Categorias
Notícias

Bandeira de Mello volta a integrar a Serur Advogados

Retorno às origens

Luiz Fernando Bandeira de Mello volta a integrar banca Serur Advogados

Luiz Fernando Bandeira de Mello, secretário-geral do Senado e conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público, retornou para o escritório Serur Advogados, no qual começou, logo após se formar, e ficou até se tornar sócio. Ele deixou a banca para ganhar experiência no setor público, onde se consolidou como referência no Poder Legislativo.

De volta ao Serur Advogados, Bandeira de Mello virou sócio do das áreas de Direito Regulatório e Administrativo. Atuará na unidade de Brasília da banca, que também possui escritórios em São Paulo, Recife e João Pessoa.

Bandeira de Mello já ocupou os cargos de advogado-geral do Senado, entre 2008 e 2011, consultor jurídico do Ministério da Previdência, de 2011 a 2013, e exerce a função de secretário-geral da Mesa do Senado há sete anos.

Recentemente, atuou no desenvolvimento do Sistema de Deliberação Remota do Senado, que garantiu o funcionamento da casa durante a pandemia. O modelo brasileiro foi exportado para diversos outros países.

Topo da página

Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2020, 10h01

Categorias
Notícias

Diogo Malan: Advocacia criminal para culpados

Quem se dedica à advocacia criminal provavelmente já ouviu alguma variação da seguinte pergunta: como você pode defender alguém culpado? A ideia de que há advogados que se dedicam à defesa de clientes culpados de crimes — especialmente graves ou violentos — tende a causar grande incompreensão ou indignação.

John Kaplan sustenta que a defesa técnica do acusado exerce três funções: (i) aumento da acurácia da apuração de fatos relevantes para a adjudicação da causa; (ii) controle sobre as eventuais condutas antiéticas ou ilegais de agentes estatais, e a adequação social ou constitucionalidade de normas penais; (iii) declaração simbólica de respeito pela dignidade do acusado, cujos direitos são oponíveis ao Estado.

Após, tal autor examina se a sobredita racionalidade da defesa técnica é afetada quando o acusado é culpado, concluindo que a culpa só enfraquece a primeira função acima, não afetando as demais.

Kaplan ressalva que a atuação do advogado na defesa vigorosa dos interesses legítimos do cliente não exige juízo de valor sobre sua culpa. De acordo com o estatuto deontológico da advocacia, tal juízo não pode condicionar o grau de zelo do advogado. Por outro flanco, eventuais condutas antiéticas ou ilegais do advogado independem desse juízo de valor.

Allan Dershowitz, por sua vez, aponta que é raro o advogado ter certeza sobre a culpa do cliente e inexistirem circunstâncias mitigadoras. Mesmo quando há tal certeza, o caso proporciona questões controversas sobre reconstrução probatória de fatos naturalísticos imputados (juízo epistêmico), aplicação ou interpretação de normas (juízo jurídico), ou respeito a garantias processuais (juízo procedimental). Nessas hipóteses, o advogado deve defender vigorosamente, dentro dos limites éticos e legais, os interesses legítimos do cliente aos quais são subordinados os interesses ideológicos e pessoais do advogado.

Esse autor reconhece que o advogado tem a opção ética e legal de declinar a representação de cliente desprezado ou impopular, que ele acredita ser culpado. Não obstante, nenhum advogado deve exercer esse direito por considerar que a causa ou o cliente são politicamente incorretos, ante os riscos de: (i) erosão do regime constitucional de liberdades públicas; (ii) divisão da classe por recorte ideológico, ensejando a assunção de casos por ideólogos crentes que paixão e política substituem preparação e profissionalismo.

Dershowitz arremata elogiando a cultura jurídica norte-americana de universalidade das liberdades públicas e de defesa de clientes dos quais o advogado discorda com veemência, independentemente de questões ideológicas, políticas, ou da natureza da acusação.

