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Luísa Netto: O direito à ciência e a ADI 6.341

A atual situação de nosso país levanta sérias preocupações. Presenciamos uma crise política e econômica, testemunhamos ataques persistentes às instituições democráticas e enfrentamos uma pandemia sem precedentes. Não obstante essas circunstâncias, diante da urgência imposta pela pandemia, seria razoável esperar a implementação de uma estratégia nacional, articuladora da colaboração e adaptações regionais e locais necessárias, equilibrando as demandas relativas à saúde pública e à economia. Infelizmente, o que vemos é o Brasil se tornar uma das maiores vítimas mundiais da Covid-19, enquanto o presidente minimiza a gravidade da situação, negando evidências científicas e desconsiderando o aconselhamento de experts.

Em face da ausência de resposta nacional articulada, respaldados pela decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6.341, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo na luta contra o coronavírus, editando diversas medidas normativas e as implementando nos variados quadrantes do país.

O objetivo deste breve artigo, sem desconhecer a importância de analisar as atuais ameaças à democracia brasileira, centra-se em perquirir e expor as possíveis implicações jurídicas advindas do direito à ciência para enfrentar a situação vivenciada no Brasil.

Coronavírus no Brasil breve panorama

Desde que o Brasil registrou o primeiro caso de Covid-19, o país tem assistido a um rápido e letal alastramento da doença.

Em termos legislativos, diferentemente de diversos países em que se prescinde de embasamento legal para as medidas de combate à pandemia, houve a edição, entre uma série de outros diplomas normativos, da Lei federal nº 13.979/2020, destinada a disciplinar a situação de emergência de saúde pública causada pela disseminação do coronavírus. A lei cobre uma vasta gama de matérias, desde a previsão de medidas como quarentena, isolamento, realização compulsória de exames e restrições a atividades públicas, até a criação de exceções à regra da licitação e do dever de fornecimento de informação administrativa. A lei, no âmbito federal, foi seguida por decretos (10.282/2020 e 10.329/2020) que trazem a definição das atividades e serviços essenciais. Houve também a edição do Decreto Legislativo nº 6/2020, levantando restrições orçamentárias e possibilitando a alocação de recursos financeiros contra a pandemia. Editou-se, ainda, a Medida Provisória nº 936, autorizando a suspensão temporária de contratos de trabalho, a redução da jornada com consequente redução salarial e prevendo o pagamento de um auxílio emergencial.

Diante deste quadro normativo, poder-se-ia pensar que o Brasil tem os instrumentos necessários para enfrentar a caleidoscópica crise atual. No entanto, não há, até o momento, a implementação de estratégia que coordene, com base em opções cientificamente defensáveis, as ações nos planos nacional, regionais e locais para conjugar esforços voltados a objetivos comuns no enfrentamento do coronavírus. Essa ausência de ação federal articulada agrava-se pela sistemática negação à ciência e atuação contrária às evidências científicas, assim como pela ausência de divulgação de informações coerentes para a população.

Além disso, tem-se assistido ao discurso oficial do presidente de República de frontal negação da gravidade da doença causada pelo coronavírus, bem como da pandemia, somado a comportamentos refratários ao distanciamento social e a um mau uso das redes sociais. Contrariando as evidências médicas e o aconselhamento técnico da Organização Mundial da Saúde (OMS), o presidente determinou o aumento da produção de cloroquina, afirmando sua eficácia contra a Covid-19. Curiosamente, após dois ministros da Saúde deixarem o cargo em menos de dois meses em virtude de desentendimentos sobre o combate ao vírus e serem substituídos por militares interinos, o protocolo do Ministério da Saúde para o tratamento da Covid-19 foi alterado para incluir o uso de cloroquina e hidroxicloroquina.

Diante desse cenário desolador, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo no combate ao coronavírus, editando uma multiplicidade de instrumentos normativos e adotando diversas medidas concretas. Sem desconhecer a necessidade de medidas de enfrentamento da pandemia, é preciso anotar que, para além de eventuais questionamentos quanto à sua constitucionalidade em termos de conteúdo, as atuações estaduais e municipais suscitaram debate acerca da repartição constitucional de competências no arranjo federativo brasileiro.

