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Vedovato e Silva: Sobre o pedido de refúgio

No último dia 7, dois respeitáveis juristas, Vladimir Passos de Freitas e Bernardo de Almeida Tannuri Laferté, publicaram na ConJur o artigo intitulado “Pedido de refúgio de estrangeiro não suspende processo de extradição”.

Em virtude de estarmos no mês de comemoração do Dia dos Refugiados, 20 de junho, momento em que o tema adquire maior relevância nos meios midiáticos, do perceptível aumento do interesse pela temática por toda a sociedade, assim como de medidas que têm sido tomadas e que vêm enfraquecendo a proteção garantida às pessoas refugiadas e aos solicitantes de refúgio, entende-se necessário que seja feito um contraponto a tal texto, tendo em vista que não é, nem de longe, o que se pode encontrar nos debates sobre o tema.

No artigo supracitado, os autores defendem que o artigo 34 da Lei 9474/97 deveria ser interpretado conforme a Constituição Federal, o que, segundo eles, levaria a ser suspenso o processo de extradição apenas após a decisão do Supremo Tribunal Federal para aí, sim, aguardar-se a decisão sobre a concessão do refúgio. Defendem tal ponto pois tal dispositivo não poderia interferir na definição de competência do STF, posto ser uma norma infraconstitucional e a competência do STF deveria ser definida apenas pela própria Constituição.

Para justificar sua posição, os autores fazem alusão à necessidade de que a interpretação afaste o absurdo. Também fazem alusão à teoria da ponderação de princípios de Alexy, apesar de tal teoria ser mais adequada à análise de colisões a partir de casos concretos. Além disso, a resposta da violação de competência também não parece ser a melhor saída, por mais que possa ser a primeira que vem à mente, pois foi a usada quando do processo Marbury vs. Madison, em 1803, no caso que foi conhecido como sendo o dos Juízes da Meia-Noite nos Estados Unidos.

Todavia, por mais que, por inércia, seja compreensível se concluir da forma acima, não é possível concordar com a posição trazida no texto. Primeiramente, por conta da interpretação que não leve ao absurdo, para utilizar o raciocínio trazido pelos signatários do artigo em comento, pois propõem que o STF avalie a questão e depois submeta sua decisão ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), quando o melhor seria que o STF decidisse para, inclusive, rever o decidido pelo órgão responsável por analisar os pedidos de refúgio. Em outras palavras, os autores sugerem que se deve, então, movimentar a maior corte do país, gastando recursos e tempo importante dos principais juízes do Brasil, para somente depois dizer que não pode haver a extradição por conta da análise da solicitação de refúgio. Tal procedimento parece absurdo, assim como a interpretação que a ele leva.

Parece, portanto, mais lógico que o STF possa, depois da análise do Conare (inclusive com recursos ao Ministro da Justiça), fazer o controle judicial, como foi no caso Battisti, citado pelos professores que brilhantemente defendem sua posição no citado texto. Ou seja, o absurdo seria tomar o tempo do tribunal mais importante do país para, somente depois, dar a palavra ao órgão que analisa o refúgio, que é extremamente relevante, mas, no geral, menos central para a nação quando comparado ao STF.

O absurdo, então, seria exigir que o STF decidisse provisoriamente a questão, permitindo que outro órgão analisasse o caso, após a decisão da Suprema Corte. Além disso, em todos os cenários com pedido de refúgio seria exigido do STF avaliar o cabimento de refúgio, aumentando o trabalho do Pretório Excelso.

Além disso, causa estranheza o fato de ter sido rotineiro em alguns textos, principalmente dos que tentam desqualificar o direito ao refúgio, o fato de citarem casos de supostos pedidos abusivos, como se essa fosse a dinâmica da maioria dos casos, passando a impressão aos leitores de que o instituto do refúgio seja um mecanismo nobre, mas que não atende aos seus fins, que é proteger pessoas que  demandam proteção internacional.

