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Eficácia do orçamento de guerra depende de ação do Executivo

Na mesma semana em que foi comemorado o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa (3/5) e os 20 anos da publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (5/5), outro tema de Direito Financeiro se impõe à análise nesta coluna quinzenal, que é o da promulgação da EC 106, que aprovou o chamado Orçamento de Guerra.

Até pelo nome que foi adotado, lembra os ensinamentos do economista John Maynard Keynes para a ultrapassagem dos escombros da 1ª Guerra Mundial (As consequências econômicas da paz, de 1919) até as perspectivas de uma nova guerra mundial (Como pagar pela guerra, de 1940), passando por sua obra máxima (Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936). Enfrentamos atualmente uma nova Guerra Mundial, desta vez contra um vírus inesperado, de proporções assustadoras, que nos obriga a revisitar as ideias de Keynes, que pregam a intervenção do Estado para combater um problema que afeta a todos, de uma forma ou de outra. Tudo indica que nos livros de história esta pandemia será registrada como o evento que inaugurou o século XXI, tal como a queda do Muro de Berlim encerrou o breve século XX, nas palavras de Eric Hobsbawm, concorrendo com a queda das Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001.

O Orçamento de Guerra, promulgado pelo Congresso Nacional como a Emenda Constitucional 106, é a resposta brasileira aos esforços de guerra contra a Covid-19, que está assolando muitas vidas e a saúde dos brasileiros (mais de 11 mil mortos e 160 mil contaminados até aqui, segundo as estatísticas oficiais subdimensionadas) e devastará nossa economia (previsão de queda do PIB superior a 7%, segundo as mais recentes projeções).

O mecanismo criado busca isolar os gastos com o combate à Covid-19 dos demais gastos previstos no orçamento anual. Trata-se de uma técnica de planejamento e gestão orçamentária para permitir que se afaste temporariamente a responsabilidade fiscal e a busca de certo equilíbrio, apontando para a necessária prioridade de gastos para a preservação da vida e da saúde da população brasileira e a manutenção das empresas. Isso certamente acarretará maiores dispêndios públicos com saúde e preservação dos empregos e das empresas, ao mesmo tempo em que gerará maior endividamento público, pois as receitas correntes cairão de forma drástica.

Quais as principais determinações da EC 106?

Estabelece para a União um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações que vigorará durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional decorrente de pandemia (art. 1º), com efeitos retroativos a 20/03/20 (art. 10), que se encerrará quando o Congresso Nacional declarar encerrado o estado de calamidade pública (art. 11), hoje datado para 31/12/2020, segundo o Decreto Legislativo 02/20.

É atribuída a possibilidade de o Poder Executivo Federal adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras, com flexibilização de forma temporal e objetivada da LRF e de exigências constitucionais (art. 2º), tal como foram afastadas as limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita (art. 3º). Está sendo permitida a contratação de empresas em débito com a previdência social (art. 3º, parágrafo único).

A regra de ouro financeira está sendo relativizada, ou seja, a União poderá se endividar para fazer frente a despesas correntes, e não apenas para despesas de capital (art. 4º, caput).

O pagamento dos juros e encargos da dívida pública foram expressamente ressalvados, como de hábito, podendo ser realizados (art. 6º).

Durante esse período pandêmico foi autorizado ao Banco Central a compra e venda de: (a) títulos de emissão do Tesouro Nacional, bem como de (b) ativos de empresas privadas que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro (art. 7º). Destaca-se que nestas operações deve ser dada preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas — o que, embora meritório, parece algo de difícil operacionalização pois, qual pequena ou média empresa possui classificação de risco?

Para estas operações de crédito o Banco Central do Brasil editará regulamentação sobre exigências de contrapartidas, vedando que as empresas: (a) paguem juros sobre o capital próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei ou no estatuto social vigente na data de entrada em vigor da EC; e (b) aumentem a remuneração, fixa ou variável, de diretores, membros do conselho de administração e dos administradores das empresas privadas envolvidas na operação, incluindo bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho (art. 8º). Trata-se de uma boa iniciativa, de muito difícil acompanhamento e controle, porém bastante adequada para a operação proposta.

A preocupação com a transparência de todas essas operações está bastante evidenciada na EC 106, como se vê: (a) o Ministério da Economia publicará, a cada trinta dias, relatório com os valores e o custo das operações de crédito realizadas (art. 4º, parágrafo único); (b) as autorizações de despesas relacionadas ao enfrentamento do covid-19 devem constar de programações orçamentárias específicas (art. 5º, I); e (c) o Banco Central do Brasil fará publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e prazos (art. 7º, §2º).

Havendo irregularidade ou descumprimento dos limites estabelecidos na EC, o Congresso Nacional poderá sustar o ato (art. 9º), o que aponta para o efetivo poder de controle do Legislativo Federal, que se espera seja fortemente exercido.

Também se verifica a preocupação com a prestação de contas apartada e continuada do orçamento geral, como se identifica nos seguintes itens: (a) as autorizações para as despesas serão avaliadas separadamente na prestação de contas bimensal que a Presidência da República deve encaminhar ao Congresso (art. 5º, II); e (b) o Presidente do Banco Central do Brasil prestará contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do conjunto das operações de crédito realizadas (art. 7º, §3º).

Enfim, considerando um primeiro olhar sobre a EC 106, a impressão geral é que se trata de um bom produto legislativo, com pesos e contrapesos bastante adequados, mantido o poder de controle no Congresso, que se espera venha a ser exercido com atenção e responsabilidade. Na verdade, trata-se de uma moldura, cuja tela deve ser preenchida pelo Executivo, pois afasta de suas obrigações a busca pelo equilíbrio fiscal, retirando diversos limites financeiros estabelecidos pela Constituição e pela LRF, por período certo e para objetivos específicos. Nenhum presidente teve tanta folga para usar o orçamento nos últimos vinte anos.