O direito à ciência, a ADI 6.341 e a competência dos entes federados

A Constituição da República de 1988 não consagrou um direito à ciência de forma expressa, circunstância que não impede de reconhecer esse direito como pertencente à ordem jurídica brasileira por força das cláusulas de abertura previstas nos parágrafos 2 e 3 do seu artigo 5. O direito à ciência foi estabelecido no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 15) e na Convenção Americana de Direitos Humanos; sem olvidar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27). Soma-se a esta consagração explícita de um direito humano à ciência em instrumentos internacionais a circunstância de a Constituição da República se referir inúmeras vezes à ciência, impondo consequentes obrigações ao Estado (especialmente nos artigos 23, V, 200, V, e 218), como tem sido afirmado em várias ocasiões pelo Supremo Tribunal Federal (aborto, células-tronco, homeschooling).

Malgrado as inegáveis dificuldades da aplicação de normas internacionais, mormente normas de direitos humanos em contextos de crise econômica e crescimento do populismo, o recurso ao Direito Internacional é fecundo. Em primeiro lugar, os instrumentos citados trazem a consagração explícita de um direito à ciência como direito humano autônomo, capaz de ingressar na ordem jurídica brasileira, nesta qualidade, por meio das cláusulas de abertura estabelecidas constitucionalmente. Em segundo lugar, o plano internacional oferece um fundamento normativo complementar para enfrentar a situação em face de eventuais falhas domésticas, buscando respostas globais como a pandemia exige. O direito humano à ciência, aliado ao princípio de due diligence, oferece parâmetros legais para o que se pode exigir dos Estados, fortalecendo suas obrigações na luta contra o coronavirus.

Os instrumentos do Direito Internacional e a dogmática jusinternacional possibilitam uma aproximação ao conteúdo normativo do direito à ciência, que engloba, entre outras facetas, o direito dos indivíduos de desfrutar dos benefícios do progresso científico e tecnológico e o direito dos cientistas de desenvolver livremente a pesquisa científica, com proteção para os seus resultados. O primeiro aspecto vinculante deste direito que vem à luz no contexto da pandemia é a obrigação do Estado de ativamente proteger a vida e a saúde de acordo com a ciência, tomar as medidas necessárias para enfrentar a pandemia baseadas nas evidências científicas, controlando o alastramento da doença e tratando as pessoas infectadas. Maiores desenvolvimentos devem levar a apoiar a pesquisa científica e a colaboração internacional visando a criar e produzir vacinas e estruturar estratégias para conter outras pandemias. Esses aspectos positivos do direito à ciência não afastam a imposição de uma proibição para o Estado de agir ou se negar a agir em dissonância com o conhecimento científico disponível.

O direito à ciência fornece o necessário embasamento jurídico para afirmar que o conhecimento científico, a ciência e suas evidências, têm que ser a razão fundante das escolhas políticas de enfrentamento da pandemia, sem desconsiderar os processos democráticos. O apetite contramajoritário dos direitos humanos e fundamentais não se confunde com qualquer ameaça à democracia ou às instituições políticas do Estado de Direito. Pelo contrário, direitos e democracia mantêm uma relação necessária e dialética.

Certamente a questão merece cautela. Não se trata de defender a epistocracia ou a tecnocracia, nem tampouco de advogar a substituição de agentes políticos democraticamente eleitos por experts no processo de tomada das decisões públicas. A ciência, como se sabe, está sujeita a vieses, falsificações e erros, exige desenvolvimento constante e não é apta a oferecer respostas nem soluções incontestáveis para os complexos desafios societais.

No momento, há diversos aspectos relativos à pandemia, à doença e ao vírus que são discutíveis e desconhecidos. Ademais, os impactos econômicos de uma pandemia também precisam ser levados em conta; diversos direitos dependem da economia. Não se deve, ainda, desconhecer que contextos diferentes podem demandar estratégias específicas.

Uma coisa é suficientemente clara: a pandemia exige ação estatal e global urgente. O vírus e a doença não são uma questão de opinião política ou posicionamento ideológico, são uma matéria científica. Ainda assim, a pandemia exige ação política.

As autoridades democraticamente legitimadas devem se valer do aconselhamento de experts para tomar suas decisões e implementar as ações necessárias. As estratégias estatais de combate à pandemia devem ser públicas e transparentes, sujeitando-se ao controle por meio das instituições políticas e da opinião pública informada, com a garantia da liberdade de imprensa e de expressão. Por óbvio, é vital manter o debate político-institucional como elemento fundacional integrante da democracia, o que exige que as medidas urgentes sejam talhadas de acordo com o arcabouço constitucional.

