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Marcos Sampaio: Para além das crises do atual governo

Parmênides de Eleia e Heráclito de Éfeso representam correntes de pensamento antagônicos na filosofia grega, tendo o conflito entre suas ideias marcado profundamente a obra de Platão, que procurou conciliar as duas posições, consertando a visão da constante transformação (panta rei), marcada pela conhecida frase que anuncia ser impossível banhar-se duas vezes no mesmo rio, com a visão parmenidiana da imutabilidade das coisas que se repetem eternamente ao infinito, num ciclo monótono. Logo, se para Heráclito a busca por verdades seria inútil em razão da constante transformação, para Parmênides falta uma maneira de justificar o fluir do mundo.

Ciente de que a via de Aletheia (via do conhecimento) ainda não foi suficientemente vasculhada em matéria política, o caminho dóxa (via de opinião) inspira a construção desse artigo, num momento de impasse político nacional que parece remontar a Tragédia Antígona de Sófocles, num legado em que Édipo parece ter deixado aos filhos brasileiros, de instabilidade constante, inquietação e falta de uma unidade (dentro da diversidade) que conduza o Brasil para o futuro.

Essa bruma que torneia o exercício da presidência da República apresenta tantos episódios complexos e relevantes que, dia após dia, ouvem-se vozes abalizadas sustentando a presença de todos os requisitos configuradores de crime de responsabilidade. O sistema de governo adotado prestigia essa nota de indeterminabilidade e favorece insatisfações sérias em exemplos quase que diários.

Não é por outra razão que a cada movimento político em volta da presidência da República, no Brasil e em toda a América, faz lembrar que nosso presidencialismo tem como principal característica ser crísico (usando a expressão de Edgar Morin [1]), em que antes mesmo de superarmos uma instabilidade, já a substituímos por outra.

E tem sido assim em toda a América do Sul, onde, desde 1978, pelo menos 40% dos presidentes eleitos têm sido contestados por civis que tentaram fazê-los deixar o cargo antes do tempo, como anotou a professora Kathryn Hochstetler [2].

Abaixo da Linha do Equador verificam-se Constituições que estabelecem mandatos presidenciais de quatro a Seis anos, mas a prática revela presidentes que governaram por menos de um ano, alguns meses, poucas semanas e até por algumas horas.

Esses acontecimentos frustram a hipótese essencial relativa às práticas dos sistemas presidencialistas: que os mandatos presidenciais são estáveis e rigorosamente fixados. Na prática, inexorável imaginar um modelo débil em que a população não pode retirar um governante ruim, nem estes conseguem ter garantidos os seus mandatos, conduzindo a consequências de conflitos políticos no presidencialismo que colapsam a própria democracia.

Fortemente influenciados pela Doutrina Monroe, que tinha como lema “a América para os americanos”, a América procurou se afastar das monarquias parlamentaristas europeias, criando um sistema de governo autêntico e estável e que deveria funcionar em todo o continente. Calcados numa excessiva centralização de poder e no estabelecimento de uma autoridade nacional, os conflitos e dificuldades de exercício da presidência, em toda América, têm favorecido essa instabilidade de poder.

A maior parte dos estudos sobre o presidencialismo exibidos na clássica obra de Juan Linz [3] comparou o presidencialismo com parlamentarismo, e foram certeiros em argumentar que as instituições tinham sido pouco estudadas e que era necessário atribuir-lhes cuidadosa atenção, exatamente pela instabilidade política que a centralização do poder causa.

São variados os motivos de contestações dos presidentes, passando por suas políticas econômicas insatisfatórias, por escândalos de corrupção e, por fim, por instabilidade política decorrente do enfraquecimento da base parlamentar de apoio. Isso tem gerado diversas rupturas de mandatos por processos formais de impedimento, mas, por vezes, em diversos casos, os parlamentos optavam por processos de afastamento que não exigiam as supermaiorias do impeachment, retirando presidentes por abandono de cargo (Venezuela, 1993, e Equador, 2000), por incapacidade mental (Equador, 1997) e incapacidade moral (Peru, 2000).

