior sismicidade da Península Itálica. 

É sabido que a região tem sido sacudida, durante sua história, por diversos eventos telúricos, sendo que o primeiro tremor de terra que se tem notícia data de 3 de dezembro de 1315. Outros tantos terremotos se seguiram a este, destacando-se o abalo sísmico ocorrido em 1703, em que mais de três mil pessoas perderam a vida e diversas construções da cidade, entre elas as igrejas, ruíram. Tendo em vista o abandono em massa da cidade, o papa Clemente XI resolveu enviar padres e freiras com o fim de repovoar a região. O terremoto de maior repercussão, no entanto, deu-se nos idos de 1786, ocasião em que nada menos que seis mil pessoas pereceram. 

Em termos jurídicos, contudo, adquiriu relevo o sismo de L’Aquila, de magnitude 6,3 graus na escala de Richter, ocorrido em 6 de abril de 2009, às 3h32, quando 309 pessoas perderam a vida, além de terem sido registrados 1,6 mil feridos. Quase cem mil pessoas tiveram ainda que deixar às pressas o centro histórico [2]. A Itália recordou no último dia 6 o aniversário de 11 anos do terremoto que devastou a cidade. A tradicional procissão em homenagem às vítimas da tragédia não ocorreu este ano, em virtude da pandemia do coronavírus. Janelas e varandas das casas na localidade, contudo, permaneceram iluminadas durante a madrugada [3].   

Cumpre registrar que o abalo principal ocorreu em um contexto de instabilidade sísmica que já durava vários meses, principiando em junho de 2008. Antes da fatídica data, já havia sido registrado um choque de 4,1 graus às 15h38 horas do dia 30 de março de 2009. No dia seguinte ao abalo de maior magnitude, foi convocada uma reunião pelo chefe do Departamento da Proteção Civil, Guido Bertolaso, em L’Aquila, com o objetivo de fornecer aos cidadãos de Abruzzo toda a informação à disposição da comunidade científica sobre a atividade sísmica das últimos semanas. A Comissão de Grandes Riscos teria, no entanto, segundo a versão da acusação criminal, emitido mensagens tranquilizadoras para a população, ao não recomendar que os populares abandonassem suas casas [4], não obstante mais de 400 tremores terem sacudido a região por mais de quatro meses.

Foi proposta ação penal relativamente a 42 vítimas (37 mortos e cinco feridos). Isso porque, de acordo com a acusação, só em relação a essas pessoas lesadas é que o nexo de causalidade entre a conduta denunciada aos arguidos e a opção de permanecer em casa à noite entre 5 e 6 de abril foi verificada. No resultado da primeira instância, o Tribunal de L’Aquila, em sentença proferida em 22 de outubro de 2012 [5], declarou os réus culpados dos crimes que lhes foram imputados, em relação a 33 pessoas (29 mortos e quatro feridos), condenando-os ainda ao pagamento de indenização por perdas e danos a favor de algumas das partes no processo civil em curso, conjuntamente e a título solidário.

O Tribunal de Recurso de L’Aquila reformou parcialmente a decisão de primeiro grau [6], alegando que nem todos os membros da Comissão de Grandes Riscos poderiam ser responsabilizados, e confirmou apenas a condenação do vice-presidente de Proteção Civil, Bernardo de Bernardinis, autor de uma polêmica entrevista na televisão, cujo conteúdo foi considerado, mesmo em segunda instância, indevidamente tranquilizador [7]. O Tribunal de Cassação, na sentença n. 12478/16, de 19 de novembro de 2015, negou provimento aos recursos de Bernardo De Bernardinis e confirmou a sentença de segundo grau [8].

A Corte de Cassação considerou um nexo de causalidade psíquico entre a comunicação externada e a decisão dos cidadãos de L’Aquila de permanecer em suas casas. A escolha condicionada das vítimas, portanto, representa o chamado evento psíquico que determina o evento naturalista da morte ou lesão. Para tanto, a corte estabeleceu um método de avaliação da causalidade psíquica, não muito diferente do da causalidade naturalista, a fim de fornecer uma explicação adequada da influência exercida pelo estímulo psíquico no processo causal do evento, utilizando como parâmetro as máximas de experiência da comunidade [9].

Restou reconhecida, nesse caso, a existência de um nexo de causalidade psíquico, diverso da tradicional causalidade física ou mecânica, comprovável por meios tecnicamente seguros. A doutrina alemã há muito vem debatendo situações semelhantes, à luz do § 823, I, do BGB, tendo sido elaborados critérios de imputação específicos, como a fórmula do desafio (Herausforderungsformel[10], embora o tema seja controvertido em sede doutrinária e jurisprudencial.

