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Alexandre Fidalgo: Marco Aurélio e a justiça aos vencidos

Em 13 de junho de 2020, o Ministro Marco Aurélio Mello completou 30 anos de judicatura no Supremo Tribunal Federal. Convidado a escrever a respeito dessa data comemorativa, de pronto me veio à lembrança episódios marcantes, que diretamente interferiram na minha formação como advogado. Então um iniciante na advocacia, tive a honra e o privilégio de ser recebido pelo Ministro para um despacho em seu gabinete. Para o jovem recém-formado, estar diante de alguém que até aquele momento era inalcançável, com acesso somente por meio das decisões que proferia, era motivo de bastante apreensão. O acolhimento do Ministro Marco Aurélio foi motivador, encorajou-me de forças e me trouxe até aqui. Tive outros contatos, ainda recém chegado na advocacia, com outros Ministros, como o então, vale o registro, presidente do Superior Tribunal de Justiça Asfor Rocha, que igualmente recebeu-me com a simpatia e a segurança dos sábios. Certamente o Ministro Marco Aurélio em nada se lembra desse episódio, mas, de fato, isso alimentou mais ainda a minha admiração já iniciada nos bancos escolares.

O Ministro Marco Aurélio tomou posse em 1990, a partir da Constituição de 1998, indicado pelo presidente José Sarney. Até então, o Supremo julgava com o pensamento da CF 67. A Corte em que ingressava o novo Ministro tinha tantos outros pares indicados por generais e com tendência conservadora que poderia intimidá-lo. Mas, como se viu de 1990 a 2020, com três décadas de judicatura na Corte Suprema, o Ministro Marco Aurélio sempre esteve comprometido com a sua consciência e as suas ideias. Prova disso são os votos divergentes que marcam a sua trajetória no Supremo Tribunal Federal. Essa obstinação pela defesa de suas convicções, produzindo votos brilhantes, por vezes vencidos, ajudam e alimentam a renovação do direito, sem ativismos. Ao comparar os votos vencidos de Marco Aurélio com o do juiz Oliver Wendell, da Suprema Corte americana, que, nas décadas de 20 e 30, defendia o direito de greve e a função social da propriedade, sendo, naqueles anos, voto vencido, o Ministro Celso de Mello registrou que nos votos vencidos do ilustre Ministro “reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações”.

É da gestão da presidência do Ministro Marco Aurélio a concepção e a efetivação da TV Justiça no Brasil, que, além de aproximar um dos poderes da República da sociedade, consiste em verdadeira legitimação das decisões da Corte e, porque não, representação maior da transparência dos julgamentos em plenário do Supremo Tribunal Federal, em harmonia com a ideia de que as coisas públicas devem ser postas em púbico.

Outro ponto de aproximação do Ministro com esse advogado está na defesa que faz da inconstitucionalidade da modulação dos efeitos das leis inconstitucionais. Em minhas aulas de mestrado, defendia que essa forma de pensar o direito estimulava leis inconstitucionais ou, como chama o Ministro, contribuía para inconstitucionalidades úteis. Quando tive conhecimento de que o Ministro possuía idêntico pensamento, notei que o jurista inalcançável de outros tempos, ainda que permanecesse bem distante, havia produzido no advogado, já nem tanto jovem, novo encorajamento para defender suas ideias e convicções, ainda que isso lhe custasse alguns dessabores.  

Um jurista tido como garantista e que não dialoga à margem da democracia e da lei do povo, defende, como poucos, a liberdade de expressão e a atividade de imprensa de modo amplo e pleno. No emblemático julgamento da ADPF 130, proposta pelo PDT, sob o argumento de que a então Lei de Imprensa (5.250/67) não havia sido recepcionada pela Constituição democrática de 1988, o Ministro Marco Aurélio foi voto vencido, eis que julgou improcedentes todos os pedidos da ação. Sua reflexão no julgamento não revelava nenhum cerceamento à atividade jornalística e à liberdade de expressão. Muito pelo contrário, entendia o Ministro que tais garantias já estavam asseguradas e enraizadas na novel democracia brasileira, e que o Judiciário já estava a proteger tais liberdades, concluindo que melhor seria deixar para a vocação exclusiva da casa do povo a elaboração de lei a regular questões relativas à imprensa. O Ministro Marco Aurélio, conferindo rendimento ao registro dado pelo Ministro Celso de Mello, criticava o vácuo legislativo que a decisão, pela não recepção da Lei de Imprensa, traria à tutela do direito de resposta. A ADPF 130 foi votada em 30.04.2009 e, 6 anos depois, o parlamento brasileiro aprovou a Lei de Resposta (13.188/2015). Os votos vencidos do Ministro Marco Aurélio fazem jurisprudência e, também, leis.

Como advogado militante na área das liberdades públicas, especialmente nos casos voltados à liberdade de expressão e à atividade de imprensa, a presença do Ministro Marco Aurélio na Corte Suprema constitui um alento e uma garantia de que abusos contra a imprensa não serão tolerados, tampouco — de outro lado — os excessos cometidos pela própria imprensa, eis que sempre ressalta, acertadamente, a responsabilidade desse importante player da democracia. São muitos e emblemáticos os votos do Ministro a respeito desse valor democrático, tão caro e tão necessário no atual momento republicano.

