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Green new deal, mudanças climáticas e a Covid-19

Mais de 40 mil pessoas perderam a vida em decorrência da Covid-19 no Brasil, de acordo com um consórcio de empresas jornalísticas, até a última quinta-feira, com uma preocupante taxa de 19 mortos a cada 100 mil habitantes, diga-se, em franca aceleração. No mesmo dia (11/06), em apenas 24 horas, 1.272 pessoas perderam à vida. Outrossim, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de óbitos pela Covid-19 no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde a pandemia, é bom que se recorde, iniciou bem antes.[1]Em poucas horas, o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido e, em poucas semanas, muito provavelmente, os Estados Unidos, neste mórbido ranking da incúria governamental e do descaso social.

De outro lado, dados do programa Global ForestWatch demonstram que a perda total mundial de florestas tropicais primárias no ano passado — 3,8 milhões de hectares, uma área quase do tamanho da Suíça — foi cerca de 3% maior que 2018 e a terceira maior desde 2002. O Brasil, segundo o levantamento, é o responsável por mais de um terço do desmatamento global e o líder absoluto no ranking mundial dos países desmatadores, seguido pela República Democrática do Congo, Indonésia e a nossa vizinha Bolívia.[2]

O governo brasileiro, outrossim, não pode ignorar o relatório sobre o clima da ONU, Global Warmingof 1,5 ºC, que demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas.[3]

Não existem evidências diretas de que a mudança climática esteja influenciando a disseminação da Covid-19, mas esta, no mínimo,altera a forma de relacionamento do homem com os animais não-humanos e isso é relevante para o aumento do risco de infecções.

Com o aquecimento global os animais terrestres e marinhos buscam os pólos para fugir das altas temperaturas. Este fenômeno faz com que os animais invadam outros ecossistemas como espécies invasoras, entrem em contato direto com a população de animais nativos e assim espalhem patógenos para outros hospedeiros. 

 As causas das mudanças climáticas, sim, aumentam o risco de pandemias. É o caso do desmatamento, que ocorre principalmente para fins agropecuários. Esta é a a maior causa de perda do habitat natural na atualidade, o que igualmente gera migrações dos animais e propicia o contato efetivo e potencial com outros animais não-humanos e humanos causando,também, o compartilhamento de germes.[4]

Neste cenário, existem vários aspectos positivos de uma boa governança climática relacionados à melhora da saúde humana, e a redução do risco de surgimento de doenças infecciosas certamente é um deles. Rachel Nethery, Xiauo Wu, Francesca Dominici e outros pesquisadores da Universidade de Harvard, descobriram que pessoas que moram em locais com má qualidade do ar têm maior probabilidade de morrer da Covid-19, o que pode ser agravado por outros fatores como condições médicas pré-existentes, status socioeconômico e a falta de acesso aos cuidados básicos de saúde. Essa descoberta confirma pesquisas, já nem tão novas, que demonstram que pessoas expostas a maior poluição do ar são mais suscetíveis ao agravamento de infecções respiratórias do que aquelas que respiram o ar mais limpo.[5]

Em locais onde a poluição do ar é um problema de rotina, os que mais sofrem são os sem-teto e aqueles cuja saúde já está comprometida. Dentre os sem-teto, no caso brasileiro, há um número desproporcionalmente maior de pardos e negros infectados e mortos pela Covid-19.[6] Esses indivíduos precisam de maior apoio governamental, para além das cotas,em especial em tempos de pandemia, pois possuem menor renda per capita em média do que os brancos.