Quanto à pergunta formulada no primeiro parágrafo acima, ela parte de premissa discutível: o advogado não precisa exercer juízo de valor sobre a culpa moral do cliente, nem condicionar a aceitação da causa a juízo de valor favorável sobre tal culpa. É possível ir além: o advogado não tem dever moral de justificar publicamente a aceitação de determinada causa ou cliente, por mais impopulares ou politicamente incorretos que eles sejam.

Isso porque o advogado não defende seu cliente da culpa moral, e sim da culpa legal. Assim, o seu múnus público consiste em exigir das autoridades públicas o respeito pelos direitos fundamentais do acusado, a superação da sua presunção de inocência por standard probatório rigoroso, a proporcionalidade da pena aplicada em caso de condenação etc.

Assim como o médico em situação emergencial não pode recusar atendimento com base em juízo de valor moral negativo sobre o paciente, o Advogado tampouco deve discriminar cliente com base no precitado juízo.

A finalidade do processo criminal é a adjudicação do conflito entre poder punitivo do Estado e direito de liberdade do acusado, via meios probatórios de reconstrução histórica do fato naturalístico imputado.

Ou seja, no momento da assunção da causa pelo advogado, a superveniência de sentença ou veredito sobre a culpa é evento futuro e incerto, sendo possíveis arquivamento do procedimento de investigação preliminar, rejeição da denúncia ou queixa, extinção do processo sem julgamento do mérito etc.

Ainda que sobrevenha sentença ou veredito condenatório, o processo criminal não logra estabelecer verdade absoluta sobre a culpa. Ao contrário, trata-se de modelo de verdade que guarda relação de correspondência aproximativa ao fato naturalístico imputado ao acusado, proporcionando conhecimento relativo sobre esse fato.

Não é demasiado lembrar que os meios probatórios disponíveis para o acertamento judicial da verdade são falíveis, possuindo limitações decorrentes de variegados fatores (v.g. distorções, falhas e subjetivismo no processo de formação da memória da testemunha etc.).

Durante a entrevista reservada, é raro haver confissão simples de culpa: advogados evitam perguntar sobre essa questão, e clientes tendem a ser reservados seja por desconfiança, seja por receio de que eventual confissão enfraqueça o empenho do advogado. Mesmo quando há confissão nesse ensejo, normalmente se trata de confissão qualificada (o cliente invoca causa legal justificante e exculpante).

Sempre há possibilidade de a confissão ser falsa, motivo pelo qual o legislador atribui valor relativo à confissão judicial, exigindo seu cotejo com o restante do acervo probatório (artigo 197 do Estatuto Processual Penal).

Além disso, hipotético dever moral de declínio do patrocínio do cliente culpado colocaria em causa o direito fundamental do acusado à livre escolha do defensor técnico, impondo-lhe a assistência jurídica da Defensoria Pública.

A pergunta em digressão muitas vezes é feita por pessoas de boa-fé, porém sem conhecimento sobre a função político-institucional do advogado de órgão indispensável à administração da justiça criminal e as mazelas desse sistema, além de desinformadas pelo senso comum teórico sobre a criminalidade e suas causas e consequências.

Barbara Babcock propõe verdadeira tipologia das possíveis respostas à pergunta em apreço.

A primeira é a resposta do coletor de lixo: a advocacia criminal é trabalho sujo, mas alguém tem que fazê-lo, pois o sistema processual penal acusatório só funciona com duas partes adversas. O advogado contribui para a integridade do sistema de administração da justiça criminal, ao exigir elevados padrões éticos nas condutas de policiais, acusadores e Juízes. Nesse sentido, o trabalho do criminalista é idêntico ao dos outros Advogados: preparação, apresentação e argumentação de questões fáticas e jurídicas relevantes, na perspectiva unilateral do interesse legítimo do cliente.

A segunda é a resposta do constitucionalista: o direito de defesa é cláusula pétrea constitucional que transcende o interesse pessoal do acusado, se consubstanciando em verdadeira garantia da legitimidade ético-política da jurisdição penal (nemo iudex sine defensione).

A terceira é a resposta do defensor das liberdades públicas: os acusados fazem parte da sociedade, portanto a defesa de seus direitos fundamentais implica, em última análise, defesa dos direitos fundamentais de todos nós.

