Opinião: Os carteis da crise em em tempos de pandemia

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A defesa da concorrência está prevista constitucionalmente como princípio da ordem econômica, o que impõe uma conduta proativa do Estado que assegure a regulamentação e a fiscalização das condutas de mercado.

Diante disto, o combate as práticas de cartelização deve ser a regra, haja vista que as infrações à ordem econômica podem impor à população efeitos extremamente prejudiciais, como o sobrepreço, ou a estabilização no tempo e no espaço da qualidade dos produtos e serviços, resultado último da ausência de competição.

O cenário de colusão estabelecido pelos agentes representa uma estagnação dos esforços competitivos pelo ganho saudável do mercado, transmutando-se em mero partilhamento dos lucros, a partir de acordos e condutas cooperativas, isto é, aquilo que seria a disputa saudável de competidores passa a ser um mero arranjo.

É por isto que a concorrência é tão salutar e deve ser prestigiada e defendida, uma vez que a sua proteção assegura ao consumidor a obtenção de produtos e serviços melhores e mais baratos.

Desde, possivelmente o primeiro caso de cartel julgado pelo Cade — o processo CSN / Cosipa / Usiminas (processo n.º 08000.015337/94-48, de 27 de outubro de 1999) —, o aperfeiçoamento da autoridade nacional vem atingindo níveis equiparados aos das mais atualizadas jurisdições — principalmente norte-americana e europeia. [1]

A jurisprudência internacional faz referência ao caso Standard Oil Company e os irmãos Rockfeller como precursor do combate às estruturas de mercado. Tratava-se ainda do ano 1.870, quando os irmãos Rockfeller[2], a partir da produção de petróleo, realizaram concentrações horizontais e verticais daquele mercado relevante, dominando efetivamente o mercado. Tal fato, levou o Senador norte americano John Sherman, em 1.888, a requerer a abertura de uma Comissão para analisar o funcionamento do “trust[3].

A experiência norte-americana tem servido de questionamento e reflexão para os aplicadores da legislação de concorrência, cita-se DAVID J. GERBER, “o direito e a experiência antitruste dos Estados Unidos têm desempenhado papéis centrais no desenvolvimento do direito da concorrência virtualmente em todo o mundo… O sistema norte-americano tem sido referência como um ‘modelo’, e este papel modelar tem formatado a dinâmica do desenvolvimento do direito da concorrência[4]

Fazendo este paralelo com o direito antitruste norte americano, a evolução da jurisprudência daquele país acompanha o contexto histórico e econômico da nação, ora havendo a construção de posicionamentos tolerante e ora restritivos.

Notadamente, a evolução jurisprudencial e legal é fruto de seu tempo, daí ser verdade a máxima pregada por Oliver Holmes sobre a interdisciplinaridade na atuação do jurista.[5]

A regulação dos mercados não pode se desvencilhar do evento histórico. Prova disto é a própria evolução jurisprudencial que não considerou ilegal a fixação de preços no caso APPALACHIAN COALS 288 U.S. 344 p. 360-361) de 1.933, mas alterou essa perspectiva no case UNITED STATES.Socony-Vacuum Oil Co., 310 U.S. 150, 223. US: Supreme, 1940.[6]

E, ao compararmos o atual momento histórico da Pandemia da Covid-19, encontraremos notável semelhança com o período pós-crise de 1.929, quando a jurisprudência norte-americana se debruçava sobre o critério de julgamento conhecido como as “regras da razão”. Trata-se do período conhecido como “Era Brandeis”, 1915 a 1939, tornando-se paradigmático o case Board of Trade of City of Chicago, (246 U.S. 231). [7]

Ainda que as evidências empíricas, à luz da jurisprudência e doutrina do direito da concorrência, comprovem a assertividade da adoção do critério per se, a partir dos anos 1970, percebeu-se uma alteração nos julgamentos para a aplicação daquilo que ficou conhecido como “regra da razão”, destacando-se o caso State Oil v. Khan.[8]

A legislação europeia, lado outro, preferiu uma tipificação mais restritiva, definindo as infrações em ilícito “por objeto” e ilícito “por efeito”, tal qual trazido no artigo 101 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia — TFUE.[9]

O direito brasileiro, a partir da leitura da lei de defesa da concorrência, parece ter recepcionado esta interpretação, tipificando as infrações em condutas por objeto e por efeito, exigindo a aplicação jurisprudencial das regras per se e das regras da razão, com as devidas adequações.

Sob esta lógica, a pandemia trazida pelo novo coronavírus impactou drasticamente o funcionamento da economia, impondo a retração automática de ofertas e demandas para alguns setores, assim como um aumento expressivo para outros, havendo a alteração do funcionamento natural dos mercados.

E, a partir da escassez natural de determinados produtos, torna-se factível imaginar que repentinamente alguns agentes econômicos foram guindados à posição dominante do mercado, isto é, passaram a ditar, por sua vontade, o funcionamento e os preços daquele setor, algo conhecido como price maker.