Nos parlamentos, as contestações aos presidentes se apresentam, em grande parte, a presidentes com minoria no Congresso, em que os líderes da oposição encontram implicações de diversas ordens para comprovarem a existência de impasse político que, com algum fundamento jurídico, autorize a interrupção prematura do mandato fixo. Nesse desiderado, anotam-se justificativas derredor do comportamento presidencial inconstitucional com relação ao Congresso ou outras instituições governamentais, como se viu no Equador em 1987 e 1992; no Peru em 1991-1992; e no Paraguai em 1998-1999. Segundo o estudo da professora Kathryn Hochstetler, dos 31 presidentes nessas condições de parco apoio parlamentar, 14 (45%) deles foram contestados e oito (26%) caíram.

No sistema presidencialista, os presidentes inevitavelmente estão à parte e acima de outros atores políticos, com seus poderes especiais e fontes especiais de legitimidade (é o único político eleito com votos em todo o território nacional), mas a sua manutenção não depende apenas de seu prestígio, mas também da capacidade de governar para vitoriosos e derrotados, conciliando os múltiplos interesses representados pelo parlamento.

Na tentativa de estabilizar o sistema, o Brasil vem tentando um presidencialismo de coalizão, na expressão criada pelo cientista político Sérgio Abranches [4], em 1988, significando o ato de fechar acordos e fazer alianças entre partidos políticos/forças políticas em busca de um objetivo específico. Nele, haveria uma divisão do Poder Executivo entre diversos partidos, o que garantiria uma larga base parlamentar governista e, por consequência, uma alta taxa de aprovação de proposições legislativas de interesse do Executivo, se não inteiramente de sua iniciativa.

Todavia, em toda a história republicana brasileira, exceto na República Velha, em que se verificou relativa estabilidade política, interrompida em 1930, a realidade demonstra uma luta sem fim e muitas vezes com critérios reprováveis de presidentes que tentam concluir seus mandatos.

A flutuação política tem sido tão frequente que esse presidencialismo de coalizão se apresenta, ainda hoje, como uma improvisação, sem outro objetivo senão o digno, mas único, de impedir o país de regredir no seu compromisso com a democracia.

A superação das instabilidades do hoje e seus desdobramentos aparentemente não conduzirão à estabilidade política imaginada, mas apenas criarão uma nova janela para outras crises que, infindáveis, levam o país a patinar e se afastar daquilo que deveria guiar os debates sobre as mudanças políticas, que é a capacidade ou não de realizar as aspirações mais profundas que a sociedade brasileira hoje já é capaz de expressar.

Nesse impasse sem fim, a solução para o agora certamente será encontrada, mas dificilmente resolverá a renitente crise que o presidencialismo brasileiro insiste em carregar, sobretudo em face da crise de legitimidade que o alcance da maioria parece não conseguir estancar.

Mais ainda, o espaço político atual demonstra um improvável único ator político que pode assumir a condução do país, afastando-o do cíclico momento de dualismo e radicalização da sociedade. Nesse sentido, sistemas de governo formados por conjuntos de líderes parecem mais adequados ao futuro do país.

Mesmo reconhecendo a relevância do debate teórico derredor da possibilidade constitucional de implantação do parlamentarismo no Brasil atual [5], não se pode negar que a única coisa permanente no universo é a mudança.

A mínima estabilidade política de que o Brasil necessita não parece vir da resolução do embate atual, nem da substituição, agora ou no futuro, do presidente da República, mas da implantação de um sistema de governo mais ampliado pela participação efetiva do parlamento na condução e correção dos rumos do governo. Ou seja, pelo enfrentamento do tema que permita a implantação de um semipresidencialismo ou mesmo do parlamentarismo no Brasil, em que o governante não enfeixe hiperpoderes, mas que formem governos nomeados, apoiados e, eventualmente, dispensados pelo voto parlamentar.

