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Qual será o futuro do controle da administração pública

O período estranho que estamos vivendo naturalmente tem despertado nas pessoas sentimentos e emoções fortes, muitas vezes conectados com questionamentos a respeito de continuidade e mudança. Como será o mundo doravante? Como será o “novo normal”? As perguntas se avolumam e, na ausência de respostas, reflexões e intuições tomam nossa mente de assalto. O direito não fica imune nesse cenário inquietante, ao contrário: não só o direito privado mas, especialmente, o direito público, são objetos de análises, preocupações e vaticínios. O controle da Administração Pública, em especial, tem merecido a atenção dos juristas em razão de sua importância nesse momento: sintetizando uma das muitas preocupações ligadas à pandemia, há necessidade de garantir agilidade nas contratações públicas, buscar eficiência de métodos e processos e, finalmente, resguardar o Erário diante de oscilações de preços tão anormais quanto o momento. Estas breves colocações já sinalizam que a resposta à pergunta “qual o futuro do controle da Administração Pública” não demanda resposta única, tampouco fácil. Entretanto, a observação de alguns posicionamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal talvez ajude a compreender alguns dos desafios que já estão se apresentando. Por outro lado, a verificação do comportamento de entidades controladoras durante o período também pode servir como prenúncio a respeito de sua percepção — das entidades — sobre o novo cenário em construção.

O primeiro entendimento interessante vindo do STF no período é perceptível no julgamento do RE 636.886, que fixou a tese segundo a qual “é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. O julgamento talvez tenha trazido mais dúvidas do que certezas, mas alguns aspectos merecem atenção. Inicialmente, convém analisar a decisão conjuntamente com o entendimento consagrado pelo mesmo STF no tema 897, segundo o qual são imprescritíveis apenas as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. Com efeito, houve expressa referência no voto do relator proferido no RE 636.886 à atualidade do tema 897 para ressaltar que o caso julgado não abrangia tutela específica da probidade. O relator, ministro Alexandre de Moraes, ainda criticou a estrutura dos processos de contas, que não permitiriam ampla defesa e contraditórios realmente efetivos. A crítica não é nova e foi tecida de forma especialmente incisiva na fixação da tese referente ao tema nº 835, que trata do julgamento dos prefeitos pelas câmaras municipais. Trata-se de crítica que merece temperamentos, pois muitas vezes as flexibilizações às regras que materializam contraditório e ampla defesa ocorrem de forma a torná-los tão efetivos (com incontáveis oportunidades de defesa) ao ponto de comprometerem a razoável duração do processo. De qualquer maneira, o julgamento do RE nº 636.886 reforça a importância da devida caracterização do elemento subjetivo nos processos de contas, para fins de responsabilização, ainda que não se esteja concluindo diretamente a respeito da existência de ato de improbidade administrativa. A natureza e as peculiaridades dos “processos de contas” ainda merecem maiores estudos, mas o STF reitera firmemente a importância do devido processo legal, da devida atenção aos elementos subjetivos da conduta e também a necessidade de racionalidade (sobretudo, agilidade) na atuação de controle, para evitar que o passar do tempo — somado à lentidão — comprometam a efetividade do controle.

O segundo posicionamento relevante veio com o julgamento de sete ADIs interpostas em face da Medida Provisória nº 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia. O STF deferiu parcialmente a cautelar para:

a) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 2º da MP 966/2020, no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da MP 966/2020, para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção

No mesmo julgamento, foram firmadas as seguintes teses:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

O julgado sepulta discussão a respeito da constitucionalidade do artigo 28 da LINDB, segundo o qual “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Há um recado claro para gestores públicos: decisões técnicas devem ser embasadas em critérios técnicos-científicos, não estando à livre disposição do voluntarismo de quem quer que seja. Devem ser amplamente motivadas, inclusive para que seja possível conhecer a racionalidade decisória. Há um outro recado, igualmente claro, para os órgãos de controle: é necessário dialogar com o ponto de vista exteriorizado pelo gestor público competente para as decisões administrativas, não cabendo responsabilização diante de condutas pautadas pela boa fé e de escolhas feitas mediante parâmetros técnicos e jurídicos razoáveis e motivados. Nesse particular, o STF afasta o falso dilema entre admitir o erro de boa fé e incentivar a corrupção (em sentido amplo) e permitir impunidade.

