Maffini e Carvalho: MP 966: Vacina indevida ou precaução normativa?

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O ensaísta, jornalista e ativista político José Ortega y Gasset ousava dizer que “o exagero é sempre a exageração de algo que não o é”. No Brasil, talvez por razões culturais provavelmente relacionas com uma insuficiente compreensão de conceitos e princípios jurídicos básicos, há uma tendência à produção legislativa demasiadamente detalhada e, não raro, redundante.

Aliado a esse excesso analítico típico da produção normativa nacional, existe, em nosso país, um descomunal receio de ser responsabilizado, um certo medo de agir em não havendo uma permissão normativa explícita, situação esta para a qual contribuem os órgãos de controle, que, não raras vezes, agem de maneira desproporcional, culpando — ou tentando responsabilizar – a conduta tomada, anteriormente, pelo agente público.

Por conta de tal tradição é que o surgimento da Medida Provisória 966, de 13 de maio de 2020, que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”, vem sendo apontada por respeitáveis cientistas do Direito, como supérflua ou redundante, enfim como “mais do mesmo”. E o supostamente “mesmo” decorreria de normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB, especialmente as referidas nos seus artigos 22 e 28, trazidos à legislação pátria por meio da Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, posteriormente “regulamentada”[3] pelo Decreto 9.830, de 10 de junho de 2019.

Ocorre que a LINDB, por mais prodigiosa que tenha sido quanto às alterações introduzidas pela Lei 13.655/18, nunca foi aplicada em um contexto de pandemia. Partindo-se desse pressuposto, e considerando que existem, por força dos efeitos decorrentes da Covid-19, outros fatos que devem ser considerados, deve-se indagar se a referida Medida Provisória 966/20 é uma vacina indevida ou uma simples precaução normativa?

Bem, é inegável que a referida Medida Provisória é uma “gordura” inserida na legislação brasileira, se considerado que a LINDB já poderia servir para os mesmos propósitos. Todavia, trata-se de uma “boa gordura”, pois customiza o que já está normatizado — especialmente nos artigos 22 e 28 da própria LINDB — ao grave momento de pandemia que estamos vivenciando.

De qualquer sorte, deve-se enfatizar desde já que as normas contidas na MP 966/20 não se prestam à criação de um círculo de imunidade de poder, contra o qual todos nós devemos lutar[4]. Desmandos, desvios, atos de improbidade administrativa e mesmo decisões tomadas, em tempos de Covid-19, contra evidências científicas ou contra informações reacionais de saúde pública, serão objeto de controle e de responsabilização de agentes públicos que os perpetrarem, ainda que MP 966/20 possa sinalizar em sentido contrário.

Verdade é que o advento de normas como as contidas na MP 966/20 propicia inegáveis perplexidades, o que impõe uma análise jurídica, tanto quanto possível, isenta de preconceitos ou rompantes retóricos.

Ora, a primeira perturbação decorre do fato de a questão ter sido normatizada mediante o emprego de Medida Provisória[5], o que parece justificável, considerando que as decisões  administrativas relacionadas com a pandemia de Covid-19, embora haja parâmetros decisórios específicos[6], requerem uma velocidade nas tomadas de decisão, a qual, inevitavelmente, culmina por majorar as chances de cometimento de erros.

A par da técnica legislativa utilizada, e considerando que até a data de fechamento deste artigo ainda não houve prolação de decisão, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que suspendesse os efeitos da referida Medida Provisória, passa-se a uma breve análise de seus três artigos, principiando com regra que estabelece que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos (e não somente agentes políticos) fica condicionada a situações de dolo e erro grosseiro. Ora, é inegável a similitude de tal regra com o disposto no art. 28 da LINDB.

O art. 1º da MP 966/20, tanto quanto o artigo 28 da LINDB, parece alvissareiro. É evidente a existência de um verdadeiro clamor punitivista em desfavor de agentes públicos. Todavia, o atendimento a tal clamor, se materializado por meio de formas exacerbadas de interpretação e aplicação das normas de responsabilização dos agentes públicos, produz dois subprodutos extremamente graves. Primeiramente, tem-se uma certa promiscuidade interpretativa quanto à ocorrência de infrações de maior gravidade. De outro lado, o descuido na aplicação responsável de tais conceitos culmina por “criminalizar o erro”, sem que se perceba o mal que isso provoca no desenvolvimento da gestão pública.

Parece ser, pois, possível afirmar que tais normas trazem como decorrência lógica a impossibilidade de responsabilidade por presunções. Exatamente por tal motivo, o que se depreende do art. 1º da MP 966/20 e do art. 28 da LINDB é justamente a proibição de culpa presumida, eis que impôs o ônus argumentativo da constatação do dolo ou do erro grosseiro.