Por um lado, deve haver espaço para escolhas políticas de acordo com o que é, no momento, cientificamente defensável. Por outro lado, o direito à ciência autoriza afirmar que não há espaço legítimo para simplesmente ignorar ou negar o conhecimento e as evidências científicas.

Essa breve aproximação ao direito à ciência permite verificar que a situação atualmente vivenciada no Brasil não está de acordo com a proteção comandada por esse direito. No plano nacional, evidências científicas têm sido desconsideradas, não têm servido, malgrado a existência de legislação federal, de base para a implementação de uma estratégia consistente e articulada de combate à pandemia da Covid-19.

Considerando que o direito à ciência é vinculante no plano doméstico, seu conteúdo normativo, brevemente exposto, mostra-se extremamente relevante para avaliar juridicamente a atuação dos governos federal, estaduais e municipais durante a pandemia.

Em primeiro lugar, o Direito oferece desde já ao Supremo Tribunal Federal uma âncora normativa para acessar os resultados empíricos de outros campos científicos e desenvolver o controle constitucional das respostas à pandemia. Mesmo que esse aspecto se centre na análise das respostas normativas e não seja suficiente para enfrentar a ausência de ação nacional articulada de combate ao vírus nem as ações governamentais tomadas em frontal desacordo com as evidências científicas, parece-nos um relevantíssimo elemento para a atuação do STF e das demais instâncias do Poder Judiciário.

Em um cenário de instabilidade política, avulta a importância do nosso mais alto tribunal no zelo pela Constituição, buscando manter a necessária coexistência de direitos humanos e democracia. O argumento fornecido pelo direito à ciência parece-nos essencial no desempenho dessa missão institucional pelo STF, permitindo acessar a situação por um prisma jurídico, afastando-se na certa medida da crescente polarização política.

Para fornecer um exemplo concreto, poderíamos pensar em somar, à argumentação desenvolvida no julgamento da ADI 6.341, o direito à ciência como embasamento constitucional sólido a outorgar competência para a atuação regional e local. A sucinta argumentação desenvolvida na decisão — e justificada em face da fase crítica vivenciada — girou em torno da questão formal da exigência de lei complementar e da presença dos requisitos constitucionais para a edição de medida provisória. Para além disso, estendeu-se para considerar a competência concorrente e comum conferida pela Constituição aos entes federados em matéria de saúde. Não por acaso, na decisão são citados os artigos 198 e 200 da Constituição, preceitos que tratam da saúde e tangenciam o desenvolvimento científico e tecnológico a ela referenciado. A atuação de governadores e prefeitos no combate à pandemia certamente tem que se amoldar às demais balizas constitucionais do nosso Estado democrático de Direito. Respeitadas essas balizas, tal atuação encontra fundamento constitucional no direito à ciência, que socorre o direito à saúde.

O direito à ciência se associa frequentemente a outros direitos humanos, com destaque para o direito à saúde. Essa associação fortalece a competência concorrente e comum dos entes federados para proteger e promover a saúde com base nas evidências científicas disponíveis, seja no plano de fruição individual, seja pelo prisma da saúde pública. A força do argumento normativo torna-se patente; a proteção e promoção da saúde apenas se pode fazer de forma efetiva respeitando as evidências científicas e aplicando os resultados do desenvolvimento científico e tecnológico pertinente.

Nesse ponto, interessante invocar a decisão da ADPF 672, na qual houve expressa menção pelo requerente a “ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos Chefes de Estado em todo mundo”, solicitando-se ao STF que determinasse ao presidente se abster “de praticar atos contrários às políticas de isolamento social adotadas pelos Estados e municípios”. Com fundamento nos artigos 23, II, IX, 24, XII, e 30, II, da Constituição, reafirmou-se a competência legislativa e administrativa de Estados e municípios para adotar medidas de enfrentamento da pandemia. O direito à ciência poderia participar desta acertada decisão emprestando-lhe vigor normativo, elemento de que carecem as recomendações da OMS referidas ao final.

Não se desconhece que o recurso pulverizado por autoridades regionais e locais ao que é cientificamente defensável pode levar a inconsistências e dilemas. O ideal é a atuação nacional articulada, como convém ao federalismo, ao sistema constitucional de repartição de competências e de distribuição de função entre os poderes, fazendo-se escolhas políticas afinadas com a ciência e as traduzindo institucionalmente em normas.

