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Mottola e Mottola: O juiz das garantias é uma solução?

No dia 8 do corrente mês, foi publicado na ConJur o artigo “Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva…“, de autoria dos advogados Ruiz Ritter e Aury Lopes Jr., no qual os autores criticam a crença em uma “blindagem psíquica dos juízes” e defendem a criação do juiz das garantias como solução para o problema.

A frase “enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz — o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial”, resume a ideia central do artigo e é bem um exemplo do motivo pelo qual as nossas leis penais acolhem as teorias acadêmicas em prejuízo da eficácia que provém da realidade em que deveriam se inserir.

O que é essa “originalidade cognitiva do juiz”?

É a condição de ignorância em relação ao caso penal que recebeu para instruir e julgar. Para os defensores da tese, só o desconhecimento do que foi apurado na investigação dos fatos garante a imparcialidade do julgador para o exame das provas que vierem a ser produzidas na instrução do processo.

Pode soar bonito, mas, no fundo, é apenas retórica!

No Brasil, as sentenças penais de primeira instância raramente são reformadas por má análise da prova. Considerando que as três instâncias que as reexaminam (tribunais de segunda instância, STJ e STF) são dotadas de “originalidade cognitiva”, pode-se tomar os números como evidência de que a esmagadora maioria dos juízes criminais do nosso país não tem a sua imparcialidade comprometida pelo que quer que seja.

Além disso, se a questão é evitar os “pré-juízos”, não há como desconsiderar que, no processo crime, o conhecimento da prova se dá de maneira gradativa e, como regra, inicia pela prova acusatória em razão da ordem estabelecida pelo CPP. Ela não é “despejada” em um único instante, para uma única análise. Mesmo tendo contato com o processo apenas na fase de sentença, o juiz precisará ler peça a peça, ouvir (em tempos de gravação) depoimento a depoimento. E é inevitável que, à medida em que ele avança (e não apenas ao final), faça uma análise crítica daquilo que leu e ouviu, formando vários pré-julgamentos que vão se confirmando ou não a cada novo elemento introduzido.

Por isso a convicção que vai justificar a sentença quase nunca será fruto de um exame único e ininterrupto da totalidade dos documentos e provas contidos na instrução, mas será o produto de uma sucessão de convicções provisórias confirmadas ou postas de lado.

Ter contato com a prova do inquérito em nada prejudica a imparcialidade, já que o juiz aprende a formar sua convicção a partir dos elementos que a lei autoriza. Se o ato decisório a ser proferido não permite mais o uso de determinada prova, o julgador simplesmente retira-a da equação e analisa a repercussão disso.

A verdade é que imparcialidade não tem a ver com ignorância. Tem a ver com isenção. Que, por sua vez, é um atributo do caráter, aprimorado, no caso do juiz, pelo treinamento e pela experiência. Assim como o médico é treinado para controlar a empatia e manter a mente clara, e o policial é preparado para dominar o medo e enfrentar os perigos da profissão, assim também o juiz é ensinado que o processo criminal, como o futebol, é uma “caixa de surpresas” e nenhuma convicção pode ser tida como definitiva enquanto a última testemunha não tiver sido ouvida, e o último argumento, apresentado.

E por isso, com absoluta naturalidade, diariamente juízes revogam prisões que decretaram e absolvem réus em processos cujas denúncias receberam, embora, ao recebê-las, tenham identificado elementos suficientes para embasar a acusação.

Em outras palavras, a imparcialidade de quem julga não depende do momento processual em que tomou conhecimento das provas, mas da capacidade de não formar convicções definitivas antes de o processo estar pronto para ser julgado.

A criação do juiz das garantias é um fato. A verdade por trás do fato é que ela não garante coisa alguma, exceto morosidade. Em nome de um “princípio tonitruante” justificou-se a duplicação de juízes nos processos criminais de primeira instância, uma exigência de difícil atendimento em comarcas pequenas, especialmente quando separadas por enormes distâncias, como ocorre em vários estados brasileiros. Um problema que se agrava com a proibição de o juiz das garantias voltar a atuar em qualquer processo no qual tenha desempenhado essa função.

Gostem ou não os defensores da tese, o bom juiz não torce por ninguém. Ele busca apenas a verdade e a correta aplicação da lei.

Exceções existem? Claro que devem existir, mas elas são exatamente isso: exceções, cuja causa da quebra de imparcialidade ninguém pode afirmar com certeza estar relacionada com o conhecimento da prova do inquérito ou com a análise de medidas cautelares. Para esses casos existem a arguição de “suspeição” e um exasperante leque de recursos. E, se eles não forem acolhidos, então, quem sabe, o problema não seja a incapacidade de superação de pré-julgamentos, mas apenas a diversidade natural de aplicação do direito e análise da prova.

 é juiz de Direito da comarca de Araranguá, do Poder Judiciário de Santa Catarina.

 é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

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O juiz das garantias e o fim do faz-de-conta

Que blindagem psíquica possuem os juízes brasileiros que os diferenciam dos demais? E não só os diferencia dos demais juízes, senão dos demais seres humanos? Nenhuma. A premissa é: o juiz, enquanto ser-no-mundo, também constrói imagens mentais a priori (no sentido kantiano adaptado, ou seja, antes da “experiência completa”), também decide primeiro para depois buscar os argumentos que justificam a decisão já tomada (parafraseando a clássica passagem de Franco Cordero) e também padece com a dissonância cognitiva e o efeito primazia. São diversos os estudos e pesquisas de campo demonstrando o imenso prejuízo cognitivo que decorre dos pré-juízos.