Para quem compreende que a alternativa ao presidencialismo deve ser um sistema parlamentarista, ainda assim necessário faz decidir qual parlamentarismo se defende, buscando assegurar que a fuga do presidencialismo puro não conduza simplesmente, pela via de menor resistência, ao parlamentarismo puro.

Parece sensata a defesa de Juan Linz quando prefere o parlamentarismo ao invés do presidencialismo sob o argumento (entre outros) de que os sistemas presidencialistas são “rígidos”, ao passo que os sistemas parlamentaristas são “flexíveis”, e que a flexibilidade é preferível à rigidez. O pressuposto subjacente é a minimização do risco; e o raciocínio completo é, consequentemente, que um sistema flexível se expõe muito menos a riscos devido a seus mecanismos de autoregulagem.

Para um primeiro passo, talvez a implantação imediata de um semipresidencialismo onde o presidente, eleito pelo povo, tem papel fundamental na formação do governo, com a indicação de um primeiro-ministro que tenha capacidade de dialogar com o Legislativo, gerando uma espécie de coabitação no governo entre presidente e primeiro-ministro possa ser passo inteligente rumo à transição ao parlamentarismo.

Por um caminho ou outro, a redução dos poderes centralizados na presidência da República poderia auxiliar a democracia brasileira a superar o eterno impasse político que vem nos acompanhando, desde a queda do regime getulista.

Resolver o presente, apurando cada fato e responsabilizando os envolvidos, é indispensável (com ou sem impedimento), mas olhar para além de hoje e tentar encontrar caminhos para o futuro pode por termo ao Conflito de Tebas tão marcado no cenário brasileiro.

 


[2] “Rethinking presidentialism: challenges and presidential falls in South America”. Comparative Politics, jul. 2006, pp. 401-418.

Marcos Sampaio é Procurador do Estado da Bahia, advogado, professor, membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Rony Vainzof: Sobre a LGPD e a relevância da ANPD

Em 15 de agosto de 2018, após mais de oito anos de debates na sociedade civil, o Brasil comemorava a sanção do seu mais importante marco normativo em proteção de dados pessoais, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Inspirada na General Data Protection Regulation (GDPR), da União Europeia, a LGPD motivou um necessário efeito cultural sobre o tema, elevou a proteção aos direitos individuais e garantiu maior segurança jurídica para as empresas, atualizando e harmonizando conceitos antes esparsos em diversas normas setoriais. A lei busca conciliar proteção de direitos fundamentais, como privacidade e intimidade, e a contínua transformação e inovação da economia digital, baseada em negócios originados e impulsionados no tripé big data, internet das coisas e inteligência Artificial.

O período inicial de vacatio legis para a complexa implementação pelas empresas foi de 18 meses, passando posteriormente para 24 meses, mesmo prazo conferido pelo GDPR às empresas da UE. Portanto, 16 de agosto do presente ano.

Porém, conforme sanção parcial do presidente da República ao Projeto de Lei nº 1.179/20, o qual dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19, as sanções administrativas foram postergadas para 1º de agosto de 2021, enquanto que os demais artigos da lei, por força da Medida Provisória 959/20, por enquanto, têm eficácia em 3 de maio do ano que vem.

Todo esse cenário pode ser alterado de acordo com a futura apreciação do Congresso à referida medida provisória, sendo possível que ela também caduque, culminando na entrada em vigor da LGPD em 16 de agosto e das sanções administrativas em 1º de agosto de 2021, o que resultaria em enorme insegurança jurídica nesse lapso temporal de eficácia da lei sem a devida regulamentação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Enquanto isso, o tema já é uma realidade em nossos tribunais, inclusive na Suprema Corte, que, recentemente, no julgamento de cinco ações diretas de inconstitucionalidade (ADIns 6.387, 6.388, 6.389 e 6.390), reconheceu o direito constitucional da autodeterminação informativa, suspendendo a eficácia da Medida Provisória (MP) 954/2020, que previa o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o IBGE para a produção de estatística oficial durante a pandemia do novo coronavírus.