Os julgados são importantes e, sendo honesto, já eram objeto de debate no âmbito do controle externo, notadamente dos Tribunais de Contas. O chamado “sistema tribunais de contas” tem aproveitado o momento singular e também as críticas — muitas vezes exageradas — que tem recebido para discutir as mudanças necessárias para bem servir à sociedade e à proteção do Erário. Entidades representativas ligadas ao sistema aprovaram, por exemplo, Resolução Conjunta com diretrizes e recomendações quanto às medidas que possam ser adotadas pelos tribunais de contas, de modo uniforme e colaborativo com os demais poderes, para minimizar os efeitos internos e externos decorrentes do coronavírus (Covid-19).

Outro exemplo interessante encontra-se consolidado na obra “Contribuição ao sistema tribunais de contas em tempos de coronavírus: pareceres técnicos das comissões especiais”, coordenada pelo Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas. A obra contempla estudos aprofundados voltados a oferecer mais que soluções, mas sobretudo segurança jurídica ao gestor, em tempos de incerteza e demandas urgentes. Questões relativas às contratações diretas, ao impacto nas economias locais e regionais, redução de receitas, gestão colaborativa e prestação de contas, dentre outras, são analisadas em pareceres técnicos que não se limitam à abordagem jurídica.

O acompanhamento da retomada das aulas na educação infantil e o impacto na educação pública também estão sendo objeto de detida atenção. Nesse tema, o projeto “A educação não pode esperar”, desenvolvido pelo Instituto Rui Barbosa (IRB), em parceria com o Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), é destinado destinada a minimizar os impactos no ensino provocados pelas ações de enfrentamento à pandemia, com a oferta de recomendações e sugestões aos Tribunais de Contas para dar suporte à atuação dos gestores e dos profissionais da educação. Merece também destaque a criação do Gabinete de Articulação para enfrentamento da Pandemia na Educação, tendo o Estado de Rondônia como laboratório inicial. O Gabinete, criado a partir de uma parceria do IRB com o Instituto Articule e com a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), cria estrutura de governança interinstitucional, funcionando como instância de pactuação para articular todos os agentes que executam, fiscalizam e julgam. A iniciativa busca, de um lado, garantir que a tomada de decisões seja eficaz durante e pós pandemia e seus resultados cheguem rapidamente aos estudantes e, por outro lado, evitar as consequências da ausência de um espaço de diálogo interinstitucional no campo da segurança jurídica.

Outras iniciativas variadas, observadas em vários tribunais, denotam a percepção da importância da atuação colaborativa e informativa, voltada inicialmente à necessidade de contribuir para a qualidade das decisões administrativas nesse período sensível, sem descurar a essencialidade da transparência para que seja possível o controle social. Essa constatação permite ligar, para concluir, os dois temas tratados neste artigo. Acompanhar os diversos processos decisórios, dialogando e respeitando as decisões consistente e tecnicamente motivadas, é o que se espera dos órgãos de controle como um todo. A afirmação não caracteriza intuição ou mesmo exercício de futurologia, mas mero cumprimento do dever constitucional de avaliar a gestão pública, zelando por sua eficiência, eficácia e economicidade.


