Entre George Floyd e a crise do paradigma do Direito

Diário de Classe O presidencialismo de coalizão: um problema de Direito

George Floyd, cidadão americano de 46 anos, foi assassinado[2] em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. No momento de sua morte, pesava sobre seu pescoço o joelho do policial Derek Chauvin — que assim permaneceu por mais de oito minutos –, enquanto os policiais J. Alexander Kueng e Thomas K. Lane ajudavam na imobilização da vítima, e Tou Thao assegurava que não houvesse intervenção na ação policial. Um ato brutal e absolutamente desproporcional ao ilícito imputado a Floyd: a suposta utilização de uma cédula falsificada de 20 dólares para compras em um mercado.

O absurdo excesso policial do caso de Floyd serviu de gatilho para o alastramento de uma onda de protestos antirracistas[g1] inflamados nos Estados Unidos que já tomam conta do noticiário daquele país há mais de uma semana.[3] Em outros países, como Inglaterra, Dinamarca, Nova Zelândia, França, Austrália, já houve protestos em solidariedade à causa e há a previsão de outros em um futuro próximo. Muitos cidadãos americanos não toleram que nada seja feito contra a violência policial, que volta e meia retorna às manchetes com acontecimentos escandalosos que desprezam os ideais democráticos e pluralistas que norteiam a Constituição dos Estados Unidos.

Não me interessa aqui discutir os pormenores do caso — se Floyd resistiu à prisão; se ele efetivamente cometeu o crime descrito; ou se o tamanho do homem assustou os policiais; aliás, questões que sob perspectiva alguma permitiriam atitude criminosa e tão cruel por parte das autoridades —, mas não há como não fazer coro aos manifestantes e declarar o patente racismo estrutural que permeia a triste situação. Floyd era negro e foi assassinado por um policial branco, em uma ação policial que, não há dúvidas, poderia ter sido evitada. Ele já estava algemado, imobilizado e sem chance alguma de revidar. Apenas teve forças para suspirar um desesperado “I can’t breathe”[4] antes de falecer.

O caso de Floyd — reitero: assassinado logo após ter sido capturado por alegadamente ter utilizado uma nota falsificada de US$ 20 — pode muito bem ilustrar acontecimentos graves que se passa(ra)m no próprio Brasil, em que atos menores rapidamente tomaram proporções desastrosas. Casos em que o sujeito é denunciado por ter furtado dois baldes d’água; que é rejeitada a aplicação da insignificância a furto de barras de chocolate em razão da reincidência; ou que é negada ao paciente, morador de rua, a insignificância em caso de furto de bermuda de R$ 10, em virtude da reincidência (remeto o leitor a textos do professor Lenio Streck, aqui[5] e aqui[6]). [g2] Não quero, nem de longe, igualar a gravidade do assassinato de Floyd com a privação da liberdade dos autores dos atos ora listados, apenas quero demonstrar que é possível estabelecer uma relação estrutural entre os casos. Tanto no caso de Floyd, nos Estados Unidos, quanto nesses fatos sucedidos no Brasil, não há coerência nem integridade na aplicação do Direito democraticamente instituído. Desse ponto de vista, a discussão que o ato criminoso sofrido por Floyd fomenta deve, sim, servir de reflexão para as mazelas do nosso País.

O que deve ser compreendido é que o fracasso da área jurídica em lidar com casos como esses está intimamente conectado ao modo de produção de Direito, relacionado, tradicionalmente, com a solução de problemas interindividuais, como já escreve Streck há décadas.[7] Sem nenhuma intenção de aprofundar o aspecto jurídico americano neste texto, devo frisar que os atores dos vários papéis desempenhados no campo jurídico brasileiro continuam a enxergar a sociedade a partir de um modelo arcaico, destituído dos elementos de transmodernidade, complexidade e transindividualidade que abarrotam o tecido social de conflitos transindividuais.

Basta lançar um singelo olhar sobre algum estudo estatístico sobre desigualdade social e preconceito racial para perceber as dificuldades que pessoas mais pobres e negras enfrentam para alcançar o mesmo patamar econômico de uma pessoa branca de família de classe média.[8] Não desejo dar razão à criminalidade nem defender qualquer espécie de justiça por detrás de crimes, mas entendo que é injusto e, mesmo, errado manter essa cegueira deliberada sobre o próprio locus a partir do qual emana o discurso jurídico dominante. Afinal, ficar calado, em momentos como este, é ser conivente ou, no mínimo, consentir com a perpetuação de um status quo insustentável.