Não se sabe, embora existam muitas especulações, em especial nas redes sociais, se o clima mais quente pode retardar a propagação do coronavírus. O que importa, em razão disto,é desacelerar a propagação da doença, e isso significa seguir rigorosamente as orientações, precautórias e preventivas, da Organização Mundial de Saúde, em especial, as recomendações de distanciamento social, da higienização das mãos, do correto uso de máscaras, entre outras ações, enquanto não for descoberta uma vacina ou um antirretroviral de amplo espectro eficiente contra esta doença.[7]

O aquecimento global, igualmente, criou condições mais favoráveis à propagação de algumas doenças infecciosas, incluindo a doença de Lyme, doenças transmitidas pela água, como a Vibrioparahaemolyticus, que causa vômitos e diarreia, e doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a dengue. Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas as mudanças climáticas geram o aparecimento de patógenos, com o aumento das temperaturas e das precipitações.[8] Para ajudar a limitar o risco de doenças infecciosas, mister reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5 graus, tendo como marco inicial a Era pré-industrial, não apenas no ano de 2100, mas já nos próximos anos.[9]

Neste sentido o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sobre a meta de 1,5 graus, concluiu que a meta de dois graus existente — prevista no Acordo de Paris — teria consequências catastróficas e irreversíveis, ainda se atingida até 2100. Necessária é maior ambição em termos de governança climática. As catástrofes ambientais (e biológicas) devem aumentar até 2050 — inclusive com o surgimento de novas pandemias e o retorno de outras já conhecidas — se a estabilização das temperaturas não ocorrer nos próximos 11 anos. De acordo com o relatório, limitar o aquecimento global em 1,5 graus requer uma mudança radical nas ações dos entes privados e nas políticas públicas governamentais. O último relatório da Agência Internacional de Energia afirma que as emissões mundiais de CO2, estão subindo e não começaram a diminuir. Como resultado, inclusive o alcance da meta de dois graus no ano de 2100, está começando a sair do alcance da comunidade internacional. Com o aquecimento global já ultrapassando 1º C, desde a era pré-industrial, estamos caminhando, a passos largos, para o aquecimento de três ou até quatro graus no ano de 2100 o que causará um grande colapso ambiental, social, econômico e político.

No século 20, as atividades humanas avançaram com espetacular velocidade causando imensos impactos ambientais e um fenômeno de extinção de espécies em ritmo acelerado, comparável apenas com o ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros, e metade da vida na Terra, foram extintos.

A diminuição da vida no Planeta, deve-se à perda de habitat, fazendo com que os animais não humanos invadam cidades em busca de alimento e de espaço. E a urbe, por seu turno, invade florestas, mangues e vegetações protegidas em nome do crescimento econômico promovendo um desenvolvimento urbano insustentável com o potencial de exterminar espécies de fauna e flora com uma voracidade impiedosa e nunca antes vista.A mudança climática causa a perda das espécies e afeta o habitat destas tendo como resultado a eclosão de novas doenças. As ações antrópicas causam um efeito rebote, pois ao mesmo tempo que afetam a flora e a fauna, degradam e colocam em risco a qualidade da própria vida humana.

Como solução a este problema, investimentos públicos e privados podem evitar outro surto pandêmico ao promover o combate as emissões de gases de efeito estufa, ao desmatamento e, especialmente, a proteção da biodiversidade global, que pode perder um milhão de espécies já nos próximos anos.[10] O Estado e a iniciativa privada devem apoiar a ciência, investir mais em pesquisas e, em especial, na construção de respostas efetivas e imediatas para o combate as pandemias. Visões pré-iluministas, negacionistas e outras utilitárias, não são a melhor resposta, e não trarão bons resultados no médio e no longo prazo.

