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Daier, Perregil e Pires: Relações humanas na pandemia da Covid-19

A pandemia causada pelo coronavírus colocou o mundo em isolamento social, obrigando-nos, enquanto sociedade, a repensar e reestruturar nossas relações. A diminuição do contato físico entre as pessoas e o aumento da necessidade do uso da inteligência artificial fortalecem a ideia de que os impactos da Covid-19 modificarão a forma como as pessoas interagem com o mundo ao redor.

Ao mesmo tempo em que isola as pessoas e paralisa grande parte dos setores da economia, a pandemia torna o diálogo e a tecnologia essenciais para a gestão da crise, na medida em que respostas e decisões devem ser apresentadas em tempo recorde.

Sabendo que a evolução das relações humanas, historicamente, inicia-se ou é acelerada por crises, ressurge uma inquietação já existente nas sociedades de consumo: como conservar a humanização dentro das relações?

O dicionário Aurélio define humanizar como “inspirar humanidade, tornar-se humano, tornar-se benevolente”. A solidariedade também está vinculada à humanização e tem como fundamento a dignidade humana.

No cenário de pandemia global, a consciência da necessidade de cooperação e a solidariedade podem ser os divisores para a superação da crise, o que também implica dizer que o momento exige um pensamento de coletividade. Isso interfere diretamente nos conflitos surgidos dentro das relações contratuais, relações de trabalho e interpessoais, colocando-os em rota de colisão com valores sociais sedimentados e discutidos ao longo de anos.

Os contratos exercem um importante papel social, apesar de serem negócios jurídicos e fonte de obrigações, também possuem como um de seus objetivos o desenvolvimento econômico.

Legitimando a necessidade de um pensamento humanizado e coletivo, de modo a evitar desequilíbrio e onerosidade excessiva para qualquer das partes (artigos 478 e 480 do Código Civil), o CC e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) determinaram que fossem observados valores éticos também nas relações contratuais, trazendo para o rol dos seus princípios a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva.

A visão social, trazida pela legislação vigente, além de evidenciar a importância de o interesse individual estar equilibrado com o coletivo, confirma que o Direito, por regular a vida em sociedade, deve acompanhar o dinamismo dos acontecimentos e as mudanças das necessidades humanas. A mesma linha de pensamento é observada na pandemia da Covid-19, em que o interesse coletivo passa a ser mais importante que o individual na vida em sociedade e a humanização trazida para o ramo dos contratos fica ainda mais necessária.

Fato é que a crise da Covid-19 provocou desequilíbrios, prejuízos financeiros e a necessidade de as partes buscarem soluções dentro dos contratos já firmados. A dúvida que surge é se esse momento pode justificar a revisão de um contrato ou a arguição de excludente de responsabilidade, pelo descumprimento de uma obrigação (artigo 393 do CC).

Nesse contexto, o momento exige a humanização das relações contratuais com a renegociação e readequação de cláusulas, o que vem sendo chamado hardship clause, para que as partes cheguem a um consenso e possam adimplir com suas obrigações, mantendo a relação contratual durante e no pós-pandemia.

No mesmo sentido, o Estado, por meio do Judiciário, vem sendo obrigado a fornecer respostas rápidas para aquelas relações em que os acordos não foram possíveis, tornando, em algumas situações, indispensável a sua intervenção para preservar a harmonia contratual, a dignidade da pessoa humana, o equilíbrio contratual e a manutenção da ordem econômica.

O lockdown completo ou parcial das empresas, causado pela crise da Covid-19, também impactou as relações de trabalho, afetando o cotidiano de cerca de 2,7 bilhões de trabalhadores. Esse número, segundo os dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na segunda edição do “Monitor OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho”, representa quase 81% da força de trabalho do mundo.

Agora é importante que as organizações empresariais reconheçam a necessidade emergencial de conciliação entre lucratividade e humanização, além do reflexo que as decisões institucionais terão em seus valores e posicionamento de mercado. 

De acordo com a OIT, o enfrentamento da crise depende de políticas integradas e focadas em quatro pilares: apoio às empresas, ao emprego e à renda; estímulo à economia e ao emprego; proteção de trabalhadores no local de trabalho; e uso do diálogo social entre governos, trabalhadores e empregadores.