Trata-se da RESOLUÇÃO CONJUNTA ATRICON/ABRACOM/ AUDICON/ CNPTC/ IRB Nº 1, de 27/03/20. Disponível em http://www.atricon.org.br/normas/resolucao-conjunta-atriconabracom-audicon-cnptc-irb-no-1/

http://cnptc.atricon.org.br/conselho-publica-obra-contribuicao-ao-sistema-tribunais-de-contas-em-tempos-de-coronavirus-pareceres-tecnicos-das-comissoes-especiais-cnptc/

https://irbcontas.org.br/tag/a-educacao-nao-pode-esperar/

O GAEPE/RO é composto pelo Tribunal de Contas do Estado de Rondônia, o Ministério Público de Conta, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública do Estado, a Secretaria Estadual de Educação de Rondônia, o Conselho Estadual de Educação de Rondônia, a UNDIME-RO e a UNCME-RO.

Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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Dantas Leite: Regulação independente da indústria do petróleo

As crises econômicas geram pelo menos uma sequela negativa comum: poucos ganham e muitos perdem. Como o sofrimento da maioria é uma constante, com diversos graus de intensidade, no inconsciente coletivo as crises são iguais e devem ser combatidas da mesma maneira.

Deixando as emoções de lado, essa noção equivocada pode gerar consequências regulatórias capazes de agravar ainda mais o sofrimento da maior parte da parcela vulnerável da população.

Um exemplo ilustrativo das diferenças entre as crises e suas causas econômicas e consequências regulatórias pode ser verificado na comparação entre a recente pandemia causada pela Covid-19 e a greve dos caminhoneiros ocorrida em 2018.

Há diferenças óbvias entre ambas, não só no que se refere à intensidade e à duração, como na gravidade e na abrangência, porém, e dentro do seu limite temporal curto, a greve dos caminhoneiros, assim como a Covid-19, impôs reflexos negativos ao PIB e apreensão e angústia à população.

A diferença marcante entre uma e outra, entretanto, que impõe consequências econômicas diversas e, por vezes, tratamento regulatório distinto, é que, enquanto a greve dos caminhoneiros, por falta de abastecimento, promoveu um choque de oferta, a Covid-19, por retração do consumo mundial, vem causando uma crise de demanda sem precedentes na história recente, nem mesmo na crise financeira de 2008.

Na indústria do petróleo, em especial na distribuição e revenda de combustíveis e derivados, essa diferença é marcante.

A greve dos caminhoneiros exigiu um mindset do setor e, em especial, da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de garantia do produto a qualquer custo, diante de um desabastecimento nacional generalizado, causado por choque de oferta. A impossibilidade logística de transporte de combustível parava carros de polícia, ambulâncias e viaturas do corpo de bombeiros, enquanto causava um caos na vida da população e na economia nacional.

Por esse motivo, imediatamente após o seu início [1], e a despeito de a greve ter sido prontamente declarada inconstitucional [2], a ANP, através de despacho da sua diretoria colegiada [3], entre outras medidas de caráter excepcional, flexibilizou a vinculação da marca para a venda de combustíveis, ou seja, ainda que ostentassem bandeira diversa, os postos revendedores estavam autorizados a comercializar combustível de qualquer distribuidora que tivesse capacidade logística de efetuar a entrega.

A chamada fidelidade de bandeira é, sem dúvida, uma imposição regulatória tradicional e que gera discussão entre distribuidores e parte dos revendedores. De um lado, há os que defendam que uma flexibilização total iria gerar um aumento de competitividade e, por via de consequência, uma diminuição do preço final.

Há, por outro lado, questões relativas à garantia de abastecimento, à qualidade do produto, à fiscalização, de propriedade industrial e questões relacionadas com a função social do contrato de distribuição, sobretudo em relação ao atendimento da cadeia vertical de escoamento da produção e, portanto, de todas as zonas geográficas específicas em país continental, que ainda sensibilizam a agência a manter o respeito à marca, nos limites de sua discricionariedade técnica, os termos das Resoluções ANP nºs 41/2013 e 58/2014.

A flexibilização ou não da marca, no entanto, não é o principal agora. Pelo contrário, a regra da bandeira é o justamente o instrumento para se observar um fenômeno interessante: como as diferenças de causas e consequências econômicas das crises interferem e devem interferir na regulação independente na hora de adotar medidas para a sua mitigação.

