Categorias
Notícias

Robôs podem julgar? Qual é o limite da Itech-cracia?

Resumo-aviso: este texto não é a favor da volta do lápis!

Corretamente o Ministro Luiz Salomão criticou uma petição de RESP de 427 páginas. Pior: a matéria estava vencida de há muito. Aqui se vê o lado perverso da tecnologia. Se o causídico tivesse que escrever à máquina o recurso aposto que não faria mais de 20 páginas. Tentarei tratar destas diversas pontas do problema nas linhas abaixo.

Vejo todos os dias loas às novas tecnologias. Não sou um retrógrado ou jurássico (a não ser quando se fala na Constituição!!!). Tenho em minha casa e escritório toda a tecnologia. A mais moderna.

Mas isso não me fez um intelectual. Meus livros não foram escritos pela tecnologia. Foram escritos com a tecnologia. E, por outro lado, minhas aulas não atraem tanta gente por causa da tecnologia (que, por sinal, não uso em sala de aula). Atraem talvez porque eu seja um bom professor…! A tecnologia me ajuda. Mas não me substitui.

Então, se alguém quer vender essas facilitações tecnológicas, com o argumento de que isso vai trazer uma revolução no Direito, pode fazê-lo. Venda a ideia à vontade. Mas pode ser propaganda enganosa.

Todos os dias aparecem novos argumentos. A onda é ITechLaw, inteligência artificial, robôs que decidem e até corrigem provas. Li recentemente até sobre algo que chamam de advocacia 5.0 (sic). Dizem até que a pandemia trouxe o novo (sic), e que agora clientes e advogados não se atrasam, e os advogados de escritório não gastam tempo em deslocamento… Então tá. Tudo veio para melhorar… Viva a pandemia!

Outra “propaganda” diz que a busca por jurisprudência foi revolucionada. Pode ser. Só não entendo por que as decisões judiciais continuam no recorta e cola como já se fazia. E de que adianta a busca melhorar se o “operador” que está buscando não consegue refletir sobre o “buscado”?

Cada coisa que criam… Por exemplo, o legal design. Há muitos sites sobre isso. Legal design lida com a empatia, dizem. Que coisa, não? É feito por etapas: a primeira fase é a descoberta do problema; a segunda fase é a interpretação, em que, pasmem, “o problema deve ser resumido em uma frase”. Bueno. Parei por aí. É muito profundo. Melhor não lerem as fases seguintes.

De todo modo, quero ver o “método legal design” resolver um caso de distinguishing. Quero ver transformarem “coerência e integridade” em uma frase…! E quero ver…deixa para lá.

Como retranca, depois de dizerem algo como “tecnologia ou o caos”, alguns fazem a observação (não sem antes dizerem que os críticos “não entenderam o que é tecnologia”): a tecnologia não vai interferir ou mudar o direito, que continuará… Dá para notar… Explico na sequência.

O assunto sempre começa com coisas como “o direito é atrasado tecnologicamente”; “o ensino é atrasado”. “Aulas não devem ser expositivas” (pergunto: devem ser por power point, em que o professor lê o que está escrito para os alunos que parece não saberem ler?). Diz-se também que, em tempos de smartphone, não faz sentido o professor ainda achar que é a única fonte de todo o conhecimento.

Opa, alto lá. Já de pronto temos um problema. Primeiro, o smartphone não traz conhecimento. Ele proporciona informações. Qualquer néscio tem acesso à informação. Basta um click. Aliás, se informação de smartphone fosse autossuficiente, não teríamos o aumento de ignorantes no mundo. Isso a tecnologia não explica…

Ou vão dizer que alguém que é analfabeto funcional, transformou-se, depois de ter comprado um smartphone e passar o dia em grupos de whatsapp, em um ser alfabetizado? Na verdade, piorou. Um aluno de direito, com seu smartphone, agora sabe o conceito de Direito? Um advogado que não sabe lhufas sobre recursos e que acha que o direito termina na divisa do município, depois de comprar um tablet transformou-se em um Rui Barbosa?