Por outro lado, quantos estudos comprovam a fantástica “blindagem” psíquica dos juízes brasileiros? Como justificar que uma mesma pessoa possa atuar na investigação preliminar, proferindo diversas decisões complexas e invasivas, para depois entrar no processo com “abertura cognitiva” suficiente para dar ensejo a um contraditório real e efetivo? Podemos prescindir do modelo de doble juez ou da prevenção como causa de exclusão da competência (no sentido de que não pode ser o mesmo juiz da fase pré-processual aquele que ao final irá instruir e julgar)? Não existe nenhuma teoria de base e pesquisa para justificar esse argumento!

A realidade do processo penal e que não se quer desvelar é: a defesa sempre entra correndo atrás de um imenso “prejuízo cognitivo”. Ela sempre chega à fase processual em desvantagem e não raras vezes, já perdendo por um placar cognitivo negativo considerável, quando não irreversível. O processo não é mais que um faz de conta de igualdade de oportunidades e tratamento. O juiz já está na imensa maioria dos casos psiquicamente capturado [1] pela tese acusatória, até então tomada como verdadeira e geradora de graves consequências decisórias.

Enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial —, o processo penal brasileiro não passará de um jogo de cartas marcadas e um faz de conta que existe contraditório. O próprio conceito de contraditório precisa ser reconfigurado para exigir também a igualdade de tratamento e oportunidades na dimensão cognitiva.

É preciso que se entenda isso de uma vez por todas, porque a oportunidade que se tem em mãos com o juiz das garantias suspensa atualmente pela famigerada “liminar Fux” pode não aparecer de novo, mantendo o Brasil como exemplo de modelo (neo)inquisitório do século XXI.

Qual é a dificuldade, afinal, de se compreender que todos os seres humanos juízes, inclusive! possuem uma tendência de equilíbrio cognitivo (leia-se coerência entre crenças, opiniões, ações, etc. cognições) cujo rompimento, por insuportável, busca-se sempre evitar, ou, não sendo possível, restaurar, por meio de processos cognitivo-comportamentais involuntários [2] como desde a década de 50 revela a teoria da dissonância cognitiva [3] ; sendo inconcebível que alguém que criou uma imagem mental unilateral sobre um fato, receba uma versão oposta acerca do mesmo fato sem desacreditá-la, diante do mal estar psíquico que inexoravelmente representa?

Ou, então, que uma vez fixada uma primeira impressão sobre alguém, serão mais facilmente aceitáveis informações que a corroborem do que outras que a contrariem, como também já comprovou a psicologia social pelo denominado “efeito primazia”, revelando que as informações posteriores a respeito de alguém são, em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida [4], a qual exerce um direcionamento não apenas das demais cognições a respeito da respectiva pessoa como também do comportamento em relação a ela, fundamento do jargão popular de que “a primeira impressão é a que fica” [5]?

Porque se não há dificuldade, como é que se pode duvidar da inevitável contaminação do juiz pela investigação preliminar na estrutura processual penal atual, considerando que os elementos investigativos constantes no inquérito (entre outros sistemas de investigação), unilaterais por natureza, são as primeiras informações/impressões disponíveis ao juiz a respeito do fato, as quais exercerão forte influência sobre as informações posteriores recebidas no processo, no sentido de adequação a essa primeira imagem mental, para evitar dissonância cognitiva e seus efeitos perniciosos correlatos?

Mais: como é que se pode esperar que um juiz, depois de decretar uma série de medidas restritivas de direitos fundamentais com base nesse mesmo arcabouço informativo parcial interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal e até prisões cautelares —, reforçando cada vez mais a conformação da sua cognição contra o investigado, receba a versão dos fatos apresentada pela defesa na futura fase processual com a mesma tranquilidade cognitiva que receberá a versão da acusação?

Simplesmente não há como concordar com todas essas problematizações ao mesmo tempo. Ou se adere ao argumento inicial fundamentado teórica e empiricamente ou se adere a uma negação genérica e irracional, sem fundamento algum.

E nem precisariam ter sido testadas tais hipóteses teóricas na própria dinâmica de um processo penal concreto para se concluir que o juiz condena mais frequentemente quando conhece a investigação preliminar do que quando é apresentado aos fatos somente na fase processual. Mas foram [6], havendo, inclusive, subsídio empírico específico atualmente para se comprovar que sem juiz das garantias o juiz não passa de um terceiro manipulado no processo penal.

Aliás, tal pesquisa evidencia também outro ponto fundamental à criação do juiz das garantias: a indispensabilidade da exclusão física (ou não inclusão) dos autos do inquérito, exceto provas de natureza cautelar, antecipadas e irrepetíveis [7], sob pena de se esvaziar complemente a eficácia da proposta, na medida em que o contato direto do juiz da fase processual com tais elementos investigativos unilaterais impede, por tudo o que aqui se viu, a preservação da sua necessária originalidade cognitiva para instruir e julgar o caso. 

Em suma, ou se permanece na fantasia infantil de que a jurisdição criminal brasileira é exercida por seres dotados de superpoderes imunes a fenômenos naturais à condição humana ou se admite a falibilidade das decisões e dos julgamentos humanos, sempre influenciados por pré-julgamentos e pré-conceitos, reconhecendo-se a imprescindibilidade do juiz das garantias para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva vigente no processo penal brasileiro.

Ruiz Ritter é advogado criminalista, professor de Direito Processual Penal, doutorando, mestre e especialista em Ciências Criminais (PUC-RS), especialista em Direito Administrativo (PUC-MG) e presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-NH.

 é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.