Não pode se negar que o Brasil e o mundo enfrentam uma crise sem precedentes neste século e que os atuais esforços estão direcionados para a absorção do impacto devastador dessa pandemia e preservação da saúde dos funcionários e seus postos de trabalho, prejudicando capacidade operacional, recursos humanos ou financeiros para cumprir os requisitos legais e técnicos da LGPD.

Porém, a discussão sobre o adiamento da LGPD ou de suas sanções está muito além da crise gerada pela Covid-19. A ausência da ANPD, órgão regulador, fiscalizador e sancionador da lei, é o fator preponderante. E isso porque a LGPD ainda prescinde de regulamentação em dezenas de relevantes temas, como: 

— Padrões de medidas técnicas e administrativas de segurança;

— Padrões e técnicas de anonimização de dados pessoais;

Prazo para atendimento dos requerimentos dos titulares; 

Auditoria em decisões automatizadas;

Decisão adequação de outros países e cláusulas-padrão contratuais para facilitar a transferência internacional de dados;

Padrões para portabilidade de dados; e

— Normas complementares para definição e as atribuições do Data Protection Officer, inclusive hipóteses de sua indicação.

Mais, a ausência da autoridade enquanto a LGPD estiver em vigor também aumenta o risco de uma perigosa judicialização de demandas em massa que devem e podem ser resolvidas extrajudicialmente, diretamente com as empresas controladoras dos dados ou na esfera administrativa, pois é a ANPD a responsável por:

— Apreciar petições de titular contra controlador após comprovação de não solução de reclamação no prazo estabelecido em regulamentação;

— Implementar mecanismos simplificados, inclusive por meio eletrônico, para o registro de reclamações sobre o tratamento de dados pessoais em desconformidade com a lei; 

Promover na população o conhecimento das normas e das políticas públicas sobre proteção de dados pessoais e das medidas de segurança; 

Estimular a adoção de padrões para serviços e produtos que facilitem o exercício de controle dos titulares sobre seus dados pessoais; e

— Editar orientações e procedimentos simplificados e diferenciados, inclusive quanto aos prazos, para que microempresas e empresas de pequeno porte, bem como iniciativas empresariais de caráter incremental ou disruptivo que se autodeclarem startups ou empresas de inovação, possam adequar-se a lei.

Assim, é cristalina a necessidade da ANPD e a respectiva regulamentação da LGPD, por ser uma norma geral e abstrata, a qual, quando vigente, se não regulamentada, prejudicará a sua aplicação em casos específicos, gerando insegurança jurídica, que é o oposto do que se pretendia com a lei.

Ademais, um cuidado que se deve ter é que a futura ANPD, sob pena de ausência de confiança do mercado, priorize um engajamento construtivo com a iniciativa privada, no seguinte sentido:

— Ao invés de inquisição e sanção, dar prioridade a diálogo, apoio, mútua cooperação, orientação, conscientização e informação; 

— Estimular relações abertas e construtivas com negócios que lidem com dados pessoais, primando pela boa-fé das empresas e nos seus esforços em cumprir a lei; 

— Criar ambientes para inovações responsáveis, como Regulatory Sandboxes, nos quais novos projetos são testados de forma controlada visando a avaliar eventuais e futuras necessidades regulatórias, conforme o caso, mas a posteriori

— Encorajar empresas que se esforcem em agir de forma responsável a demonstrar seus programas de privacidade, segurança da informação, códigos de conduta e gerenciamento de risco, visando a gerar o reconhecimento do mercado por suas boas práticas, incluindo certificações, entre outros padrões de accountability;

— Editar normas, orientações e procedimentos para que as microempresas e empresas de pequeno porte possam se adequar à lei;

— As sanções devem ser a ultima ratio, principalmente e somente quando houver alguma violação dolosa, ou práticas exponencialmente negligentes, condutas reiteradas ou extremamente graves.