As abordagens precautórias e preventivas são de longe as melhores para proteger o meio ambiente, à saúde pública e a própria economia dentro de uma perspectiva intergeracional. Quando a pandemia da Covid-19 chegar ao fim, haverá uma oportunidade única para reconstruir a economia nacional, abandonando-se o ultrapassado conceito de austeridade, cunhado pelos Chicago Boys, que naufragou na Era Reagan e Thatcher. Uma alternativa seria a adoção de um Green New Deal, semelhante ao proposto em forma de Resolução no Congresso Norte-Americano[11]e é abordado em sede de pesquisas científicas, inclusive dentro do direito.[12]Fugindo do nefasto onesizefitsall[13], cego para fatores locais, poderia ser elaborado, com amplo apoio governamental, no âmbito das grandes universidades públicas e privadas brasileiras, um Green New Deal dos Trópicos,que sirva ao país. Este deveria prever obrigatoriamente: a taxação sobre o carbono; a criação de um robusto mercado do cap-and-trade; o incentivo fiscal para as energias renováveis (eólica, solar, marítima, biomassa e, talvez, nuclear); a adoção obrigatória dos veículos elétricos; a obrigatoriedade do controle de sustentabilidade em obras públicas e privadas e na produção e comercialização de eletrodomésticos e dispositivos movidos por energia elétrica;o desenvolvimento da geoengenharia para mitigar os efeitos do aquecimento global; o estímulo à criação de empregos verdes (inclusive com programas de primeiro emprego); o combate mais rigoroso as queimadas e ao desmatamento; a adoção de escolas públicas de turno integral gratuitas, e privadas subsidiadas com a adoção de vauchers, desde a pré-escola até a Universidade; a ampliação e o fortalecimento do SUS; o aumento das garantias para a elevação da confiança no sistema de previdência, com uma maior regulação pública e social da previdência pública e, em especial, das empresas de previdência privada; o aumento do controle púbico e social sobre o sistema bancário e securitário; a elevação dos subsídios públicos para a pesquisa científica focada em novas tecnologias; a ampliação dos subsídios para universidades públicas e privadas e, em especial, a tributação das grandes fortunas.

Em suma, o nosso Estado Socioambiental de Direito, terá a oportunidade de implementar um Green New Deal à brasileira, e poderá lidar melhor,não apenas com crises climáticas e pandêmicas mas, especialmente, sociais e econômicas. O Brasil, de dimensões continentais e riquíssimo, em termos de diversidade e de bens naturais, possui uma Constituição e um arcabouço infraconstitucional progressistas e aptos a fornecer a moldura jurídica para este novo cenário que exige a concretização do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

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Camila Ávila: Julgamento do STF pode reduzir desigualdade de gêneros

A desigualdade de gênero é um tema mundialmente debatido e, entre as diversas áreas que são afetadas por esse fenômeno, inclui-se o mercado de trabalho. No relatório anual do Fórum Econômico Mundial (WTF) divulgado em 16 de dezembro de 2019, constatou-se que entre 153 países, o Brasil ocupa a 92ª posição no ranking de igualdade de gênero e a 130ª posição na igualdade salarial entre homens e mulheres.

Entre os fatores considerados para essa desigualdade salarial está a natalidade, pois verifica-se que a redução salarial pode se dar pelo número de filhos que a mulher possui e até mesmo pela possibilidade de ter filhos.

Destaca-se que a Constituição Federal (CF/88) prevê diversas garantias para a proteção da maternidade, entre elas a licença-maternidade, prevista no artigo 7º, inciso XVIII, da Carta Magna, que assim dispõe:

“Artigo 7º — São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XVIII — licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias”

Atualmente a referida licença tem duração de 120 dias e nesse período o salário-maternidade é custeado pela Previdência Social (INSS), caracterizando-se como benefício previdenciário, uma vez que o empregador tem o direito de compensação dos valores comprovadamente pagos.

Diante disso, surgiu o questionamento se haveria a incidência da contribuição previdenciária prevista no artigo 195, inciso I, “a”, da Constituição Federal sobre o salário-maternidade, uma vez que no referido dispositivo a incidência é sobre a folha de salários.

A matéria em questão é tratada no Recurso Extraordinário nº 576.967/PR, sob regime de repercussão geral (Tema 72), que entrou em pauta para julgamento em abril deste ano no Supremo Tribunal Federal.

No julgamento, que teve início em novembro de 2019, os ministros Luis Roberto Barroso (relator), Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia votaram favoravelmente à tese, com o entendimento de que é inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, sendo contrários os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes; o ministro Marco Aurélio requereu vista dos autos. 