A confusão dos apaixonados pelo direito 5.0 ou 6.0, turbo-hiper, dá-se por não saberem a diferença entre informação e conhecimento, assim como, até hoje, a comunidade jurídica não sabe a diferença entre ativismo e judicialização (por isso as estatísticas são, na sua maioria, falas), não sabe o conceito de princípio (pensam que é algo que pode ser sacado do bolso).

Vou ajudar, puxando T.S. Eliot: informação não é conhecimento, que não é saber, que não é sabedoria. Por isso (i) precisamos do professor de carne e osso para transformar esse monte de informações em conhecimento. E (ii) precisamos de bons professores para transformar o conhecimento em saber. E, quem sabe, (iii) os melhores professores, de carne e osso, ainda podem transformar o saber em sabedoria. O resto é propaganda.

Fala-se em revolução com startups jurídicas, lawtechs ou legaltechs, market place (Diligeiro e Jurídico Certo), automação de documentos jurídicos (Looplex e Netlex), gerenciamento de prazos e pendências (Legal Note), pesquisa jurídica (JusBrasil) e resolução de conflitos (Arbitranet e Acordo Fácil). Não nego que, no meio de tudo isso, algo possa ser útil – mas como ferramenta.

Nem vou falar do estelionato que virou essa “coisa de busca de jurisprudência” na internet. Despiciendo. Autoexplicativo. Outra pergunta: Diligeiro revoluciona em termos de conhecimento? Ou em informações? E Market place? Acordo fácil? Claro: fácil (itação). Não esqueçamos que o Brasil deve ser o único (ou último) país que tem despachantes de trânsito. São facilitadores… Livros facilitados e resumos são uma espécie de atalho. Despachantes.

Também impressiona o encantamento com softwares de inteligência artificial (IA) com potencial, afirmam por aí, de substituir (sic) o operador do Direito em várias áreas. Uau. E eu vou para o quarto do pânico ou para as montanhas. Fugindo do software dos recursos, que vitima milhares de direitos por dia.

Seria o Direito uma mera ferramenta, manipulável por dois bites? Eis o paradoxo: se os encantadores estiverem corretos, estarão errados. Se vencerem, perderemos. Todos. Afinal, se o Direito é ferramenta manipulável por robôs, aí estará a vitória dos seus inventores e cultuadores. Mas será também a derrota do Direito e dos advogados e demais atores. Paradoxo! Ao vencer, perde.

As crises do ensino jurídico e da aplicação do Direito não existem por causa da falta de tecnologia e quejandos. Ao contrário: parte da tecnologia está emburrecendo mais ainda os alunos, porque traz facilitações, substituindo leituras e pesquisas por tecnologias prêt-à-porter, como resumos e resuminhos e drops jurídicos e ementas descontextualizadas. É sobre isso que os encantados pelas novas tecnologias deveriam se debruçar. Por que a tecnologia não diminui o número de alunos analfabetos funcionais?

Os encantados pela tecnologia deveriam se preocupar com essa praga que são os resumos high tech. Aliás, isso tudo constitui um “novo” tipo de ensino prêt-à-porter, prêt-à-penser e prêt-à-parler. A sala de aula com os alunos utilizando seus celulares conectados com Google e Facebook, etc, transformou-se em um inferno. Todos têm acesso à informação…mas poucos adquirem algum conhecimento. Mais tecnologia, mais informação, menos conhecimento, menos saber, menos sabedoria.

Ledo engano achar que a ferramenta substitui a ciência. Ou o saber. Ou que melhores ferramentas podem substituir a necessidade de estudo. Não existe intelectual bronzeado!

Podem dizer que sou jurássico, que não entendi nada e que quem defende isso não quer afirmar tal e tal coisa e que as tais ferramentas tecnológicas apenas servem para ajudar. Está bem. Aceito o argumento, mas mantenho a crítica.

Dizem que “só a tecnologia salva o Direito”. Em nome “de o” senhor Deus ex machina”. Mas, por que a coisa só piora? A não ser para quem faz direito tipo uber ou coloca produção jurídica tipo fordismo… Admito que quem faz trabalho de massa precisa de alta performance tecnológica. Mas não é desse direito que falo.