A quarta é a resposta do positivista: a verdade é inalcançável, pois o fato naturalístico relevante para o processo criminal é elusivo. O veredito da culpa não necessariamente corresponde à verdade, sendo uma conclusão jurídica para a qual a atuação do Advogado, na dialética processual, é decisiva. O sofista acrescentaria que não cabe ao Advogado fazer juízo de valor sobre a culpa ou inocência do cliente, pois essa função é do Juiz ou dos jurados.

A quinta é a resposta do filósofo: a diferença entre culpa moral e culpa legal impede que a análise sobre a culpa legal do cliente seja contaminada por considerações relativas à culpa moral. Nessa toada, o acusado deve ser presumido inocente e assim tratado até sua condenação definitiva, inclusive pelo Advogado.

A sexta é a resposta do calculista de probabilidades: a absolvição de dez culpados é preferível à condenação de um único inocente. Logo, o risco de absolvição do culpado é o preço político que uma sociedade democrática deve estar disposta a pagar.

A sétima é a resposta do ativista político: a maioria dos culpados de crimes graves ou violentos também são vítimas de injustiças, por integrarem minorias oprimidas. Esse quadro é agravado pela violência institucional do sistema de administração da justiça criminal (v.g. estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário etc.). Assim, o Advogado exerce função social relevante quando previne o encarceramento de excluídos, minorias, oprimidos, pobres etc., em condições degradantes.

A oitava é a resposta do assistente social: a assistência jurídica ao cliente que pertence aos estratos sociais menos favorecidos implica reconhecê-lo como pessoa titular de direitos fundamentais, podendo fomentar sua ressocialização. Ademais disso, a precitada assistência reverbera na comunidade do cliente, diminuindo a alienação e raiva de seus amigos e familiares.

A nona é a resposta humanitária: o acusado de crime grave ou violento é pessoa humana em situação de grande necessidade, e auxiliá-lo é dever do ser humano perante seu semelhante.

A derradeira é a resposta do egoísta: a advocacia criminal é a área de atuação profissional considerada mais desafiadora, excitante e interessante. Isso porque na advocacia criminal a aposta (liberdade de locomoção do cliente) é mais alta e, como as cartas do jogo tendem a favorecer a polícia judiciária e o Ministério Público, a vitória processual é mais gratificante e significativa.

Em suma: à semelhança do médico em situação emergencial, o Advogado não deve discriminar causas e clientes – ainda que impopulares, politicamente incorretos etc. – com base em juízo de valor moral desfavorável. Todo acusado merece um julgamento justo (fair trial), independentemente de culpa, nacionalidade, gênero, estado civil, profissão, residência, idade, raça, religião, condição econômica ou social etc.


KAPLAN, John. Defending guilty people, In: University of Bridgeport Law Review, v. 07, n. 02, pp. 223-255, 1986.

DERSHOWITZ, Allan. Why I defend the guilty and innocent alike, In: SMITH, Abbe; FREEDMAN, Monroe (Eds.). How can you represent those people?, pp. 65-71. New York: Palgrave Macmillan, 2013.

Um exemplo frequentemente citado é o do herói da independência John Adams, que aceitou defender soldados ingleses acusados de massacrar colonos em 1770 (FISCHER, David; ABRAMS, Dan. John Adams under fire: The founding father’s fight for justice in the Boston Massacre murder trial. New York: Hanover Square Press, 2020).

Monroe Freedman defende que o Advogado exerce múnus público indispensável à administração da justiça, portanto a sua decisão de aceitar ou rejeitar determinado cliente tem natureza moral, gerando dever de justificar publicamente a aceitação de causa ou cliente impopular (FREEDMAN, Monroe. The lawyer’s moral obligation of justification, In: Texas Law Review, n. 74, pp. 111-118, 1995).

BADARÓ, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal, pp. 121 e ss. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

KAGUEIAMA, Paula Thieme. Falibilidade da prova testemunhal no processo penal: Um estudo sobre falsas memórias e mentiras. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2020).