No mundo dos negócios, não é de hoje a importância de ações humanizadas no aspecto de sustentabilidade, meio ambiente e relações de trabalho. Existe uma preocupação com a “cidadania corporativa”, termo bastante utilizado na superação de desafios mercadológicos a serviço de um desenvolvimento efetivamente sustentável, revelando-se como um novo valor no mercado corporativo.

Para evitar o aumento de passivo trabalhista, seja pela falta de cumprimento de obrigações, seja por soluções equivocadas tomadas durante esse período da Covid-19, as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao tema demonstram que as alternativas de solução com base no diálogo social, valor social do trabalho e pensamento coletivo sempre serão sustentáveis a longo prazo. A ideia sempre será utilizar as medidas disponibilizadas pelo governo, mas sem se distanciar dos princípios do direito à vida, saúde e dignidade.

Apesar de afetar toda a sociedade, a proporção dos efeitos da pandemia varia de acordo com critérios econômicos, étnico-raciais, de gênero e diversidade sexual, geopolíticos e etários das vítimas.

Ante a incerteza gerada pela crise, para a garantia de direitos humanos, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos publicou orientações a respeito de medidas a serem tomadas pelos Estados, tais como: acesso à moradia, alimentação saudável, saneamento básico e tratamentos de saúde; defesa dos direitos de idosos, defesa dos direitos das pessoas com deficiência, mulheres e pessoas LGBTI; enfrentamento a estigmatização, xenofobia e racismo. 

Mesmo com as redes de solidariedade e suporte aos grupos de pessoas mais afetados pela pandemia, existem violações a direitos humanos que já acompanham a história do Brasil — genocídio negro e indígena, atraso na igualdade de gênero, péssima distribuição de renda, entre outras — e que ficam ainda mais expostos pela pandemia.

Isso torna necessário que o setor privado e os estados busquem alternativas para manter o cumprimento de obrigações na esfera de direitos humanos, atuando de forma eficaz, com ponderação e adequação, a fim de preservar o máximo de vidas possível.

Assim, o momento tem exigido escolhas e soluções rápidas de governo, Judiciário, Legislativo e das empresas, a fim de agirem em meio à crise que nos afeta como sociedade, mas que ameaça, principalmente, os direitos humanos básicos de pessoas em contextos mais vulneráveis. Levando em conta a necessidade de humanização no cuidado, no acolhimento dos vulneráveis, é preciso dar especial atenção aos grupos com menos capacidade de reagir de maneira isolada à paralisação das atividades.

Luanda Pires é advogada, especialista em Direto Contratual, coordenadora do Núcleo de Mulheres LBT’s e Gênero na Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e membro das comissões da Mulher Advogada e da Igualdade Racial da OAB-SP.

Felipe Daier é advogado do Centro de Cidadania LGBTI Edson Néris Sul, da Prefeitura de São Paulo, e coordenador do Núcleo de Acolhimento LGBTQIA+ da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

 é advogada, sócia no escritório Innocenti Advogados e membro da Comissão de Direito do Trabalho e da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.

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Relações trabalhistas em crise: uma luz no fim do túnel

A imagem é desastrosa e cruel em todo o mundo no enfrentamento da pandemia do Covid-19. O momento social e econômico pelo qual todos estamos passando é um desafio que impõe reflexão dos valores cultivados ao longo da história, não para apontar erros do passado nem se conformar para que não se repitam, mas para buscar outros valores mais fortes e coletivos. Nas relações trabalhistas, levado pelo volume de manifestações de todos os dias, as preocupações dividem opiniões e o cuidado para preservar as instituições é essencial a fim de que a inquietação comum não se transforme em oportunismos. Nós sabemos de onde partimos, mas não sabemos para onde vamos.

Entre nós, a Lei nº 13.979/20 impôs as medidas a serem adotadas para os cuidados de emergência de saúde pública, com isolamento e quarentena. Independentemente das medidas legais de urgência já adotadas ou que venham a ser adotadas em decorrência do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, Medidas Provisórias 927, 928, 936/20 e outras disposições legais que se apresentam a cada momento, a base em que os novos parâmetros jurídicos terão necessariamente que levar em conta a força maior, situação transformadora e que atinge o sistema jurídico de forma incontestável.