Respondam: com o advento de toda essa tecnologia, as decisões melhoraram? As respostas aos embargos? Como estão, na era Itech? E a jurisprudência defensiva? Diminuiu? Cartas para a redação.

Portanto, muita calma nessa hora. Se você quer vender tecnologia, OK. Mas não me altere o samba tanto assim.

Ora, só não vê quem não quer ver. Dia a dia, recursos são e serão examinados por robôs. Robôs especialistas em Direito tal e tal. Permito-me dizer que isso tudo apenas reforça as antigas distopias que a literatura nos mostra. Como uma espécie de “De volta para o futuro”, em que a SkyNet toma conta do mundo.

Quero que me digam como os depoimentos filmados são assistidos em grau de recurso, para falar só desse problema. Já discuti o processo eletrônico (aqui e aqui), essa invenção tecnológica brasileira.

Afirma-se que a tecnologia promove uma democratização do conhecimento… Digo eu, de novo: Como assim? A tecnologia apenas promove a democratização da… informação. O professor – esse sujeito que deveria ganhar auxílio insalubridade – é quem tem a tarefa de transformar essa informação em conhecimento (que é apenas o começo), esse conhecimento deve ser transformado em saber e esse saber em sabedoria.

Outo paradoxo: se o aluno descobrir que “tudo está no tablet”, não necessitará mais ir à faculdade. A vitória é a derrota.

Ora, as pessoas cada vez mais se “comunicam” por neo-hieroglifos (os emojis). Os livros são pirateados, escamoteando direitos autorais. Há robôs que fazem petições, sites vendendo “tudo fácil”, “direito pré-pronto”, “direito-uber”, robôs que fazem acordos etc. Milhões de artigos, memes, aulas musicadas e conceitos pequeno-gnosiológicos estão à disposição dos alunos e dos profissionais a um click.

Essa parafernália, esse Deus ex machina, composto de technismos e quejandos, só tem sentido se alguém, uma pessoa que tenha saber, souber fazer “gerenciamentos epistêmicos”, se me entendem o que quero dizer. “Epistêmicos”, professor? Pois é. Clique no Google. Leu? E agora? Entendeu? De nada serve a tecnologia sem gerenciamento epistêmico.

Professor, faça o teste: peça para o aluno com smartphone na mão, que acabou de ler a palavra epistemologia e até mesmo o seu conceito, para ele interpretar o que leu… Em nome de o Senhor Deus ex machina.

O bom ensino jurídico exige cultura. Os melhores centros de estudo do mundo mantêm sua excelência nessa base, incorporando os úteis desenvolvimentos tecnológicos às suas rotinas, mas sem viajar em modismos.

Não se trata de nostalgia de minha parte. Descobertas que facilitam a vida são bem-vindas, mas há falsas facilidades sobre as quais devemos alertar.

Isso é a mesma coisa do que essa “novidades” (para mim, bobagens) do tipo “textos devem ser curtinhos, máximo dez linhas”, e palestras só devem ter 18 minutos. Tenho que rolar de rir. Por que será que as pessoas ficam uma hora e meia assistindo a um filme e só conseguem ficar 18 minutos prestando atenção a um palestrante? Será que o problema não é o palestrante? Entenderam?

A crise do ensino exige uma ampla reformulação das matrizes teóricas atrasadas com as quais se formam os profissionais. A crise se resolve… lendo. Estudando. Pesquisando…, mas não em sites prêt-à-porters. E os concursos só melhorarão a seleção de profissionais se pararem com o modelo quiz show. E os cursinhos não mais “treinarem” os candidatos.

Antigamente meu pai dizia: curso superior não encurta orelha de ninguém, ao se referir a um néscio advogado lá da minha terra. Hoje, adaptando, posso afirmar: a tecnologia não encurta orelha de aluno, professor, juiz, promotor, advogado.

Numa palavra: não adianta ter cinco computadores, startups etc. e estudar em resuminhos Itech.