Quem estuda modelos consensuais de aplicação de pena sabe que há incentivos e pressões para que acusados inocentes se declarem culpados (YOFFE, Emily. Innocence is irrelevant, In: The Atlantic, sep. 2017).

STF, 2ª Turma, HC 92.091-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 28.08.2012.

BABCOCK, Barbara. Defending the guilty, In: Cleveland State Law Review, n. 32, pp. 175-187, 1983-184; BABCOCK, Barbara. “Defending the guilty” after 30 years, In: SMITH, Abbe; FREEDMAN, Monroe (Eds.). How can you represent those people?, pp. 01-13. New York: Palgrave Macmillan, 2013.

 é advogado criminalista, sócio do Mirza & Malan Advogados e professor da Uerj e da UFRJ.

Categorias
Notícias

Direitos fundamentais em tempos de pandemia IV

Considerando a verdadeira avalanche de casos levados ao Supremo Tribunal Federal e decididos desde a decretação do estado de calamidade em nível nacional, bem como a miríade de temas discutidos, resulta absolutamente impossível tratar de todos, inclusive daqueles que envolvem diretamente a proteção de direitos e garantias fundamentais, em especial, contudo, quando se trata de avaliar a legitimidade constitucional de intervenções restritivas pelo poder público, seja por ação, seja mesmo por omissão.

Outro aspecto a ser levado em conta – e já são muitas as manifestações, também na ConJur, a respeito do tema – e que exerce significativo impacto também no tocante ao problema da restrição a direitos na pendência de um estado de anormalidade, como o atualmente vivenciado em todo o planeta, e, entre nós, em ritmo de galopante aceleração, é que no caso brasileiro (embora não só no Brasil) o contexto é ainda mais complexo e, na mesma medida, mais desafiante para as instituições de um modo geral e para o sistema judiciário, em particular.

É que, paralelamente à calamidade pública da pandemia e as imensas dificuldades no tocante à sua contenção e superação, o Brasil passa por uma crise política e econômica altamente explosiva, que, embora tenha iniciado há alguns anos, alcançou níveis praticamente sem precedentes equiparáveis desde os primeiros anos da década de 1990. A gravidade, contudo, do quadro atual, é maior e mais preocupante, visto que nos anos mais difíceis de instabilidade econômica e em parte também política (agudizada na breve Era Collor e sua implosão) referidos, não se verificaram, em termos quantitativos e em intensidade, tantas manifestações contra as instituições democráticas, e, em especial, em prol de uma intervenção militar.

Mas, como se já não bastasse que segmentos da sociedade civil protagonizem tais manifestações, essas são, não raras vezes, acompanhadas diretamente, em termos de presença física, ademais de legitimidades indiretamente, por integrantes da cúpula governamental, o que, aliás, tem sido diuturnamente debatido em todos os foros e também já chegou ao STF.

Nesse contexto, a pergunta elementar que se tem posto em causa é precisamente, se e em que medida, reuniões e manifestações públicas e mesmo, em termos gerais, o exercício da liberdade de expressão, pode ser utilizadas para ataca frontalmente a instituição que é, numa democracia representativa, o seu órgão mais importante, e mesmo a instituição que exerce, igualmente legitimada pela ordem constitucional, a função de garantir as próprias regras do jogo democrático (devido processo legislativo, direitos políticos etc.) e os direitos e garantias fundamentais em geral, sem os quais, por sua vez, inexiste um Estado Democrático de Direito que possa ostentar esse rótulo.

Tornando a questão ventilada mais concreta e inserida no contexto atual, é de se invocar aqui, dentre outros, o inquérito – cuja abertura foi requerida pela Procuradoria-Geral da República – autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes, no bojo do qual se investiga atos em favor do AI-5 e do fechamento das instituições, republicanas, destaque para a verificação da existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia.