Neste passo, espera-se que o Poder Executivo federal tenha capacidade para enfrentar a pandemia, criando um já tardio gabinete de crise, capaz de gerenciar com presteza e habilidade as medidas nacionais a serem adotadas, o que envolve as necessárias transferências governamentais para Estados e Municípios. Seguramente existem técnicos no governo federal bastante habilitados para esta tarefa — espera-se que eles sejam colocados à frente dessas funções e que tenham a possibilidade de exercer suas competências sem ingerências nefastas ao escopo pretendido.

Permanece a lição de Keynes, de que a intervenção do Estado nos momentos de crise seja determinante para retornarmos a trilhar os caminhos da boa governança de modo ágil e responsável. Não é uma fase para a adoção de um receituário liberal, pois a mão invisível do mercado foi atacada pela Covid-19 e precisa de uma boa dose de keynesianismo para ser recuperada.

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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Após o Dia das Mães, reflexões sobre o terrorismo tributário

“…o Estado é o tipo de organização que,

apesar de fazer grandes coisas de forma

errada, faz mal as coisas pequenas

também.” (John Kenneth Galbraith,

“Folha de S.Paulo” 01/05/2006, pg.B1)

Como é público e notório nossa carga tributária é uma das maiores do mundo, aproximando-se de 40% do PIB. No dia 21 de abril lembrei de Tiradentes, época em que se fez revolta por causa do “quinto”…Ao que parece o tempo dá muitas voltas para quase sempre ficar no mesmo lugar!

Encontramos num dicionário que terrorismo é o

“sistema governamental que impõe, por meio de terror, os processos administrativos sem respeito aos direitos e às regalias dos cidadãos”.

Cabe lembrar aqui, como de hábito, colunas onde usamos esse conceito, destacado no título. Para facilitar a pesquisa, usamos a ordem cronológica.

Em 13/02/2012, com o título Ditadura fiscal evolui para terrorismo tributário afirmamos que:

“Tornam-se cada vez mais freqüentes servidores do fisco promoverem a aplicação de penalidades absolutamente ilegais, que contrariam normas expressas da Constituição Federal, ignorarem solenemente as normas complementares do CTN e desprezarem a jurisprudência de todos os tribunais do país, inclusive súmulas do Supremo Tribunal Federal.”

Em 19/03/2012, com o título A guerra fiscal e o terrorismo tributário em São Paulo, observamos:

“A única solução para enfrentar essa guerra ou esse terrorismo está na propositura das ações judiciais, na procura da defesa junto ao poder judiciário e também na divulgação dessas questões ao maior número possível de pessoas. Cada sentença favorável ao contribuinte é um degrau que se constrói em direção à justiça e um aviso que se dá ao servidor público de que existe solução para os problemas que ele quer criar. Cada acomodação, cada submissão a exigências absurdas e ilegais do fisco é um tropeço que nos leva à servidão e nos coloca genuflexos diante de autoridades que se imaginam nossos senhores, muito embora seus salários sejam pagos com nossos impostos.”

Em 15/02/2016, quando tínhamos uma epidemia de zika, foi publicada a coluna denominada Terrorismo tributário causa prejuízos ao povo e ao país. A presidente Dilma resolveu cortar despesas, enquanto os estados e municípios queriam aumentar sua arrecadação.

Em 11/02/2019 publicamos A insegurança jurídica, o sigilo fiscal e o terrorismo tributário.

Examinando-se a cronologia desses fatos, constata-se que a prática de atos de “terrorismo tributário” independem dos governantes que estão no poder.

Na coluna mais recente vemos um trecho emblemático:

“Lembrei-me disso ao ver no mais recente exemplar da Veja notícia que reflete esse quadro: “Milionários que fizeram a repatriação estão sendo chamados para provar a origem do dinheiro lá fora. Na época do programa, bastava declarar que os recursos eram lícitos. Agora, a pedido de Sérgio Moro, a regra mudou”.

Ora, nenhum servidor público, ainda que Ministro ou Presidente, pode mudar a lei. A lei 13.354/2016 , que criou o denominado “Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) no artigo 11 diz:

“Art. 11. Os efeitos desta Lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta lei”.

O artigo 4º “§ 12 dessa lei (com base no art. 138 do CTN) garante:

“§ 12. A declaração de regularização de que trata o caput não poderá ser, por qualquer modo, utilizada:

I – como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal;

II – para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes”.

A questão do sigilo fiscal tem sido, ao longo do tempo, interpretada muitas vezes de forma equivocada. Veja-se a respeito noticia divulgada nesta revista, em data de 11 de fevereiro de 2002, da qual merece destaque o seguinte trecho:

“Na verdade, a Constituição, no art. 145, parágrafo 1º, estabelece que é “facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, ou rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.Está-se a ver, da leitura do dispositivo constitucional, que a faculdade concedida ao Fisco, pela Constituição, exerce-se com respeito aos “direitos individuais e nos termos da lei” (DJU 10.09.1999).

Neste momento de pandemia, nosso direito de ir e vir está legalmente submetido por motivo de força maior. Cada um de nós há de aceitar tal situação. Mas com a carga tributária que temos não é razoável aceitar a precariedade ou mesmo a absoluta inexistência dos serviços básicos que todos merecemos.

Por outro lado, a insegurança jurídica, que viabiliza desrespeito aos direitos dos contribuintes na questão do sigilo e nas demais aqui expostas, é um dos muitos instrumentos do verdadeiro clima de terrorismo tributário em que vivemos. Com ou sem pandemia, precisamos continuar lutando por Justiça Tributária!

 é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.