O que se adota como medida quase intuitiva em uma crise de oferta pode trazer consequências dramáticas em uma crise de demanda, e vice-versa.

Nesse contexto, em resposta ao requerimento de revendedores interessados em quebrar os contratos de exclusividade de distribuição e, portanto, aumentar a margem de lucro em tempos de retração de consumo, que cita como paradigma o caso da greve dos caminhoneiros, a ANP emitiu um nota contrária à pretensão. Por meio de sua área técnica, a agência “não considerou apropriado atacar o problema de redução de demanda por meio da suspensão do regime vigente de tutela regulatória de fidelidade à bandeira” [4].

Por óbvio, a questão vem sendo debatida através de diversas demandas judiciais, tanto de postos revendedores interessados em quebrar seus próprios contratos de exclusividade quanto de distribuidoras ávidas em adentrar o market share ocupado por concorrentes.

Sob outra ótica, entretanto, esse caso transporta um desafio teórico acadêmico diretamente para instâncias decisórias práticas: quais os limites do controle judicial na seara técnica da regulação independente, em especial na valoração do impacto da sua própria atuação perante o mercado regulado em crises com causas e consequências econômicas diversas.

Pretender que a regulação independente adote medidas semelhantes em crise de oferta e em crise de demanda, por intermédio de ordem judicial, é afastar completamente a regulação independente de seu objetivo finalístico, ou seja, de ser uma instância capaz de reduzir a indesejável distância entre a norma abstrata legislativa e o funcionamento interativo dinâmico do mercado regulado.

Qualquer mudança regulatória, ainda mais uma mudança dessa magnitude, que tem a capacidade de alterar a forma como o downstream se organiza como indústria, deve preceder um processo dialógico amplo com o próprio setor regulado e com os diversos setores interessados da sociedade civil e dos entes públicos.

É notório, por exemplo, que a parcela mais significativa da base de arrecadação do ICMS atualmente está focada no setor de energia, em especial no consumo de energia elétrica e combustíveis. A liberação da marca terá reflexos na forma como os estados fiscalizam esse setor, inclusive no que se refere a mecanismos legais como a substituição tributária.

A intervenção judicial sobre a regulação independente deve considerar sempre que, quando motivada e razoável, a decisão regulatória serve a um propósito maior, de manter a coerência técnica do mercado regulado [5].

A pandemia da Covid-19, por certo, como o maior desafio humanitário e econômico desde a implantação da regulação independente em nosso país, através das agências reguladoras, irá exigir deste modelo sua máxima eficiência nos mais diversos setores, da regulação do mercado financeiro, à regulação sanitária ou da saúde à energia.

Na seara da indústria do petróleo, em que barreiras anteriormente teóricas foram ultrapassadas, como a cotação negativa do barril do petróleo no mercado norte-americano [6], a regulação independente deve ser preservada, sempre que exercida dentro de parâmetros técnicos razoáveis.

Admitir que um paradigma relacionado com choque de oferta possa ser usado quando não há retração de demanda na revenda de combustíveis, seria uma forma de prestigiar free riders em uma crise de consumo, em um momento delicado para o setor no mundo. Em outras palavras, seria a desmoralização do modelo regulatório no momento em que mais precisamos que ele ofereça resultados.

Se as crises nunca são iguais em seus fundamentos, uma de suas consequências é sempre a mesma: alguns se aproveitam das dificuldades da maioria.

 é advogado, procurador do Estado do Rio de Janeiro, professor da FGV-RJ — Ebape, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Financeiro e da Comissão de Direito Tributário e Financeiro do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-secretário executivo-adjunto do Ministério da Fazenda, ex-presidente substituto do Conselho Nacional de Políticas Fazendárias (Confaz), ex-procurador da Fazenda Nacional e doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela USP.