A ciência não pode nem deve substituir o debate e a ação política democraticamente legitimada. Ela pode, no entanto, emprestar ao nosso Supremo Tribunal Federal, na confluência necessária entre direitos e democracia, importante argumento normativo não para governar, mas para impedir o desgoverno.

 é procuradora do Estado de Minas Gerais, professora de Direito Público na PUC-Minas, Post-doc visting fellow na Universidade de Leiden, doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

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“Estão usando as Forças Armadas como partido”, diz Gilmar

Gilmar Mendes comentou reunião ministerial de 22 de abril

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu na noite desta segunda-feira (25/5) uma entrevista ao colunista da revista Época e da CBN, Guilherme Amado. A conversa aconteceu no perfil do Instagram do jornalista.

Gilmar Mendes, entre outras coisas, analisou a relação entre os três poderes da República durante a epidemia e criticou a postura do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros na reunião de 22 de abril — cuja gravação foi divulgada na última sexta-feira (22/5), por decisão do ministro Celso de Mello.

“Fiquei um pouco triste de um tempo tão precioso de pessoas com tanto poder de decisão ser usado para assuntos de pouca relevância ou agressões a pessoas. Foi um episódio singular. Eu nunca vi nada igual”, disse sobre o vídeo da reunião do presidente Jair Bolsonaro com os seus ministros.

O ministro lembrou que não se falou nada sobre o número de mortos durante a epidemia e comentou que seria interessante saber quais proposições saíram daquela reunião.

Gilmar Mendes também comentou o serviço de informações próprio citado pelo presidente. “Isso foi dito diante do ministro da Defesa e do ministro da Justiça. Estavam o general Ramos e o general Braga Neto. Isso precisa ser explicado. Que tipo de serviço é esse? Temos visto nessas manifestações a bandeira de Israel. Será que existe alguma conexão? Isso é um fato que precisa ser esclarecido”, comenta.

O ministro também chamou atenção sobre as falas do presidente sobre armar a população. “O que significa armar a população para garantir a liberdade? O que é isso? Vamos fornecer armas para quem? Para milicianos? É tudo muito peculiar e as pessoas devem ter uma conduta em que elas possam se olhar no espelho”, disse.

Papel das Forças Armadas
Questionado sobre o papel das Forças Armadas no atual governo, Gilmar Mendes apontou que elas servem ao Estado Brasileiro e não a um partido político. “Quando se diz que vamos fechar o STF usando um soldado e um cabo está se fazendo um vilipêndio. Uma ofensa às Forças Armadas. Está se usando as Forças Armadas como se fossem milícias de um partido político. Isso é indigno. Isso é uma grande ofensa”, comenta.

Gilmar também criticou a leitura que se está fazendo do artigo 142 da Constituição Federal de 1988. “Nada tem a ver com a leitura irresponsável que se vem fazendo. As Forças Armadas devem garantir os poderes constitucionais a requerimento de qualquer deles. Elas não servem para fechar um poder da República”, explica.

Gilmar também comentou a manifestação do ministro-chefe do GSI, General Heleno, para quem, caso houvesse uma busca e apreensão do telefone do presidente, isso poderia ter consequências imprevisíveis. “Tenho a impressão de que estamos vivendo uma grande confusão. E acredito que alguns por entenderem mal esse momento acabam talvez tomando atitudes precipitadas. Não houve qualquer decisão. É da rotina do processo decisório do STF ao receber uma notícia-crime encaminhar à Procuradoria-Geral. O ministro Celso não cogitou e não mandou apreender o telefone do presidente da República. As medidas que tomou foram dentro dos marcos legais”, explica.

O ministro também defendeu o levantamento de sigilo da reunião ministerial. “É impróprio falar em crime de abuso de autoridade. A divulgação do vídeo da reunião ministerial foi absolutamente normal. Não se pode falar em vazamento ou crime”, afirmou. Por fim, Gilmar disse que acredita que o inquérito sobre a suposta interferência do presidente na PF deve ser concluído até novembro.

Sobre a fala do ministro Abraham Weintraub, para quem todos os ministros do STF estariam presos, Gilmar Mendes imaginou o que diria a defesa do ministro no tribunal: “Talvez ele devesse dizer que se trata de um caso de inimputabilidade”, comentou.