Destaca-se que o ministro relator ressaltou que o salário-maternidade não se enquadra na expressão folha de salários, uma vez que não se trata de contraprestação de trabalho prestado ou de retribuição paga diretamente pelo empregador, é um benefício pago pelo INSS.

Conclui-se que, caso o recurso seja provido, ocorrerá a redução de encargos na folha de salários dos empregadores que possuem funcionárias em licença-maternidade, o que consequentemente contribuirá para amenizar a desigualdade de salários e de contratações entre homens e mulheres.

Contudo, em que pese os votos favoráveis o tema ainda está em julgamento e devemos aguardar a decisão do STF.

 é advogada na TAG Brazil e pós-graduanda em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito.

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Nomeados corregedor-geral e subdefensor público-geral da DPU

Novo biênio

Bolsonaro nomeia corregedor-geral e subdefensor público-geral da DPU

Por 

O presidente da República Jair Bolsonaro nomeou Fabiano Caetano Prestes e Jair Soares Júnior para os cargos de corregedor-geral e subdefensor público-geral da Defensoria Pública da União, respectivamente. A nomeação foi publicada no Diário Oficial da União nesta quinta-feira (4/6). Eles ficarão no cargo durante dois anos. 

Natural do Rio Grande do Sul, o novo corregedor-geral tomou posse em 2001 e é especialista em Direito Penal Eleitoral, tendo diversos livros publicados para concurso na área.

Prestes ocupa o 1º Ofício Superior Penal Militar e Eleitoral, com atuação no Superior Tribunal Militar e Tribunal Superior Eleitoral. Em 2014, levou ao STM o pedido para que a Defensoria sentasse no mesmo plano do Ministério Público tribunal.

Também foi membro e presidente da Câmara de Coordenação Criminal, corregedor-geral federal (biênio 2011/2013) e subdefensor público-geral (biênio 2013/2015). 

Subdefensor

O subdefensor Jair Soares exerce suas funções no Superior Tribunal de Justiça. É mestre em ciência jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (SC) e visitante para pesquisa técnico-científica na Universidade de Alicante (Espanha). 

Foi professor em cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu. Autor do livro “Seguridade social e Sustentabilidade” e co-autor de diversas obras jurídicas.

Em extenso artigo à ConJur, Jair Soares afirmou que a administração pública deve tomar cuidados para não causar transtornos com dogmas religiosos. Para ele, o Estado laico deve ser um árbitro que garante a todos a liberdade. O subdefensor também defendeu o indulto de Natal como uma política criminal assertiva, em entrevista ao Poder 360.

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 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2020, 15h18

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Octavio Orzari: Ainda a MP 966 e sua (in)constitucionalidade

Os atos do administrador público são regidos pela legalidade estrita, ou seja, a pessoa que ocupa cargo público somente pode agir em conformidade e segundo o que determina a lei. Mesmo para os atos em que há espaço discricionário, é a lei que possibilita tal espaço exigindo fundamentação legal para o ato do administrador público, que não pode ser abusivo ou desviado. E assim é o panorama constitucional, pois estamos sob o governo das leis, legítima e democraticamente aprovadas, e não sob o governo das vontades circunstanciais do governante. Não o que parecer expressar, todavia, a Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020.

A norma emanada do Poder Executivo trata da responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos quanto às medidas de “emergência de saúde pública” e de “efeitos econômicos e sociais” tomadas em razão da pandemia do Covid-19. A exposição de motivos se refere expressamente à preocupação com a “compra de equipamentos por preços que, em situação normal, não se julgaria ideal” e à alegada necessidade de “flexibilizações na interpretação de regras orçamentárias”. Justifica a proposição normativa também em face de “conduta tomada pelo gestor, em instante de premente urgência, não atinja os objetivos pretendida”. Nesse contexto, menciona a avaliação de que os agentes políticos “sejam livres das amarras futuras de processos de responsabilização”, nos termos específicos da medida provisória, ou seja, salvo caso de dolo, erro grosseiro ou “elevado grau” de culpa.

