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Ao discorrer publicamente sobre os motivos por que pediria exoneração do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro atribuiu ao presidente da República condutas que, se provadas, tendem a constituir múltiplos crimes, em especial os de falsidade ideológica e prevaricação ou embaraço à investigação de organização criminosa.

O primeiro teria consistido em fazer publicar no Diário Oficial da União ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal com falso referendo do ministro da Justiça e falsa informação de que o ato se dera a pedido do exonerado. O segundo, em substituir o diretor-geral para que o novo nomeado pudesse ser contraparte de interação direta do presidente da República para fins de colheita de informações e por preocupação com inquéritos sob supervisão do Supremo Tribunal Federal.

O procurador-geral da República requereu ao Supremo Tribunal Federal que determinasse a instauração de inquérito para apurar o que chamou de supostos fatos noticiados. Destaca-se o seguinte parágrafo do requerimento:

“A dimensão dos episódios narrados, especialmente os trechos destacados, revela a declaração de ministro de Estado de atos que revelariam a prática de ilícitos, imputando a sua prática ao presidente da República o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”.

O esforço de cautela é evidente (“A dimensão… revela a declaração… de atos que revelariam…”), embora desnecessário: a narrativa de um relato não traduz, por si só, fé em seu conteúdo, tanto mais em requerimento de instauração de investigação criminal.

O aspecto mais controvertido do requerimento está na parte final desse parágrafo: “…o que, de outra sorte, poderia caracterizar igualmente o crime de denunciação caluniosa”. Esse segmento provocou discussão sobre o escopo do inquérito a ser instaurado, em especial sobre se abrangia a conduta de Sergio Moro em sua fala final como ministro de Estado.

O procurador-geral da República declarou à imprensa que “o inquérito apura fatos” e que “vai apurar fatos relativos a ambos”. Esse é, com efeito, o discurso mais frequente das autoridades de persecução penal a propósito do objeto das investigações criminais que elas investigam fatos, e não pessoas.

O presente trabalho pretende examinar, contra o pano de fundo desse pedido de instauração de inquérito, três questões:

I  Qual é o escopo jurídico de uma investigação criminal?

II — O que é necessário para a instauração de uma investigação criminal a partir de uma notícia-crime?

III — A investigação criminal pode ser bifronte, com apuração simultânea dos fatos noticiados e de possível crime contra a administração da Justiça do noticiante ao efetuar a notícia?

Não há, no presente trabalho, viés de opinião sobre os personagens envolvidos e suas hipóteses de conduta. Ele pretende apenas examinar questões jurídicas pouco debatidas, mas  postas em evidência pelo caso.

O escopo jurídico das investigações criminais
O bordão segundo o qual “o inquérito apura fatos” não resiste à análise da casuística. Perante o próprio Supremo Tribunal Federal, é comum que o procurador-geral da República requeira a instauração de inquérito cujo balizamento não é apurar quem praticou determinado fato ou elucidar todas as circunstâncias da prática desse fato, e, sim, investigar o que exatamente determinada pessoa fez, a partir de elemento inicial que aponta para essa pessoa como autora de fatos incertos ou ilícitos ainda por elucidar.

Ainda que a linguagem comporte contorcionismos diversos, o escopo da investigação é, na segunda hipótese, claramente subjetivo: a investigação partirá da pessoa para os fatos. Se a descrição tivesse de ser binária, faria mais sentido dizer e é o que normalmente ocorre que a pessoa apontada será investigada.

Mas o dilema que opõe pessoas a fatos a propósito do escopo das investigações criminais é falso. Investigações criminais não têm por objeto nem pessoas, ao menos não no Estado Democrático do Direito, nem fatos, cujos contornos e dimensões a princípio não se conhecem os fatos podem, inclusive, nem ter ocorrido. O componente inicial de toda investigação criminal é uma suspeita, isto é, uma percepção inicial, geralmente incompleta, que remete a uma hipótese de infração penal.

Os contornos iniciais da suspeita podem ser predominantemente objetivos ou predominantemente subjetivos conforme as circunstâncias. O encontro de cadáver com sinais de morte violenta criará suspeita em torno do fato e ensejará investigação concentrada em apurar a autoria de provável homicídio. A visão de pessoa ensanguentada, mas não ferida, com faca na mão, criará suspeita em torno da pessoa e ensejará investigação da materialidade de provável crime violento.