Paralelamente, o que as empresas podem fazer nesse ínterim?

Conforme permissivo legal estampado no seu artigo 50, caput, a LGPD garante autonomia às organizações na adequação das obrigações nela existentes, podendo, individualmente ou por meio de associações, formular regras de boas práticas e de governança, que é justamente o epicentro da jornada de conformidade normativa.

Ou seja, a LGPD estabelece parâmetros gerais de boas práticas e governança para as organizações, como: I) demonstrar o comprometimento em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento de normas relativas à proteção de dados pessoais (aplicável a todo o conjunto de dados pessoais e adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas operações); II) ter objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular dos dados, por meio de atuação transparente; III) estar integrado à sua estrutura geral de governança; IV) estabelecer mecanismos de supervisão internos e externos; V) contar com planos de resposta a incidentes e remediação; VI) ser atualizado constantemente; e VII) ser efetivo e contar com monitoramento contínuo e avaliações periódicas.

Assim, conforme as especificidades e o universo de cada setor econômico (saúde, comércio eletrônico, financeiro, startups, por exemplo), as regras de boas práticas e de governança podem ser adaptadas, garantindo autonomia às empresas e associações na adequação das obrigações existentes na LGPD, de forma que o próprio agente regulado estabelece as suas regras internas para a devida conformidade.

Referidos procedimentos adotados nesse período de vacatio da LGPD e de ausência da ANPD podem ser testados e estressados de acordo com a necessidade de cada setor, pois assim que a ANPD for devidamente constituída as entidades poderão contribuir com exemplos práticos do mercado em uma verdadeira construção colaborativa, levando os seus frameworks de governança em proteção de dados para o respectivo órgão regulador, que poderá avaliá-los e reconhecê-los como válidos.

É a autorregulação regulada (Enforced Self-Regulation) da LGPD, prevista no seu artigo 50, §3º, em que as regras de boas práticas e de governança deverão ser publicadas e atualizadas periodicamente e poderão ser reconhecidas e divulgadas pela ANPD.

Esse modelo de regulação é extremamente benéfico ao conciliar interesses públicos caros ao Estado e à sociedade, com o conhecimento e a prática setorial e a necessidade de constante revisão de conceitos inerente a dinamicidade da sociedade atual. Consequentemente, há maior absorção das incertezas e construção de parâmetros melhores de eficácia na regulação.

Assim, há esperança de que as novas definições acerca dos prazos para a eficácia da LGPD despertem no Executivo um olhar ainda mais cuidadoso para o tema, visando à constituição da ANPD, possibilitando o esplendor de uma lei que é um marco para e evolução da economia digital do nosso país.

 é advogado, professor, árbitro especializado em Direito Digital e Proteção de Dados, sócio do escritório Opice, Blum, Abrusio e Vainzof Advogados Associados, coordenador do curso de pós-graduação em Direito Digital da Escola Paulista de Direito, coordenador técnico do Curso de Extensão em LGPD na FIA e coordenador do Grupo de Trabalho de Segurança Cibernética da Fiesp.

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Presgrave e Ogusuku: A cloroquina judiciária para a Covid-19

Vivemos um tempo de exceção, tempo em que aflora a criatividade para os novos instrumentos na tentativa de restabelecer a normalidade e salvar a vida em todos sentidos. A busca pela vacina ou um remédio ao coronavírus é incessante, e experiências com diversos medicamentos são feitas sem qualquer estudo prévio sobre sua efetividade e “custo-benefício” dos efeitos colaterais. A medicação que ficou mais famosa recentemente é a cloroquina, medicamento usado para tratamento de malária, amebíase, artrite e lúpus[iii]. Foi aplicada em diversos pacientes sem se ter qualquer evidência científica acerca de sua eficácia[iv].