A medida, ademais, aparta a responsabilidade da pessoa que chama de “decisor” daquele que profere opinião técnica, salvo no caso da presença de “elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou erro grosseiro da opinião técnica”, ou no caso de conluio entre eles. As discussões, já existentes sobretudo em razão da imprevisibilidade dos atos que interferem na economia, são legítimas e tormentosas. Inicialmente, cumpre avaliar o manejo do instrumento da medida provisória.

Primeiramente, cabe observação quanto aos requisitos constitucionais de relevância e urgência para toda e qualquer medida provisória. O texto com força de lei parece confundir a urgência e relevância das medidas de saúde e economia em si atinentes ao enfrentamento da pandemia, com o tema da responsabilização do agente público. Esta dependerá do caso concreto, do julgamento pelo Judiciário e Tribunal de Contas; por seu turno, o Poder Legislativo poderá, inclusive, anistiar, mediante lei, a conduta tida como infratora. Há que se confiar na condução idônea e justa do eventual julgamento, na esteira da confiança na boa-fé do administrador público, já que sobre todos esses aspectos incidem a impessoalidade, eficiência e moralidade públicas. É de se destacar que medida provisória traz, em verdade, normas de processo, mais precisamente normas de julgamento, referentes a algumas condutas específicas.

Como se sabe, todavia, a Constituição de 1988 (Art. 62, § 1º, I, “a” e “b”), veda a edição de medida provisória sobre matéria de direitos políticos (sobre os quais recai a sanção por improbidade) e de processo, seja penal ou civil, sendo a mens constitutionis justamente evitar insegurança jurídica, seja ela propensa a agravar a punição, seja para abrandar a responsabilização, ou alterar o devido processo legal quando os fatos já estão ocorrendo. Segurança jurídica que se busca preservar ante a abrupta, e sem debate público no parlamento, vigência da medida com força de lei. Vale anotar que a medida provisória é um rescaldo parlamentarista do decreto-legge italiano que representa a sobreposição do Executivo no processo legislativo, que atrai questionamentos quanto ao equilíbrio e harmonia diante da cláusula pétrea da separação dos poderes, conquanto o próprio Poder Executivo já tenha grande protagonismo com a participação ativa nas casas congressuais e pela iniciativa para projetos de lei, inclusive com regime de urgência.

No mérito, a medida provisória inverte a lógica de maior controle, responsabilização e accountability ­– para se usar uma expressão estrangeira que indica a direção em que caminham mundialmente as instituições públicas e privadas –, justamente em um período de maior atenção e cuidado com a coisa pública, chocando-se materialmente com os valores constitucionais, que propugnam os “checks and balances” e indicam que não há possibilidade prévia e abstrata de se subtrair à responsabilização em situações específicas, sem deixar de demandar da avaliação ponderada, fundamentada e proporcional dos órgão julgadores.

A questão é o precedente gerado pela medida provisória de sinalização ou busca de alteração repentina do regime de responsabilidade do agente público, o que acarreta diminuição na expectativa de segurança jurídica de que só haverá atuação adstrita à legalidade, algo fundamental para toda a sociedade.

Há muito superou-se a irresponsabilidade do decisor máximo sob o pretexto de não poder errar, o autoritarismo do “the king can do no wrong”, o que reverbera por toda a administração pública; se errar, ficará sujeito à contenção institucional e, eventualmente, a julgamento imparcial que levará em conta as suas intenções. Todos os agentes públicos, nessa toada, são responsalizáveis, e essa é a diretriz constitucional, bastando se rememorar que a administração pública pode agir em regresso contra o servidor infrator dolosa ou culposamente, e que a Constituição de 1988 estabelece como crime de responsabilidade atos que atentem contra o “cumprimento das leis; a lei orçamentária; a probidade na administração; o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário”. Observe-se que o ordenamento jurídico manifesta preocupação sobre o tema desde as constituições anteriores e, no que tange à regulamentação da responsabilidade presidencial, o que se visualiza como orientação a toda a administração, define – em disposição aberta, é verdade – como crime “permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública”, além de “infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária” (art. 8º, 7; e art. 10, 4, da Lei nº 1.079/51). Não se pode olvidar, ainda, que compete ao Congresso Nacional fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo, julgar as contas e relatórios sobre a execução dos planos de governo, além de zelar pela preservação de sua competência normativa (art. 49, IX, X e XI, da CF).