O Estado Democrático de Direito acomoda sem dificuldades investigações criminais originadas por suspeitas predominantemente subjetivas. Há clara distinção entre investigar uma suspeita, ainda que ancorada em uma pessoa, e investigar uma pessoa. A questão-chave é a viabilidade jurídica da suspeita, o que remete à segunda questão

II  Standard probatório para a instauração de investigação criminal

Chama-se de notícia-crime a transmissão formal à autoridade de persecução penal da suspeita de um ilícito penal
ainda que o grau de convicção do noticiante seja mais elevado, a autoridade não deve, ao receber a notícia-crime, ir além de um juízo de suspeita. Como é intuitivo, não é qualquer suspeita nem qualquer notícia-crime que determinará a instauração de investigação criminal. Por um lado, uma notícia-crime aparelhada, isto é, acompanhada de elementos de convicção, pode abreviar ou até tornar dispensável a investigação criminal, conforme a solidez e o potencial de elucidação de seus  elementos. Por outro lado, haverá notícias-crime tão vagas ou tão improváveis que a instauração de investigação criminal não será cabível.

A viabilidade jurídica da suspeita dependerá de plausibilidade fática, objetividade perceptiva e concretude narrativa. A plausibilidade fática exige contraste do conteúdo da suspeita com a realidade sensível a notícia de um grande complô, com ramificações internacionais, que empreende perseguição implacável de pessoa comum, embora não seja impossível, não tem plausibilidade fática, ou seja, não faz sentido à luz da normalidade. A objetividade perceptiva remete à origem intelectual da suspeita ela deve basear-se em apreensão racional e racionalmente explicável de fato, dado, elemento ou informação; sonhos e palpites não autorizam atuação estatal investigativa. A concretude narrativa mensura a proximidade contextual entre sujeito e objeto da suspeita noticiar que “há corrupção no governo” ou que “a milícia matou Marielle” pode até fazer sentido e decorrer de apreensão intelectual da informação, mas a distância contextual entre o noticiante e o possível fato tende a ser tamanha que seu relato é demasiado vago para autorizar a atuação estatal investigativa.

Deve ser afastada a noção de que a instauração de investigação criminal exige justa causa. A menos que a expressão esteja aí empregada em sentido próprio e específico, o sistema de Justiça criminal estaria incorrendo em autofagia procedimental se impusesse standard probatório para instaurar investigação criminal idêntico ao que impõe para avaliar a viabilidade probatória de ação penal.

III — Investigação criminal bifronte?

A investigação criminal parte, como visto, de uma suspeita, que precisa ser plausível quanto à hipótese fática, objetiva quanto à percepção e concreta quanto à narrativa. Como se trata de juízo inicial e precário sobre o que possa ter acontecido, admite-se razoável fluidez de seus contornos e mesmo alguma grau de alternatividade de hipóteses. A título de exemplo, a descoberta de grande quantidade de moeda estrangeira oculta no interior de uma parede pode ser o fio da meada de variadas modelagens penalmente relevantes ou até de nenhuma, sem que haja obrigação de apostar, já de início, em uma única hipótese.

Mas a flexão da suspeita inicial encontra limites, determinados pelo próprio conceito de suspeita e pelo imperativo de racionalizar o acionamento do aparato estatal investigatório. A suspeita não pode ser, ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário, sob pena, inclusive, de não se poder considerar existente e criar situação hamletiana para o investigador criminal.

Não é de se excluir que surja, na formação da suspeita, dúvida sobre a veracidade da notícia, tanto mais quando resulta apenas ou essencialmente de um relato trata-se de suspeitar da própria suspeita. Mas, para a autoridade instaurar a investigação criminal, a soma vetorial dessas duas suspeitas a de que houve o ilícito penal noticiado e a de que a notícia seja deliberadamente falsa não pode ser zero; se for, a autoridade não terá, a rigor, formado juízo de suspeita algum.