Sobre retirar a competência do STF, é fato que também não acontece, e isso se conclui pela simples análise dos casos em que é impedida a extradição trazidos pela Lei 13.445/17 (Nova Lei de Migração). Aliás, exigir que o STF aguarde a avaliação do pedido de refúgio não é retirar sua competência. Na verdade, tal procedimento permite que o STF decida depois que todos os órgãos envolvidos tenham se manifestado. Para tanto, vale análise da NLM, que impede a extradição nos casos previstos no seu artigo 82. Nesse ponto, tirando o inciso I, que é repetição da Constituição Federal (artigo 5º, LI), os demais impedem que o STF conceda a extradição nas seguintes hipóteses:

II o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente”  é a norma infraconstitucional que define o que é crime, pela lógica do artigo, isso seria uma violação à competência do STF;

“III o Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando”  se a lei infraconstitucional ampliar a competência do judiciário brasileiro, seria, pelo raciocínio apresentado no artigo, uma violação à competência do STF;

“IV a lei brasileira impuser ao crime pena de prisão inferior a 2 (dois) anos”  supõe-se, então, pelo raciocínio desenvolvido que esses crimes com penas menores ficam fora da competência do STF?;

“V o extraditando estiver respondendo a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido” de acordo com a argumentação do texto, aqui a situação poderia ficar ainda mais complexa, pois ficaria na mão do autor da ação penal retirar do STF a possibilidade de conceder a extradição, até mesmo em casos de ação penal privada;

“VI a punibilidade estiver extinta pela prescrição, segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente” vale destacar que a prescrição também é definida por lei infraconstitucional;

“VII o fato constituir crime político ou de opinião” hipótese que se refere expressamente a duas das possibilidades do reconhecimento do refúgio.

Suspender o processo de extradição por causa do pedido de refúgio não exclui competência do STF, mas apenas indica quando ele poderá analisar o pedido.

Pelo que se vê, a melhor saída é permitir que tudo esteja analisado antes do STF se manifestar, inclusive para que o STF possa verificar se a decisão foi tomada de forma correta. O pedido de refúgio, portanto, é prejudicial à extradição. Dessa forma, para não se permitir o absurdo acontecer, é necessário que o pedido seja decidido antes. Se não for caso de refúgio, o STF analisa. Doutra maneira, poder-se-ia fazer o STF avaliar profundamente, como de costume, uma extradição de forma inócua, pois o extraditando seria beneficiário de refúgio. Algo parecido aconteceria no tocante à identidade ou até mesmo da nacionalidade do extraditando. Não será o STF que irá fazer todas as averiguações, mas órgãos específicos.

Se não é a pessoa processada ou condenada, não há que se avaliar pedido de extradição. Se o extraditando for brasileiro, não haverá pedido de extradição. Mesmo que o STF avalie o caso a posteriori, fará tal ação com todas as informações à mão.

A utilização desarrazoada de tempo e recursos da Suprema Corte poderá causar danos ao sistema jurídico brasileiro. A interpretação conforme a Constituição é, dessa forma, permitir que o STF seja movimentado quando o seu peso for realmente necessário. A contrario sensu, a Suprema Corte não seria proporcionalmente acionada.

Vale destacar que se houvesse um processo de análise das solicitações de refúgio mais célere, o eventual prejuízo do aguardo da decisão sobre o reconhecimento ou não teria um impacto pequeno nos casos de não reconhecimento e posterior processo de extradição.

Por fim, destaca-se que não se pode aceitar, frente a instituto jurídico tão relevante e que representa enorme avanço em termos de proteção das pessoas, motivo pelo qual foi implementado em diversos países, tendo o Brasil, historicamente, uma posição de destaque, tentar se encontrar justificativas que impeçam a proteção estabelecida pela lei e nos documentos internacionais relacionados, colocando em xeque esse significativo avanço civilizacional, como tem sido observado nas medidas relativas ao fechamento das fronteiras, como a Portaria Interministerial nº 255, de 22 de maio de 2020, e nas tentativas de implementação de portarias, como a já revogada de nº 666, de 25 de julho de 2019 (objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 619), que evidentemente enfraquecem o refúgio e contrariam as disposições legais em vigor.

Subscrito por (apoiam seu conteúdo):

Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
João Alberto Alves Amorim, doutor em Direito Internacional, ex-advogado do ACNUR em São Paulo, professor de Direito Internacional da UNIFESP, coordenador da CSVM/UNIFESP
Liliana Lyra Jubilut
Roberta Camineiro Baggio (CSVM/UFGRS)
Gustavo da Frota Simões (CSVM/UFRR)
Gilberto Antonio Marques Rodrigues, professor de Relações Internacionais da UFABC
Denise Martin Coviello
Lucia Maria de Assunção Barbosa
Brunela Vieira de Vincenzi (CSVM/UFES)
Andrea Pacheco Pacífico (CSVM/UEPB)

 é advogado, doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor-doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador Fapesp do projeto “Direito das migrações nos Tribunais – a aplicação Nova Lei de Migração Brasileira diante da mobilidade humana internacional”.