Antigamente os livros mais vendidos eram os ementários. Agora os sites resumem os acórdãos…porque a malta não lê mais do que dez linhas. Eis o grande avanço (ironia).

Professor pode optar pelo modelo que quiser. Advogado também. Mas não me venham com essa conversa de que o ensino vai mal por não usar tecnologias. Bah. E que a aplicação do Direito melhorará. Poxa. Há quanto tempo já se usa tecnologia e… Bom, novas cartas para a redação.

Eu continuo com aulas expositivas e seminários, do mesmo modo como cursei mestrado e doutorado. Quem quiser assistir às minhas aulas jurássicas e constatar essas coisas ultrapassadas e não-inovadoras, está convidado a conferir. Mas não pode ligar o smartphone e nem ficar olhando a internet ou o Facebook. O professor sou eu!

Que tal um teste de legal design hoje? Descubra o problema do pamprincipiologismo no Direito. E, na segunda fase do “método”, escreva tudo em uma frase. Difícil? Também acho. Melhor ler o meu Dicionário de Hermenêutica, que, aliás, está em sua segunda edição, com dez novos verbetes (Valores, Autonomia do Direito, Cognitivismo e não-cognitivismo moral, Dualismo Metodológico, Livre Convencimento, Livre Apreciação da Prova, Literalidade, Voluntarismo, Jusnaturalismo e Precedentes). Agora já são 50. Tentei colocar tudo em dez páginas…, mas deu 485. Difícil. Muito.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

Categorias
Notícias

Vidas perdidas para Covid-19 pedem melhores respostas do Direito

Em paradigma da ordem natural das coisas, a morte tem o seu tempo devido, como um código de barras de validade da vida. Nada, entretanto, será possível categorizar quando de vidas interrompidas, no espectro trágico da atual pandemia. Rupturas que subtraem da ordem da vida a sua própria ordem, em dramáticas anti-relações com a concretude do natural.

As perdas desconformes, de tamanha dor, daqueles que partem antes, em partida que retira, estranhamente, a vida do seu lugar, por uma caminhada inconclusa de horizontes, constitui uma enorme perda de capital humano, o que tem enlutado a humanidade inteira.

Para a melhor compreensão do problema, os diálogos do direito com os desafios da pandemia estão a exigir a análise de suas causas mediatas e imediatas, com suas evidências de políticas públicas. Sobretudo, em suas repercussões jurídicas nas áreas do direito de família, dos direitos fundamentais, bioéticos, trabalhistas e cíveis, com atenções na defesa da vida.

São vidas interrompidas que, em instante súbito, desapartam o que viria existir, contrariando o ritmo essencial e ingente, quando a vida estava à frente. Nos significantes desses lutos diferentes, sem linguagem exata a tanto poder expressá-los, a fatídica realidade convoca-nos refletir quantas as décadas de vida estão perdidas no morrer, diante de tantas mortes prematuras, arrostadas pela Covid-19. O mundo está indigente das vidas de suas famílias.

Mudou o cotidiano, mudamos nós, o modelo civilizatório será outro; e os que morrem deixam seus legados, avisos e lições por um mundo mais responsável com o próximo. Suas vidas subtraídas reclamarão, na ordem social e no Direito, melhores respostas.

Vejamos:

(i) As relações sistêmicas (ADPF 671/20 vs. ADI 6362) — Sistemas de saúde colapsados ou não em (in)suficiência de leitos de UTI às necessidades naturais ou emergenciais dos pacientes têm sido uma questão primacial enfrentada.

Em nosso país, as discussões jurídicas controvertem quanto ao uso de leitos privados pelo sistema de saúde pública, no sentido seguinte:

a) pela unicidade do sistema de saúde (público e privado) no efeito de o S.U.S. ter um eficaz controle da totalidade dos leitos disponíveis, em sistema da chamada “fila única”, para a redução de óbitos (ADPF 671/2020, de 31 de março). A ação, onde se pretende a regulação pelo poder público da utilização dos leitos de unidades de tratamento intensivo (UTIs) na rede privada durante a pandemia, teve seguimento negado pelo Min. Relator Ricardo Lewandowski, em 03.04.2020, com agravo em tramitação [1].