Neste cenário, de eventual precificação abusiva e aumento arbitrário dos lucros, surge a necessidade de se instrumentalizarem medidas passíveis de reestabelecer a concorrência e permitir a entrada de novos players, garantindo-se assim, em última análise, a compra de bens essenciais a preços mais acessíveis.

Direcionado ao ordenamento jurídico do Direito Privado, o Senador Antônio Anastasia elaborou o PL n° 1179, de 2020, para quem:“As dramáticas consequências da pandemia do Coronavírus (Covid-19) já se fazem sentir na economia e na sociedade brasileiras, ao exemplo do que ocorre em mais de uma centena de países”.

O projeto de lei atua no direito privado de maneira transversal, dispensando tratamento ao regime concorrencial a partir do capítulo IX, em especial no artigo 14, contextualizando o Senador Anastasia em sua justificativa que:

(viii) Algumas sanções por práticas anticoncorrenciais ficam suspensas, a fim de atender às necessidades da escassez de serviços e produtos. Cria-se um parâmetro para que, no futuro, certas práticas sejam desconsideradas como ilícitas em razão da natureza crítica do período da pandemia.

As medidas propostas pelo Senador Anastasia são justificadas pelo desassossego que o atual momento impõe, devendo por isto haver a necessária contextualização da crise para a tomada de decisão, como no clássico caso da queima da safra de café, autorizada por Getúlio Vargas para eliminar o excedente produtivo e manter o valor da saca estável.

O PL 1179/2020 trabalha em dois eixos fundamentais: (i) O controle de condutas e (ii) O controle das estruturas de mercado, isto é, das concentrações.

As propostas direcionadas ao controle de condutas, aptas a contextualizar a repressão das infrações de mercado, direcionam-se à descriminalização temporária e contextual do preço predatório, também chamado de preço abusivo, e da desnecessidade de justificativa para a cessação de atividade próspera.

A infração do preço predatório consiste na redução abusiva do preço do bem abaixo do seu valor de custo. Trata-se de uma concorrência desleal que visa obter a dominação do mercado com a consequente eliminação da concorrência, com o objetivo final de, ao fim e como monopolista, elevar-se os preços dos produtos tornando-se um price maker. [10]

Já a cessação de atividade econômica próspera pode ser vista como abuso de posição dominante, isto porque, quando os bem estão entrelaçados em cadeia produtiva, há um natural interesse público no bom funcionamento da empresa, devendo ser investigado o porquê de uma atividade econômica, em especial aquela situada em posição dominante, ser abruptamente encerrada. Dessa forma, vem o Projeto de Lei trazer a justificativa para o contexto da pandemia.

No outro eixo, análise das estruturas de mercado, trazido no terceiro item do PL, busca-se excluir do controle dos atos de concentração, artigo 88 da Lei do Cade, os contratos associativos, como a Joint Venture, com o objetivo de empreender dinamismo e mobilidade aos agentes de mercado, suspendendo-se a análise prévia deste ato, a cargo da Superintendência Geral e passível de impugnação ao Tribunal Econômico. Legalmente, há o prazo de 240 (duzentos e quarenta) dias para a análise o que, se consumado, pode resultar na extinção daquele agente econômico, durante a pandemia.

Por fim, os parágrafos 1º e 2º do citado artigo 14 fazem a necessária menção ao momento de pandemia vivenciado, justificando e impondo à autoridade concorrencial a contextualização deste cenário, quando do julgamento das condutas dos agentes de mercado.

A história revela que a postura da inquietude e da proatividade devem ser a regra nesse momento de tamanha crise econômica, social e humanitária, fazendo novamente menção ao caso APPALACHIAN COALS 288 U.S. 344 em que se reconhece a legalidade no ajuste de preços entre concorrentes, haja vista que o cenário econômico dos Estados Unidos estava devassado após a crise de 1.929, impondo-se por isso a análise do contexto fático da situação vivida (Supreme Court. Appalachian Coals, Inc. v. United States, 288 U.S. 344 (1933). US: Supreme, 1933).[11]

Esta decisão se alicerça em entendimento já esposado pela Suprema Corte e m 1918, baseada no voto do Justice Louis Brandeis (Chicago Board of Trade v. United States, 246 U.S. 231, 238 ) [12], aplicando as “regra da razão”.

A situação atual de crise, a grave escassez de insumos e, principalmente, a ameaça à vida propõem e impõem uma nova visão sobre a colusão de empresas, surgindo, a partir daí, a ideia de cartéis de crise, o que exigirá dos Julgadores a adoção da “regra da razão”..

Não se trata de um enfraquecimento da lei de defesa da concorrência ou mesmo uma anistia às punições das condutas anticompetitivas, mas de uma necessária e premente contextualização das condutas tomadas em caráter de excepcionalidade e de forma temporária, com vistas a permitir aos agentes econômicos uma sobrevivência no mercado e ativo o abastecimento de produtos e serviços.

Situações excepcionais exigem leituras diversas.

 é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

Raphael Boechat é mestre e doutor em Direito pela PUC-MG e professor de Direito Administrativo e Econômico.

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