Veja-se que temos uma Constituição Federal, já com mais de 30 anos, que prevê um amplo catálogo de direitos e garantias, normas que asseguram as liberdades individuais e normas que instituem programas sociais a serem seguidos pelas autoridades. Não obstante o avanço democrático formal, o senso comum (Warat[9]) do imaginário jurídico continua mergulhado, de modo estanque, em uma concepção simplificadora de Direito, como se o fenômeno jurídico fosse redutível a mera técnica, descolada de uma realidade social sempre em mudança. Claro que houve progresso em questões importantes: imagine-se se os tribunais ainda proferissem decisões absolutórias em favor de maridos que praticam estupro contra as esposas, sob o fundamento de que há “exercício regular de um direito”.

O modo dominante de produção/concretização do Direito no Brasil traz exemplos contrários ao que deveria haver em um Estado Democrático: (i) temos diversos casos de pessoas que foram mortas por policiais, à semelhança do próprio Floyd nos EUA, o que se depreende de tantas notícias veiculadas nos últimos tempos, sem que se veja qualquer espécie de punição aos criminosos[10]; (ii) o Poder Judiciário, tomando para si o poder de decidir sobre o futuro do Brasil (como se uma vanguarda iluminista [g3] fosse, nas palavras do ministro Barroso[11]), vale-se de práticas ativistas pelo “bem” da nação (bem para quem?), como se pode ver ao impedir a nomeação de Alexandre Ramagem como Diretor-Geral da Polícia Federal, ou quando decidiu o STF sobre a criminalização da homofobia, efetivamente “criando” crime; (iii) apesar de todo esse esforço do STF de apresentar o seu ativismo como algo bom, mantém o seu Presidente plena discricionariedade de pautar os processos quando bem entender; (iv) nessa mesma linha, os Presidentes das Casas Legislativas também gozam de total discricionariedade para pautarem os projetos, inclusive no que toca ao espinhoso assunto do impeachment; (v) o presidencialismo de coalizão, exigindo o estabelecimento de acordos políticos para garantia da governabilidade, amarra as agendas do Executivo e do Legislativo e muitas vezes condena o funcionamento governamental a práticas nada republicanas[12]. A lista segue…

É claro que tudo isso guarda uma relação fundamental com o controle das decisões. Com accountability. E, no Brasil, sabemos da histórica dificuldade quando tratamos de prestação de contas dos agentes públicos. É difícil imaginar um servidor público de alto escalão sendo punido por prevaricação, concussão ou peculato. Os policiais, no caso de Floyd, agiram como agiram também em função de certa proteção estrutural que um policial branco goza ao agredir um negro — isso é uma (grave) deficiência na punição de autoridades.

O Direito é um instrumento de transformação social (Streck[13]). Isso não quer dizer que ele possa ser instrumentalizado para qualquer fim. O Direito não pode ser “interpretado” ad hoc para corresponder a determinado fim; o fim é que é determinado pelo próprio Direito, fruto de uma deliberação democrática em conformidade com a Constituição Federal. Precisamos entender que a disfuncionalidade do Direito vigente decorre de um modo-de-pensar jurídico que nunca superou o esquema sujeito-objeto: (i) se há policiais autoritários que atuam à margem da lei, não nos iludamos de que isso se deve sempre e somente à existência de pessoas que querem fazer o mal — pelo contrário, muitas vezes isso tem a ver com a falta de instrução e preparo desses profissionais para o enfrentamento de situações de miséria, o que reverbera na sua ignorância ou até mesmo desprezo sobre seu respectivo papel constitucional, como se fossem sujeitos “isolados” no mundo; (ii) se há práticas autocráticas/antidemocráticas por parte das maiores autoridades dos três Poderes da República, isso é sintoma de uma confusão relacionada ao seu próprio entendimento acerca do Direito, como se fosse possível que cada um dos Poderes atuasse isoladamente, sem nunca atingir a própria estrutura que subjaz aos problemas, o que dificulta e prejudica a condução do Estado brasileiro.