A força maior está relacionada às forças da natureza e criado pelas condições de trabalho. Trata-se de evento extraordinário inevitável e que não decorreu diretamente da vontade do homem (BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições civis no direto do trabalho – curso de direito civil aplicado ao direito do trabalho. Rio de Janeiro. Renovar, 2009).

No direito civil há várias as hipóteses em que a obrigação deixa de ser exigível ou que o contrato poderia se desfazer em razão de fato imprevisível e extraordinário.

Todavia, quando se trata da aplicação dos efeitos da pandemia nas relações contratuais de trabalho, a generalização do conceito parece não ser adequada porque nem todas as situações trabalhistas são atingidas com o mesmo impacto, embora os efeitos sociais e econômicos sejam sentidos por todos. Conforme lições de Flavio Tartuce, “o ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou – hipótese que será necessariamente diversa – houve excessiva onerosidade para o cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência”.

Portanto, não se trata de adotar regra geral que, pela sua característica de norma, não atenderia a todas as situações.

A passagem por esta crise está a valorizar o princípio da boa-fé, considerando que o trabalho prestado a distância, por exemplo, adquire maior confiança recíproca entre empregado e empregador, com interação que talvez não tivessem anteriormente. Não é o caso de colocar em dúvida a prestação de serviços e o exercício de compliance seja de onde for o local de trabalho.

Além de aguçar a boa-fé nas relações contratuais, este momento acentua a solidariedade entre as pessoas, ainda que distantes. Neste sentido, o contexto de todos os elementos da crise que a pandemia tem gerado, os gestos admitidos e esperados são os de salvação de todos, razão pela qual o enfrentamento da crise não pressupõe o abandono ao desemprego dos trabalhadores. O argumento de força maior por calamidade pública deve ser utilizado para a inclusão social.

Os sindicatos, que se sentem alijados das iniciativas para enfrentamento da crise, embora com raras exceções, colhem o resultado de uma cultura monopolista que, a despeito de querer representar a todos, apresentam fragilidade de aderência. Sindicalismo de categoria e sem vínculo de legitimidade, neste momento, não serviria, data venia, para a mudança urgente e que não se passa de modo uniforme para todos. Nem os sindicatos ditos patronais teriam condições de atendimentos ao setor econômico respectivo.

Neste momento, o olhar deve ser para o futuro, para transformar com segurança jurídica o que desejamos como mundo socialmente justo e equilibrado. Há necessidade de uma concertação social, à semelhança do que houve no final da II Guerra Mundial, em que novos patamares de direitos sociais foram, de modo programático estabelecidos, e cuja finalidade foi a retomada do crescimento econômico e avanço na qualidade das representações coletivas.

Se tivermos o respeito à boa-fé revigorado, a prática da solidariedade, o gesto de acolhimento pela preservação dos empregos, ainda assim o sacrifício de todos terá que valer a pena para a construção de um novo mundo, com valores outros que não aqueles deixados no passado. Não caberia oportunismos em nome da crise. Por esta razão, passar este momento semeando a insegurança e a litigiosidade futura, não contribui para a revisão do passado e na revolução que se espera.

Os temas que preocupam nas relações trabalhistas e as medidas de urgência devem ser entendidas no seu espectro de aplicação com todos os elementos que nos levaram ao confinamento e à crise mundial. As soluções jurídicas estão presentes e podem ser adotadas sempre na preservação dos empregos.

O Ministro Carlos Aires Brito, em artigo de 28-06-16, em O Estado de São Paulo, de forma sempre genial, tratando de momento político da época, no artigo “Viagem sem volta” traz reflexões que se ajustam ao presente momento e, citando a lição de Einstein de que “A mente que se abre para uma nova ideia não retorna ao tamanho primitivo”, significa que “o entendimento mais arejado das coisas opera no indivíduo uma transformação. Mais do que uma simples mudança de ordem subjetiva, uma conversão”. Uma transformação de comportamento e, utilizando-se aqui da citação de Shakespeare “transformação é uma porta que se abre por dentro”.

O momento deve vislumbrar a transformação e esta viagem deve nos levar a uma vida melhor, caso contrário não terá valido a pena e o túnel continuará escuro.

 é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.