b) pelas garantias de os beneficiários do sistema privado obterem o devido atendimento, pelas operadoras de planos de saúde, regulado pela Agência Nacional de Saúde, conforme os investimentos próprios nas suas redes assistenciais; atualmente afetados pela Lei nº 13.979/20, quando permite “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas”, com o pagamento posterior de “indenização justa” (ADI 6362/2020, de 02 de abril). [2] 

Antes de mais, a experiência pandêmica tem evidenciado, quanto bastante em perdas de vidas, que o direito à saúde, como um direito social fundamental e prioritário, é um dever do Estado, cumprindo-lhe efetivá-lo a contento (art 196, CF), com maiores investimentos permanentes e não sazonais e/ou precários. A figura jurídica da grave negligência pública induz diversas responsabilidades.

Em ser assim, a privatização da saúde é um plus, não podendo o Estado, através dela, elidir a sua continuada omissão em prestar, a custo próprio, serviços de saúde pública satisfatórios a todos. Há exatos quatro anos (05/2016), o Conselho Federal de Medicina, com base em dados do Ministério da Saúde, identificou em todo o país, apenas 40.960 leitos de UTI (1,8/10 mil hab.), certo que dessa soma, 20.173 estavam disponíveis ao SUS, a atender, no mínimo, 150 milhões de pessoas (razão de 0,95/10 mil hab.); e os demais 20.787 leitos, disponíveis pela saúde suplementar ou privada, para atender 50 milhões (razão de 4,5/10 mil hab.). Pior: constatou-se a má distribuição dos leitos (públicos e privados), quando “apenas 505 dos 5.570 municípios brasileiros possuíam pelo menos um leito de UTI”. [3]

Afinal, leciona o jurista português Jorge Reis Novais, “nosso sentido de justiça considera intocável: as situações-tipo em que essencialmente afectado o estatuto de igual dignidade de cada pessoa”.

(ii) As relações de subtração de vidas — Interessante pesquisa utilizando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) calculou o tempo de vida remanescente que as vítimas da Covid-19, depois dos cinquenta anos, perderam em média, desmistificando a preconceituosa ideia que “os idosos mortos por coronavírus teriam pouco tempo de vida mesmo antes da doença”. A pesquisa concluiu que: a) os homens tiveram, uma subtração de existência, em média, de 14 anos (sem doenças pré-existentes) ou de 13 anos (com comorbidades) e b) as mulheres, a seu turno, de 12 ou 11 anos, em respectivo. O gráfico do estudo indicou que quanto menor a idade e o número de comorbidades, mais tempo de vida o paciente que vem a óbito terá perdido. [4]

Ocorre que os indicadores da letalidade epidêmica não revelam dados suficientes que convivem com o trágico. Os registros que identificam agora uma multidão invisível que padece, antes do próprio vírus, da falta de uma assistência social adequada, encontram nas populações periféricas e na morte de idosos, as injúrias das desigualdades sociais e da solidão que já os desprotegiam, carecentes de um amor prestativo.

Tais relações de vidas subtraídas assinalam, em todas as faixas etárias, maior perda de vidas reprodutivas, implicando forte decesso na força de trabalho. Isso já sucede com taxas anuais de homicídio, considerando a Organização Mundial de Saúde (OMS) como epidêmicas as taxas de homicídio superiores a 10 homicídios a cada 100 mil habitantes. Ora bem. Os dados de morte na violência do Brasil vitimaram, dentre os 65,6 mil homicídios ocorridos em 2017, 35.783 jovens (entre 15 a 29 anos), significando “uma juventude perdida por mortes precoces”. [5]

(iii) As relações de força (o dom da vida desperdiçado) — Como se respeita o dom da vida quando as forças da morte vencem, diante das crônicas prestações deficitárias de saúde pública? Enquanto milhões de vidas foram salvas pelos epidemiologistas, a partir do primeiro (John Snow – 1813-58), com a invenção da vacina (sec. XVIII), a teoria microbiana das doenças (sec. XIX) e a descoberta dos grupos sanguíneos (Karl Landsteiner, 1900) para transfusões de sangue mais seguras; milhares de vidas são, todavia, perdidas, apesar dos avanços médicos. Muitos países agonizam até a morte, pela falência de cautelas nos investimentos sanitários, por insuficiência estatal com a proteção integral das pessoas e pela omissão iniludível ante as desigualdades sociais.