Note-se que na fundamentação da decisão foi apontado que a Constituição proíbe o financiamento e a propagação de ideais contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), tampouco permitindo a realização de manifestações objetivando a destruição do Estado de Direito, mediante a superação de limites materiais ao poder de reforma constitucional, que constituem o núcleo substancial do dos princípios democrático e republicano, como é o caso do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação de poderes e dos direitos e garantias fundamentais (Constituição, artigo 60, parágrafo 4º), ainda mais quando com isso se pretende ainda sustentar a instauração de um regime autoritário.

Além disso, a decisão referiu serem inconstitucionais, por não cobertas pelo manto protetor da liberdade de expressão, condutas e manifestações destinadas à aniquilação do pensamento crítico essencial a uma ordem democrática, assim como àquelas que pregam a violência, o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais.

À vista do inquérito que tramita na Suprema Corte brasileira, e como (pelo menos aparente) contraponto e mesmo contradição, assume ainda maior relevo a medida cautelar na petição 8.830, formulada pelo líder do PT na Câmara dos Deputados, decidida pelo ministro Celso de Mello, em 7 de maio de 2020, onde se buscava a interdição de carreata/manifestação em Brasília marcada para o dia 8 de maio.

De acordo com o autor da petição, cujo conteúdo aqui se transcreve em parte, extraído do relatório do prolator da decisão:

Com efeito, circula nas redes sociais do autodenominado ‘Comandante Paulo’, uma convocação de todo o povo brasileiro para estarem presentes em Brasília, no dia 8 de maio de 2020 (amanhã), com previsão de arregimentação de 300 caminhões e respectivos ocupantes, além de militares da reserva, civis, homens, mulheres e crianças. Segundo o vídeo de convocação divulgado, o objetivo do comboio e dos manifestantes será o de ‘dar cabo a essa patifaria estabelecida no País e representada (a patifaria) por aquela casa maldita do Supremo Tribunal Federal – STF, com seus 11 ‘gângsteres’, que têm destruído a Nação’. Trata-se de fato gravíssimo e que vem se somar às condutas, reiteradas já há alguns anos e com mais ênfase nos últimos meses, de um bando de celerados e acéfalos, reunidos em grupos de iguais, que estão promovendo, em todo o País e em Brasília (como as ações antidemocráticas investigadas em Inquérito da relatoria de Vossa Excelência), uma série de atos e ações inconstitucionais que objetivam, numa toada de aniquilação de Poderes (Legislativo e Judiciário) e supressão de garantias fundamentais, anular as conquistas democráticas tornadas realidades com a Constituição Federal cidadã, promulgada em 1988.

Pese o conteúdo das manifestações narradas e a existência do inquérito acima referido, o pleito não foi conhecido, dada a incompetência da Suprema Corte para examinar a matéria, pelo fato de não se referir a investigação solicitada a qualquer pessoa ou autoridade com prerrogativa de foro perante o STF.

O que aqui se impõe seja destacado, e por isso a relevância da decisão, é que embora pudesse ter o seu prolator, ministro Celso de Mello, se limitado ao não conhecimento, foram tecidas considerações importantes sobre o mérito do pleito, deixando claro que caso fosse conhecido e julgado, o resultado seria o seu rechaço, por frontal violação da liberdades de reunião e de manifestação e expressão consagradas na Constituição (artigo 5º, incisos XVI, IV e IX, respectivamente) e no direito internacional dos direitos humanos, designadamente na Declaração Universal da ONU, de 1948 (artigos XIX e XX), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigos 19 e 21) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigos 13 e 15).

Dentre os argumentos invocados no seu voto, o ministro decano da Suprema Corte brasileira, além de invocar importantes precedentes, anotou:

…Vê-se, portanto, que o direito de crítica e o direito ao dissenso – desde que não resvalem, abusivamente, quanto ao seu exercício, para o campo do direito penal, vindo a concretizar, em virtude de conduta desviante, qualquer dos delitos contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) –, encontram suporte legitimador em nosso ordenamento jurídico, mesmo que de sua prática possam resultar posições, opiniões ou ideias que não reflitam o pensamento eventualmente prevalecente em dado meio social ou que, até mesmo, hostilizem severamente, por efeito de seu conteúdo argumentativo, a corrente majoritária de pensamento em determinada coletividade (…) O pluralismo político (que legitima a livre circulação de ideias e que, por isso mesmo, estimula a prática da tolerância) exprime, por tal razão, um dos fundamentos estruturantes do Estado democrático de Direito! É o que expressamente proclama, em seu artigo 1º, inciso V, a própria Constituição da República. É por isso que se mostra frontalmente inconstitucional qualquer medida que implique a inaceitável “proibição estatal do dissenso” ou a livre manifestação do pensamento.