A hipótese mais frequente é, contudo, a de que uma das suspeitas seja mais densa. Deverá ser ela, então, a nortear o escopo da investigação. A suspeita menos densa só pode tornar-se o norte da investigação se a suspeita antes tida por mais densa se revelar, com alguma nitidez, falsa. Deve haver consecutividade, e não concomitância, não só a bem da lógica, como ainda para fazer uso mais eficiente do aparato investigatório.

IV — O caso concreto
O ex-ministro Sergio Moro fez relato capaz de ensejar juízo de suspeita de clara viabilidade jurídica o que ele relatou era plausível diante das circunstâncias; ele articulou racionalmente o relato, indicando como e onde e quando teria apreendido os fatos; e ele tinha inteira proximidade contextual com os fatos. Ademais, ele apresentou elementos de corroboração em princípio críveis.

Os fatores que poderiam respaldar a hipótese de que o relato de Sergio Moro constitua denunciação caluniosa são pouco densos. A mágoa e o vezo de prejudicar o presidente da República, caso existam, não parecem capazes de ensejar relato tão extenso e detalhado, com tão clara ancoragem contextual. Os elementos de corroboração apresentados pelo ex-ministro, bem como a já comprovada inexistência de assinatura dele no ato de exoneração do diretor-geral do Departamento de Polícia Federal e de pedido deste de exoneração, tornam a hipótese de denunciação caluniosa ainda mais remota.

A suspeita de que Sergio Moro tenha cometido denunciação caluniosa só pode ganhar corpo, portanto, caso a suspeita em torno do presidente da República se revele, ao menos indiciariamente, falsa. A investigação só terá condições práticas de avançar se puder nortear-se, ao menos em seus primeiro movimentos, por apenas uma dessas suspeitas.

Não há sentido processual, de resto, em que a hipótese de denunciação caluniosa por Sergio Moro seja investigada em inquérito supervisionado pelo STF. A competência do foro especial para supervisionar investigação de  não-titular de prerrogativa de foro é estreita: limita-se às hipóteses de conexão ou continência e, mesmo assim, conforme jurisprudência do próprio STF, desde que haja alto grau de imbricação entre as condutas do titular e do não titular de prerrogativa de foro, a ponto de recomendar, a bem da coerência das decisões judiciais, a reunião das investigações.

Mas não há como falar em conexão ou continência entre as condutas atribuídas ao presidente da República e a hipótese de denunciação caluniosa de Sergio Moro, pois o delineio das suspeitas não comporta a ideia de que um e outro possam ter cometido crimes se o presidente da República tiver delinquido, Moro não o terá feito, e vice-versa. Por isso, a investigação só pode passar a apurar a suspeita de denunciação caluniosa do ex-ministro se ficar demonstrado, com alguma nitidez, que os crimes que ele atribuiu ao presidente da República não ocorreram.

V — Conclusões
Investigações criminais apuram, antes de tudo, suspeitas. Para respaldar a instauração de investigação, a suspeita deve ser plausível, objetiva e concreta. A suspeita contra o presidente da República, conforme levantada por Sergio Moro, assim se afigura; a suspeita contra Sergio Moro, não.

Pode ser que o procurador-geral da República tenha pretendido apenas externar cautela e imparcialidade com a ressalva da possibilidade de denunciação caluniosa de Sergio Moro. Nesse caso, contudo, a ressalva terá sido redundante: esse crime sempre é possível em tese quando alguém dá causa à instauração de investigação criminal.

Caso a intenção tenha sido a de impor ao aparato investigatório apuração simultânea da conduta de Sergio Moro, a imposição é inexequível. Múltiplos passos investigatórios em torno da outra suspeita têm de ser cumpridos antes que a suspeita de denunciação caluniosa ganhe corpo, porque esta depende da demonstração, ainda que por indícios, de que aquela é falsa.

À questão da inexequibilidade, soma-se a da competência: o STF não seria competente para supervisionar a investigação criminal relativamente a Sergio Moro, pois, se ele tiver cometido crime, o presidente da República necessariamente não o terá, não havendo de se falar em conexão ou continência, e, sim, em alternatividade mutuamente excludente de hipóteses delitivas.

Marcelo Miller é procurador da República no Rio de Janeiro.

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