O título que anuncia esse texto, Justiça aos Vencidos, é de autoria de Rui Barbosa, em artigo que escreveu ao Correio da Manhã de Lisboa em 1894, e bem representa o legado deixado pelo Ministro. Como se sabe, Rui Barbosa foi um dos grandes defensores das liberdades, tal como hoje é o Ministro Marco Aurélio, que, dada a sua insuperável subordinação à Constituição Federal e a atualidade da mensagem, bem poderia assinar o discurso também feito por Rui Barbosa no Senado Federal em 11 de novembro de 1914: Abalando a Constituição da República, e o direito, que se entrincheira, para salvar a liberdade, a sorte do prélio vacila, num momento de crise, cujo desenlace, por instantes, chega a não se saber se seria para as instituições nacionais a vida ou a morte. As baionetas vomitam de lada a lado as tremendas ameaças da força armada. Da outra, a razão desarmada se defende com a linguagem da lei.

Nessa data trintenária, um obrigado ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello.

 é doutorando em Direito na USP, mestre em Direito pela PUC-SP, advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados.

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Mottola e Mottola: O juiz das garantias é uma solução?

No dia 8 do corrente mês, foi publicado na ConJur o artigo “Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva…“, de autoria dos advogados Ruiz Ritter e Aury Lopes Jr., no qual os autores criticam a crença em uma “blindagem psíquica dos juízes” e defendem a criação do juiz das garantias como solução para o problema.

A frase “enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz — o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial”, resume a ideia central do artigo e é bem um exemplo do motivo pelo qual as nossas leis penais acolhem as teorias acadêmicas em prejuízo da eficácia que provém da realidade em que deveriam se inserir.

O que é essa “originalidade cognitiva do juiz”?

É a condição de ignorância em relação ao caso penal que recebeu para instruir e julgar. Para os defensores da tese, só o desconhecimento do que foi apurado na investigação dos fatos garante a imparcialidade do julgador para o exame das provas que vierem a ser produzidas na instrução do processo.

Pode soar bonito, mas, no fundo, é apenas retórica!

No Brasil, as sentenças penais de primeira instância raramente são reformadas por má análise da prova. Considerando que as três instâncias que as reexaminam (tribunais de segunda instância, STJ e STF) são dotadas de “originalidade cognitiva”, pode-se tomar os números como evidência de que a esmagadora maioria dos juízes criminais do nosso país não tem a sua imparcialidade comprometida pelo que quer que seja.

Além disso, se a questão é evitar os “pré-juízos”, não há como desconsiderar que, no processo crime, o conhecimento da prova se dá de maneira gradativa e, como regra, inicia pela prova acusatória em razão da ordem estabelecida pelo CPP. Ela não é “despejada” em um único instante, para uma única análise. Mesmo tendo contato com o processo apenas na fase de sentença, o juiz precisará ler peça a peça, ouvir (em tempos de gravação) depoimento a depoimento. E é inevitável que, à medida em que ele avança (e não apenas ao final), faça uma análise crítica daquilo que leu e ouviu, formando vários pré-julgamentos que vão se confirmando ou não a cada novo elemento introduzido.

Por isso a convicção que vai justificar a sentença quase nunca será fruto de um exame único e ininterrupto da totalidade dos documentos e provas contidos na instrução, mas será o produto de uma sucessão de convicções provisórias confirmadas ou postas de lado.

Ter contato com a prova do inquérito em nada prejudica a imparcialidade, já que o juiz aprende a formar sua convicção a partir dos elementos que a lei autoriza. Se o ato decisório a ser proferido não permite mais o uso de determinada prova, o julgador simplesmente retira-a da equação e analisa a repercussão disso.

A verdade é que imparcialidade não tem a ver com ignorância. Tem a ver com isenção. Que, por sua vez, é um atributo do caráter, aprimorado, no caso do juiz, pelo treinamento e pela experiência. Assim como o médico é treinado para controlar a empatia e manter a mente clara, e o policial é preparado para dominar o medo e enfrentar os perigos da profissão, assim também o juiz é ensinado que o processo criminal, como o futebol, é uma “caixa de surpresas” e nenhuma convicção pode ser tida como definitiva enquanto a última testemunha não tiver sido ouvida, e o último argumento, apresentado.

E por isso, com absoluta naturalidade, diariamente juízes revogam prisões que decretaram e absolvem réus em processos cujas denúncias receberam, embora, ao recebê-las, tenham identificado elementos suficientes para embasar a acusação.

Em outras palavras, a imparcialidade de quem julga não depende do momento processual em que tomou conhecimento das provas, mas da capacidade de não formar convicções definitivas antes de o processo estar pronto para ser julgado.

A criação do juiz das garantias é um fato. A verdade por trás do fato é que ela não garante coisa alguma, exceto morosidade. Em nome de um “princípio tonitruante” justificou-se a duplicação de juízes nos processos criminais de primeira instância, uma exigência de difícil atendimento em comarcas pequenas, especialmente quando separadas por enormes distâncias, como ocorre em vários estados brasileiros. Um problema que se agrava com a proibição de o juiz das garantias voltar a atuar em qualquer processo no qual tenha desempenhado essa função.

Gostem ou não os defensores da tese, o bom juiz não torce por ninguém. Ele busca apenas a verdade e a correta aplicação da lei.

Exceções existem? Claro que devem existir, mas elas são exatamente isso: exceções, cuja causa da quebra de imparcialidade ninguém pode afirmar com certeza estar relacionada com o conhecimento da prova do inquérito ou com a análise de medidas cautelares. Para esses casos existem a arguição de “suspeição” e um exasperante leque de recursos. E, se eles não forem acolhidos, então, quem sabe, o problema não seja a incapacidade de superação de pré-julgamentos, mas apenas a diversidade natural de aplicação do direito e análise da prova.

 é juiz de Direito da comarca de Araranguá, do Poder Judiciário de Santa Catarina.

 é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.