Contudo, a medida provisória pretende alterar, unilateral e imediatamente, regime de processo e responsabilização dos agentes públicos, o que parece colidir com esse arcabouço normativo.

Do ponto de vista sistemático e de técnica legislativa, a medida provisória é imprecisa e inócua. Ela não especifica a qual órgão julgador se dirige, ou seja, não aponta exatamente a esfera de responsabilização do agente público. Se pretende influenciar na improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), padece de inconstitucionalidade por invadir matéria privativa de lei (processo, direito civil e direitos políticos). E se se  alegar que se trata de matéria de regime jurídico dos servidores da União, esta matéria tem, meramente, iniciativa do presidente da República para que o Poder Legislativo a discipline mediante lei, o que em muito se distancia de ato unilateral com força de lei. Assim, se pretende atingir a esfera de responsabilização funcional-administrativa, tratada preponderantemente na lei que versa sobre o regime jurídico do servidor (Lei nº 8.112/90), tal regulamentação somente admite lei aprovada pelo Congresso Nacional para ter eficácia. Não há descrição na medida se está voltada para os processos de responsabilização perante a Controladoria-Geral da União, o que seria inusitado tendo em vista a cláusula pétrea constitucional da separação entre o órgão que elabora e o que aplica a lei.

A MP nº 966/20, vale anotar, e todas as suas consequências no âmbito da responsabilidade dos gestores e decisores, não pode ser lida separadamente da Medida Provisória nº 961, de 6 de maio de 2020, que aplica o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações para o período da pandemia. Segundo o Decreto Legislativo nº 6, de 2020, o período de calamidade pública por força da pandemia vai até 31 de dezembro de 2020.

Sem deixar de se considerar a peculiaridade do momento, o ponto jurídico nevrálgico é a mensagem de fluidez e de mobilidade do ordenamento jurídico frente aos princípios constitucionais da administração pública e à privatividade do Legislativo em disciplinar a matéria, com o tempo necessário para a participação plural.

A medida provisória é inócua, pois pleonástica, uma vez que as recentes alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preceituam que “Na intepretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” e “serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”, pelo que o técnico e o decisor ficam resguardados na avaliação de seus atos, pois “Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública”, observada a proporcional dosimetria (Art. 22, §§ 1º e 2º, da LINDB, na redação da Lei nº 13.655/18). O Superior Tribunal de Justiça, acrescente-se, que há 28 anos interpreta a Lei nº 8.429/92, ao analisar os tipos de improbidade administrativa, exige, no mínimo, a presença de culpa para a responsabilização, excluindo-se o erro simples; todo julgamento, naturalmente, deve levar em consideração as dificuldades, complexidades, urgências, incertezas do momento em que praticado o ato, a fim de se aferir a culpabilidade do agente.

O instrumento excepcional da medida provisória (pois seus imperiosos requisitos constitucionais são excepcionais no quadro do processo legislativo), em suma, pode ter aplicação para as medidas concretas econômicas e de saúde, devendo-se preservar, contudo, a atividade legislativa como função típica do Legislativo, que, com debate, sensibilidade social e senso de urgência, aprecia e transforma em leis as demandas sociais. A rejeição da Medida Provisória nº 966/20 seria compreensível, ao se ponderar que o Poder Executivo deve ser constantemente fiscalizado e que governar implica responsabilidades e, na inafastável separação de poderes, freios e contrapesos.

 é sócio do escritório Machado de Almeida Castro e Orzari, professor da Universidade de Brasília (UnB), mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.