À luz do ora exposto, e partindo-se do pressuposto da existência de uma causalidade psíquica, pode-se indagar se os indivíduos que estimulam um comportamento desviante dos padrões técnicos e científicos adotados internacionalmente podem ser responsabilizados civilmente pela disseminação do coronavírus em determinado seio comunitário ou relativamente a certos e específicos indivíduos. A influência de certo ocupante de cargo público, por exemplo, na psique individual ou no comportamento coletivo pode gerar a sua responsabilização pelos danos daí decorrentes?

Um determinado segmento doutrinário parece negar tal vínculo psicológico, evidenciando a preeminência do livre arbítrio do indivíduo [11]. Sustenta-se, neste ponto, que a autodeterminação pessoal [12] é ontologicamente capaz de eliminar completamente a incidência de uma psique na outra [13], interrompendo qualquer conexão de condicionamento [14]. Segue-se que uma conduta comunicativa, com o objetivo de influenciar o comportamento de outras pessoas, nunca poderia realmente ser definida como a causa desta.

Em que pese o livre arbítrio do indivíduo pareça efetivamente ocupar papel de destaque no comportamento adotado, figurando como exceção a hipótese de responsabilização, certas peculiaridades do caso concreto, tal como a relevância do cargo ocupado pelo comunicante e o grau de incitação praticado, podem acabar por ensejar a responsabilidade civil daquele que estimula ou encoraja determinada conduta sabidamente prejudicial  à saúde ou integridade física de terceiros. Certo é que em muitos países a causalidade psíquica é acolhida, embora nem sempre os julgados adentrem o mérito da questão [15].

Uma vez fixada a responsabilidade do responsável pela comunicação da recomendação indevida, deve-se analisar ainda a aplicação do disposto no artigo 945 do Código Civil de 2002, que trata da concorrência de culpas. A doutrina majoritária, no entanto, entende que a “culpa da vítima” constituiria uma questão meramente causal  [16]. Há de se questionar, nesse ponto, se aquele que descumpriu as regras do isolamento, embora influenciado por terceiro, deveria arcar com parte dos prejuízos suportados. Uma análise preambular da problemática parece indicar que a resposta a esta pergunta é afirmativa. A incitação e o encorajamento dificilmente aniquilarão por completo a vontade do lesado, de forma que não parece acertado que a imputação da responsabilidade recaía integralmente sobre o agente infrator.

As problematizações ora expostas de forma breve merecem maior aprofundamento, visto que a temática desperta apaixonados e controversos debates no direito estrangeiro, embora ainda não tenham sido enfrentados com profundidade pela doutrina nacional.

 


[1] A peculiaridade da causalidade psíquica, muitas vezes denominada pela doutrina alemã de causalidade mediada psiquicamente (psychisch vermittelte Kausalität) (LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadenersatz. 3. Auflage. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 131), tem por nota característica a influência mental que um primeiro ator exerce em um segundo, sem que tal fenômeno possa ser cientificamente comprovado através de leis naturais (ZHANG, Mia. Aktiv psychische Kausalität im Deliksrecht. Berlim: Duncker & Humblot, 2016, p. 14). A causalidade mediada psiquicamente distingue-se do choque nervoso” (Schockschaden), no direito civil alemão, pois nesta última hipótese não há que falar em ato voluntário do lesado ou de um terceiro participante, mas de uma reação involuntária daquele que sofre a lesão nervosa (WALDKIRCH, Conrad. Zufall und Zurechnung im Haftungsrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018, p. 376).

[11] Sustenta-se que, em regra, o lesado deve suportar todos os prejuízos negativos aos seus interesses legais. Forst menciona mesmo um princípio de autorresponsabilidade (Selbstverantwortungsprinzip) (FORST, Stephan Philipp. Grenzen deliktischer Haftung bei psychisch vermittelter haftungsbegründender 
Kausalität. München: WF, 2000, p. 124).

[13]Another point concerns our expectations concerning individuals. We conceive them as independent persons able to determine with more or less freedom their acts. We expect them to resist undue influences from outside” (ZIMMERMANN, Reinhard; KOZIOL, Helmut; KOCH, Bernhard A.; WINIGER, Bénédict (Eds.). Essential Cases on Natural Causation. Wien, NewYor: Springer, 2007, p. 253)

Cícero Dantas Bisneto é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia; mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); e membro do IBERC.