No tocante à posição adotada pelo ministro Celso de Mello – que aqui saudamos como correta e serena, ainda mais dadas as circunstâncias! -, esta não chega a surpreender, porquanto a despeito da intensidade das palavras direcionadas ao STF e seus integrantes, que no mínimo, em parte, permitiriam um enquadramento, em tese, na figura típica da injúria (a ser investigada e processada no foro próprio), o mais antigo magistrado em atividade na Suprema Corte, se manteve fiel a seus próprios precedentes, incluindo o multicitado caso da “marcha da maconha”, assegurando, em regra, posição preferencial às liberdades de reunião e expressão.

Tal entendimento, por sua vez, guarda estreita sintonia com a jurisprudência dominante formada pelo STF, em especial desde o julgamento da ADP 130, relatada pelo então ainda ministro Carlos Britto, que considerou não recepcionada pela Constituição a antiga lei de imprensa editada sob a égide do regime militar, do que dão conta, na sequência, outros julgamentos como o desnecessidade de prévia autorização do biografado em vida, da classificação etária apenas indicativa para a assistência de espetáculos, filmes etc., da liberação do humor (mas proscrição das assim chamadas fake news) na campanha eleitoral e mesmo, nesses últimos dias, da confirmação da decisão tomada em 2018, por ocasião do processo eleitoral, no sentido da ilegitimidade constitucional do ingresso por força policial em estabelecimentos de ensino para conter protestos e promover buscas e apreensões.

Da mesma forma, é este é um dos pontos a serem aqui sublinhados, não existe contradição (pelo menos por ora) entre a decisão do ministro Alexandre de Moraes, no Inquérito já referido, e a do ministro Celso de Mello, visto que no primeiro caso o que está em causa é a investigação da existência de atos diretamente atentatórios à própria democracia, caracterizados (a título de justificação adequada para a decisão) pelo apelo à intervenção militar, apoio ao AI-5, um dos mais autoritários (se não o mais violento) tomados pelo regime militar na sua pendência contra as instituições democráticas, para além do golpe de 1964 em si e outros desdobramentos.

O mesmo, contudo, não se verifica no julgado sobre a liberdade de reunião mais recente, ora anotado, pois o caso concreto que deu ensejo à petição não conhecida pelo STF, ainda que alinhado, no pedido, a outras como as investigadas no inquérito, não teve por objeto manifestação específica e diretamente voltada à reinstalação de uma ditadura militar, nem, neste caso, ao fechamento do Congresso Nacional, embora o tom mesmo beligerante assacado contra a Suprema Corte.

É claro, outrossim, que não se pode, como igualmente referido, ter como insustentável uma exegese que vislumbre também no caso decidido pelo ministro Celso de Mello uma afronta – ademais de uma possível injúria contra as pessoas dos ministros – a uma instituição que, independentemente da crítica que se possa querer proferir contra o seu modo de operar, suas decisões individualmente consideradas, etc., consiste no esteio institucional destinado a assegurar a garantia efetiva do cumprimento da constituição e da efetividade dos direitos fundamentais.

Embora essa é apenas uma leitura possível, de tal sorte que, à vista de diversas alternativas de interpretação do conteúdo do discurso impugnado e das circunstâncias, há de prevalecer aquela mais favorável e garantidora das liberdades comunicativas tão caras e essenciais à própria existência, em termos materiais, da democracia, o que, por sua vez, corresponde ao postulado da posição preferencial (embora não absoluta, como bem referido no próprio voto do ministro Celso de Mello) da liberdade de expressão e o da interpretação restritiva de eventuais restrições.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.