No Poder Judiciário não tem sido diferente. Para tentar conciliar o isolamento social com a manutenção do funcionamento do judiciário, muitas novidades têm sido apresentadas ao jurisdicionado e à advocacia.

Nos processos eletrônicos, cujos prazos retomaram o curso no último 4 de maio, a “cloroquina” encontrada pelos Tribunais para a Sars-Cov-2 é a da comunicação virtual. Despachos e sustentações orais à distância e audiências telepresenciais inovam a forma pelas quais os atos processuais são materializados. O uso da tecnologia dos meios de comunicação telepresenciais têm sido usados em larga escala, sem que os estudos e testes necessários a aferir sua eficiência e viabilidade fossem devidamente realizados.

Assim como na medicina a cloroquina se revela controversa com relação à efetividade no combate aos vírus, a prática de atos processuais de maneira virtual também se mostra controversa, e os efeitos colaterais, da mesma forma, podem se mostrar perversos, desequilibrando a relação de custo-benefício da sua utilização.

O primeiro ponto que chama a atenção é o fato de que nem todas as pessoas no Brasil, inclusive advogados, dispõem de tecnologia, de acesso à tecnologia e de conhecimento para o uso da tecnologia. O emprego da tecnologia na Justiça de forma imoderada produzirá a exclusão dos pobres, os que não tem acesso às redes, da Justiça. Será a nova onda de acesso à justiça[v].

Não foi por outro motivo que o Conselho Nacional de Justiça editou as Resoluções 313, 314 e 318, no sentido de que (i) não vivemos tempos de normalidade; (ii) o judiciário, fechado, funciona em regime de plantão extraordinário; (iii) sempre que receber da advocacia a simples comunicação da impossibilidade da prática de um ato o mesmo deve ser sobrestado.

É direito de todos aqueles que participam do processo, o acompanhar e participar dos julgamentos nos Tribunais. A pandemia e o isolamento social não justificam qualquer tipo de alteração nas garantias básicas estabelecidas pela Constituição Federal à advocacia e ao jurisdicionado.

Conforme dito, a implementação de audiências e julgamentos totalmente virtuais se deu em meio à pandemia e sem que fossem realizados estudos e testes avaliativos, tampouco foram os atores processuais munidos das ferramentas necessárias à sua utilização.

E aí cabe uma relevante advertência: nem todos os advogados possuem estrutura para a realização de audiências e sustentações orais à distância neste momento, especialmente considerando a recomendação de isolamento social que impede a utilização regular de espaços públicos e/ou compartilhados de trabalho.

Aos que não dispõem de acesso à tecnologia ou às condições necessárias à realização adequada de sustentações orais à distância é assegurado o direito ao reaprazamento do julgamento, para uma futura pauta presencial. Tal direito decorre das garantias asseguradas à advocacia (art. 133 da CF/88 e art. 7º, IX e X, da Lei 8.906/94).

Tornar obrigatória a sustentação oral eletrônica num momento de isolamento, além de inconstitucional e ilegal, pode significar um crime, na medida que impõe o deslocamento do profissional para locais que tenham recursos tecnológicos e materiais adequados, mas que apresentam risco de contaminação.

Não por outra razão o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu máxima cautela aos magistrados para determinar a prática dos atos nos processos eletrônicos, eis as regras vigentes:

(i) os atos processuais que eventualmente não puderem ser praticados pelo meio eletrônico ou virtual, por absoluta impossibilidade técnica ou prática a ser apontada por qualquer dos envolvidos no ato, devidamente justificada nos autos, deverão ser adiados e certificados pela serventia, após decisão fundamentada do magistrado. (§ 2º do art. 3º da Resolução CNJ nº 314);