 é pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (NEPO/Unicamp), pesquisador colaborador pelo NEPO/Unicamp e Research Fellow pela American University, Washington D.C., professor-doutor de Direito Internacional da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e membro do programa e pós-graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF/UFRR) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello (CSVM/UFRR).

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Promotor não pode adquirir bens ligados a processo no qual atuou

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Representante do Ministério Público que adquire bens de massa falida por meio de pessoa interposta, no curso de processo judicial em que atuou, incorre no delito de violação de impedimento, tipificado no artigo 177 da lei que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência das sociedades empresariais (Lei 11.101/2005).

Assim, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a condenação do promotor de justiça aposentado Wanderlei José Herbstrith Willig, por adquirir um imóvel em conluio com sua ex-esposa e um investidor do mercado imobiliário, no curso da falência de uma indústria de extração mineral. Os três envolvidos foram condenados a dois anos e seis meses de prisão, além do pagamento de multa. A pena corporal foi convertida em prestação de serviços comunitários.

“O tipo penal veda que o agente legalmente impedido obtenha, por qualquer meio, bens pertencentes à massa falida. O objeto jurídico é a lisura e a moralidade da Justiça. Secundariamente, protege-se o patrimônio dos credores”, escreveu no acórdão o desembargador-relator Rogério Gesta Leal.

A denúncia do MP

Segundo a denúncia do Ministério Público, datada de 1º de outubro de 2012, o imóvel da massa falida estava locado desde 2003 à empresa “Big Lenha”, localizada em Cachoeira do Sul. A empresa é propriedade de Rosana Luchese Willig, mas explorada, de fato, por seu então marido, Wanderlei, desde janeiro de 2003. Após prévio ajuste entre os três denunciados, o investidor Milton Cerentini apresentou, nos autos do processo de falência, propostas de compra do imóvel – um galpão – em seu nome. As petições foram assinadas Rosana, advogada e prima de Milton,.

Narra a peça que o juízo da falência homologou a venda do imóvel em julho de 2008. Ato contínuo, Milton passou a permitir que Wanderley seguisse utilizando o imóvel para a ‘‘Big Lenha’’, sem pagar aluguel. Milton, o dono legal à época, nem mesmo registrou a aquisição junto ao cartório de imóveis.

Em novembro de 2010, Milton transferiu, mediante contrato de compra e venda, o domínio do imóvel a Wanderlei. O contrato foi apresentado nos autos do processo de falência por petição assinada por Rosana. Assim, segundo o MP, com a colaboração de Rosana e a interoposição de Milton, cumpriu-se a combinação original – do qual resultou a compra do imóvel por pessoa interposta, crime tipificado na Lei 11.101/2005.

A denúncia destaca a conduta de Wanderlei, que era promotor de justiça na Comarca de Cachoeira do Sul na época dos fatos – aposentou-se em maio de 2011: ‘‘O denunciado, na condição de promotor de justiça, atuou no processo de falência 006/1.03.0001685-4 em inúmeras oportunidades, mesmo após a estipulação do contrato de locação imobiliária em favor da empresa ‘Big Lenha’ e após a alienação do imóvel para o corréu Milton’’.

Sentença condenatória

A juíza Rosuita Maahs, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Cachoeira do Sul, acolheu integralmente a denúncia do MP, condenando os três réus às sanções do artigo 177 da lei recuperacional. Disse que o conluio ficou perceptível após o sindico e procurador da massa falida, Zarur Mariano, ter dito em juízo que Milton serviu de “laranja” na compra do galpão, já que o verdadeiro comprador foi Wanderlei. A confidência partiu da própria Rosana, ao procurar Zarur.

A julgadora observou que o interesse de Wanderlei na compra do pavilhão ficou evidente, já que a empresa “Big Lenha”, em nome de sua então esposa, estava instalada em um dos galpões, muito antes da compra ser efetivada, conforme comprova o contrato de locação anexado aos autos. E mais: disse que a prova testemunhal mostrou que Vanderlei era, de fato, quem administrava a chácara, cuidava da lenheira e contratava os empregados. Ou seja, tinha todo o interesse em adquirir o imóvel onde estava instalada sua empresa.

“De outra banda, o fato de Milton nunca ter exigido a escritura pública e providenciado no registro do imóvel em seu nome (embora tenha declarado a compra do pavilhão e os alugueis recebidos em seu imposto de renda), somado ao fato de nunca ter cobrado aluguel da ‘Big Lenha’, igualmente demonstra a participação dos acusados na empreitada criminosa”, finalizou a juíza.

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Processo 006/2.12.0003772-3 (Comarca de Cachoeira do Sul)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.