Finaliza-se a presente análise inicial com o destaque necessário à compreensão da incidência do art. 1º, da MP 966/20 e do art. 28 da LINDB sobre os casos de responsabilidade civil dos agentes públicos. Quanto ao tema, há polêmicas que devem ser compreendidas e, se possível, solucionadas. Ocorre que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal estabelece que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Assim, tal norma constitucional estabelece que a responsabilidade civil dos agentes públicos, caso responsáveis por danos causados em desfavor de terceiros, ocorra por dolo ou culpa. Já o art. 28 da LINDB estabelece que a responsabilidade dos mesmos agentes ocorra nos casos de dolo ou erro grosseiro.

Do cotejo de tais normas citadas no parágrafo anterior, resta a dúvida acerca de como se interpretar o conceito de erro grosseiro para fins de responsabilização civil dos agentes públicos. Com efeito, caso se interprete que o conceito de erro grosseiro contido em tais normas (art. 1º da MP 966/20 e art. 28 da LINDB) restringe o conteúdo da norma constitucional, evidentemente se estará diante de uma flagrante inconstitucionalidade. Todavia, caso se interprete que a Constituição Federal deixou em aberto o conceito de culpa, permitindo ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de gradação da culpa indutora de responsabilidade, tem-se aí uma função normativa absolutamente legítima e constitucional. Parece que tais normas se enquadram nesta segunda situação, razão pela qual não parece tratar-se de norma violadora do texto constitucional. Aliás, lembre-se que algumas categorias funcionais são sujeitas a regras legais que, sem qualquer violação ao art. 37, § 6º, da CF/88, já preveem responsabilidade civil condicionada a certas categorias específicos de culpabilidade, como é o caso de magistrados (ex. art. 143, I, do CPC). 

O art. 2º da MP 966/20 se ocupa da definição de erro grosseiro, ao estabelecer tratar-se de situação caracterizadora de “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”[7]. Ainda que verse definição dotada de elevada abstração, certamente servirá para auxiliar na compreensão de tal conceito. Tem sido afirmado que tal compreensão sobre o erro grosseiro teria sido incluída de modo oportunista em razão da iminência de decisões que o atual governo federal sobre protocolos médicos relativos ao tratamento da Covid-19; não se pode descartar que tenha sido esta a intenção. Entretanto, de um lado, por dever de honestidade intelectual, deve-se lembrar, como já referido, que tal definição é a mesma contida no art. 12, § 1º, do Decreto 9.830, editado a propósito de regulamentar o art. 28 da LINDB, sendo que o referido Decreto é de 10 de junho de 2019.

De outro lado, ainda que o propósito do art. 2º da MP 966/20 fosse a imunização de governantes pelas suas futuras decisões, tal desiderato não terá sido alcançado com a edição da MP 966/20, porquanto é um evidente erro grosseiro a estipulação de protocolos ou tratamentos médicos por governantes de qualquer esfera de governo que se fundamentem em convicções pessoais, ideológicas, religiosas, militares e, até mesmo, astrológicas, ou em qualquer outro critério que não sejam aqueles referidos no art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/20, o qual coloca a ciência como verdadeira presidente das políticas públicas a serem levadas a efeito.

Por fim, o art. 3º da MP 966/20[8] em muito se assemelha ao disposto no art. 22 da LINDB[9]. Com efeito, trata-se de preceito que visa a “mitigar os efeitos da lei de acordo com a realidade, temperar a generalidade (abstração ínsita à atividade legislativa) com a especificidade (fatos concretos), colmatar lacunas, notadamente aquelas decorrentes da complexidade, todas estas tarefas são, dentre outras, tarefas naturais do intérprete contemporâneo”[10]. O art. 3º da MP 966/20 e o art. 22 da LINDB servem para consagrar “o ‘primado da realidade’; nele, a exigência de contextualização produz uma espécie de “pedido de empatia” com o gestor público e com as suas dificuldades. Esta é outra lógica bastante presente no projeto: se o controlador quer se colocar na posição de tomar ou substituir decisões administrativas, é preciso que enfrente também os ônus que o administrador enfrenta”[11].

Entre acertos e atropelos normativos, e diante de um novo colorido exposto pela pandemia, parece indene de dúvidas que a MP 966/20 tratou dos mesmíssimos temas já abordados pela LINDB; quanto a isso, parece não haver mais incisivos questionamentos, ressurgindo apenas a dúvida quanto ao propósito normativo, sobretudo diante da técnica legislativa empregada.

Espera-se que a MP 966/20 seja um reforço retórico, uma precaução normativa, ao que a LINDB, contundentemente, já previra, lançando alicerces voltados à segurança jurídica na tomada de decisões pelos agentes públicos. A pandemia não comporta vacinas indevidas e exageradas!

 é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor adjunto de Direito Administrativo na UFRGS, juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral do RS e advogado do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados.

 é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.

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