(ii) eventuais impossibilidades técnicas ou de ordem prática para realização de determinados atos processuais admitirão sua suspensão mediante decisão fundamentada. (§ 1º do art. 6º da Resolução CNJ nº 314);

(iii) os prazos processuais para apresentação de contestação, impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, defesas preliminares de natureza cível, trabalhista e criminal, inclusive quando praticados em audiência, e outros que exijam a coleta prévia de elementos de prova por parte dos advogados, defensores e procuradores juntamente às partes e assistidos, somente serão suspensos, se, durante a sua fluência, a parte informar ao juízo competente a impossibilidade de prática do ato, o prazo será considerado suspenso na data do protocolo da petição com essa informação. (§ 3º do art. 3º, da Resolução CNJ nº 314)

No plano das audiências em que se colhem depoimento das partes e testemunhas a situação é ainda mais sensível. Na sistemática processual atual, são os advogados os responsáveis pelas comunicações das audiências às suas testemunhas por carta registrada ou pelo compromisso de conduzir as mesmas até as salas de audiências voluntariamente.

É o próprio advogado ou o seu cliente, salvo os casos de condução sob vara, o encarregado de orientar as testemunhas do dia e hora das audiências e os locais de suas realizações, mais das vezes transportando-as até os fóruns. Em período de pandemia não pode o advogado ser obrigado a deslocar-se de seu isolamento para postar cartas às testemunhas, bem como transportá-las de um local para outro, ou mesmo deslocar-se até as residências dessas pessoas para ensiná-las o uso da tecnologia base das audiências.

Daí porque as audiências somente poderem ser realizadas sempre que for possível ao advogado contatar as testemunhas pelos meios eletrônicos, bem como tenham as testemunhas recursos tecnológicos para acessarem as salas eletrônicas disponibilizadas pelos Tribunais. Quando não for possível que tal aconteça, a simples informação prestada pelo advogado é de ser considerada pelo Judiciário para sobrestamento do ato. Esse é a prescrição do CNJ:

(i) as audiências em primeiro grau de jurisdição por meio de videoconferência devem considerar as dificuldades de intimação de partes e testemunhas, realizando-se esses atos somente quando for possível a participação, vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais. (§ 3º do art. 6º da Resolução CNJ nº 314)

Deve-se ressaltar ainda que a responsabilidade pela estabilidade da rede e pelos eventuais problemas de conexão não pode ser imputada aos advogados ou às partes, sendo certo que os Tribunais são responsáveis pelo ato e pelos instrumentos necessários à sua realização, o que encontra fundamento no 453, §2º. do CPC, que estabelece a obrigação dos juízos manterem os equipamentos necessários à oitiva remota de testemunhas (“Art. 453, (…) §2º Os juízos deverão manter equipamento para a transmissão e recepção de sons e imagens a que se refere o § 1º.”).

Respeitando-se os limites legais e constitucionais, e agindo em colaboração com a advocacia, é possível aos Tribunais proporcionar o andamento regular dos processos judiciais. Sem atropelos, sem exageros e sem imposições ilegais. As cautelas determinadas pelo CNJ para a prática de atos processuais nesse período – especialmente no tocante à necessária suspensão de atos requerida por advogados fundada na impossibilidade de realização adequada pela via telepresencial – são imperativas para se evitar nulidades decorrentes de ofensa à ampla defesa e ao contraditório.

O atual regime de exceção impõe a todos os membros da sociedade o espírito colaborativo para que os novos e excepcionais instrumentos que propõem salvar vidas tenham eficácia. É tempo de compreender e de tolerar. Compreender que nem todos estão preparados para sustentações orais à distância e audiências por videoconferência. E tolerar os pedidos de sobrestamento dos atos. Assim, dosando a cloroquina judiciária, usando com moderação as novidades tecnológicas, todos terão direito à jurisdição, como manda a Constituição.

 é doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do IBDFAM.

Alexandre Ogusuku é Conselheiro Federal OAB/SP e presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas do CFOAB.