Ao que parece, as autoridades — e a comunidade jurídica – brasileiras nunca entenderam que o paradigma da filosofia da linguagem, principalmente aquela de corte heideggeriano e gadameriano, já superou, há cerca de um século, a consciência assujeitadora do mundo. Nenhum intérprete jamais compreendeu algo sem estar, desde sempre, em contato com o mundo que contém esse algo. A supervalorização do papel do intérprete acarreta toda espécie de problema em uma democracia, e isso se torna sobremaneira visível quando tratamos de autoridades. Isso porque, no fim das contas, se não estamos suficientemente (cons)cientes da intersubjetividade desvelada pelo paradigma atual — ainda mais se somos autoridades —, continuaremos a humilhar o sujeito que furtou dois pacotes de bolachas para dar de comer à família e fazer política na arena judiciária.[14]

Destaco que isso tudo não serve de desculpa para a má atuação desses agentes; apenas viso à compreensão de que o problema é sistêmico e está enraizado no modo como o Direito é ensinado em cursinhos e faculdades, encarado pela própria sociedade brasileira e aplicado nos mais diversos âmbitos, seja na atuação policial, no exercício do mandato de um chefe do executivo ou na atividade jurisdicional. O que se passou no caso Floyd e ocorre(u) em diversas oportunidades no Brasil não é só resultado de um preconceito firmemente acorrentado à nossa estrutura social, mas também é corolário de um eterno descaso daqueles que trabalham com o Direito e que têm o poder de gerir o Estado em favor dos nobres objetivos constitucionais. Não se pensa no futuro da sociedade enquanto sociedade, apenas em respostas rápidas para problemas superficiais, que nunca atingem o fundo da questão. Todos percebemos a falta de concretização da “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, da CF), da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades (art. 3º, III, da CF) no Brasil. Será que a preocupação das autoridades se limita à oferta de cotas para ingresso nas universidades ou à liberação de um auxílio emergencial de R$ 600 em tempos de coronavírus? Continuamos com a sociedade de estamentos de que fala Raymundo Faoro em Os Donos do Poder: o poder público no País continua sendo exercido como se privado fosse (não só a corrupção entra aqui, mas também o paradigma individualista de produção do Direito), e não há nenhuma perspectiva de que estejamos nos encaminhando para a sua superação.

E todos esses problemas de base do pensamento jurídico geram problemas na aplicação do Direito: (i) um juiz já disse que o réu tinha conduta social reprovável, “apesar de se tratar de uma pessoa da classe média”[15]; (ii) ou que o acusado tinha personalidade distorcida ou perigosa[16] (incrível como algumas sessões de audiência são melhores para chegar a essa conclusão do que várias sessões de análise e psicoterapia); (iii) olhando em direção ao futuro, no horizonte que se abre, a iminência da inteligência artificial para a produção de decisões judiciais aproxima os tribunais do tão almejado fordismo na solução dos processos — atacamos sempre os efeitos colaterais dos desarranjos do Brasil, afinal bater as metas do CNJ é sinônimo de paz social, certo? Não sou um cético de inovações tecnológicas que venham para o bem do Direito, mas fico imaginando como que um robô “inteligente” será capaz de automatizar decisões corretas se até hoje não entendemos bem o que é uma decisão correta[17] — em meio a jargões como “Dworkin era um relativista” ou “Kelsen era um exegeta”, quero ver a máquina separar o joio do trigo.

O momento presente revigora debates que devem pautar a comunidade jurídica. Podemos ter os melhores e mais eficientes métodos de baixar pilhas de processos, escrever petições esquematizadas e desenhar gráficos estatísticos, mas isso nem de longe rompe com o pano de fundo em que está assentado o modelo de Direito que ainda predomina. E a mudança certamente será encontrada a partir da compreensão intersubjetiva pressuposta em um ambiente democrático. A transformação do paradigma atual exige diálogo e responsabilidade dos lidadores do Direito. George Floyd não foi assassinado no Brasil, mas, do modo como as coisas andam, poderia ter tido aqui o mesmo destino. Enquanto isso, a Constituição continua como bonitas folhas de papel, contendo as eternas promessas a serem concretizadas no desigual país tupiniquim.

Guilherme de Oliveira Zanchet é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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