Em “O Novo Iluminismo”, Steven Pinker escreve que durante a maior parte da história humana, a mais devastadora causa de morte foram as doenças infecciosas e que os ganhos de longevidade são os espólios da vitória contra as doenças, fome, guerras, homicídios e acidentes.

No entanto, quanto mais contribui a ciência e os esforços médicos para a melhoria da condição humana, a contradição dramática é assinalada por Angus Deaton (Nobel de Economia, 2015), apontando que em partes do mundo “as pessoas vivem resignadas à péssima saúde e nunca sonharam que mudanças em suas instituições e normas podem melhorá-la”.

Ele vaticina, na sua obra “The Great Escape” (2013): “Mas, à medida que as pessoas passam a viver mais, o objetivo começa a ser atacar a ‘próxima’ doença – ‘próxima’ aqui significa a enfermidade que assolará as pessoas mais velhas com impacto letal maior que a ‘anterior’”.

Não há negar, por consabido, que as mutações continuadas dos coronavírus, ano a ano, conduzem a desafios que exigem sistemas de saúde mais aptos a enfrentá-los.

(iv) As relações senectárias — A relação dos idosos de risco com a segurança de suas sobrevivências reclama revisitação do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e maiores atenções com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Neste sentido, o PL 1.888/2020, de 14.04.2020, dispõe auxílio financeiro emergencial pela União, de até R$ 160 milhões a essas entidades que desenvolvam programas de institucionalização senectária, sujeitos aos princípios do art. 49 do I.I.

Lado outro, o PL nº 105/2020, de 05.02.2020, com muita oportunidade, introduz o novo instituto jurídico da senexão ao Estatuto do Idoso, como medida protetiva a colocar o idoso de risco em família substituta.

(v) As relações fatídicas — O fatídico das vidas subtraídas situa-se em diversos fenômenos:

a) A prioridade dos pacientes em confronto com o déficit de vagas em UTIS, em face da maior ou menor gravidade, tem seus critérios de admissão e alta em unidades de terapia intensiva, tratados pela Resolução nº 2.156-CFM, de 28.10.2016 (D.O.U. de 17.11.2006), em cinco níveis de necessidades que especifica. [6] 

A Resolução nº 2.077/2014 – CFM dispõe sobre a normatização do funcionamento dos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência, bem como do dimensionamento da equipe médica e do sistema de trabalho. Determina o atendimento denominado de “vaga zero” de pacientes mais graves e a quantificação da equipe médica “conforme a responsabilidade de cobertura populacional e especialidades que oferece na organização regional”.

b) as mortes diante de outros déficits, como os da falta de unidades médicas, de médicos, de profissionais de saúde e de medicamentos, com a gravidade atual dos índices de mortalidade, reclamam urgentes políticas públicas com melhor legislação que regule o funcionamento da saúde pública provido de condições mínimas obrigatórias à satisfatividade dos desempenhos.

c) as mortes periféricas dos que não ingressam, agora, nos hospitais por outras enfermidades, desconsideradas urgentes, configuram flagrante evidência do mal-estar da saúde que vitimiza milhares de outras pessoas.

d) as mortes no binômio relacional pobreza-letalidade, por razões de infortúnios sociais nunca resolvidos, à míngua de saneamento básico, de condições de habitação, de higiene, em extensivo rol de carências, subestimam, sempre, a dignidade humana. Mais de dezoito milhões no país não tem acesso diário ao fornecimento de água e esse dado, por si, é ilustrativo na moldura da vitimização mortal dos mais pobres.

Em todas as hipóteses acima, a objetividade implícita dos dados de mortalidade, pelos eventos e suas causas, acrescenta preocupação para o direito e aos seus operadores, à míngua de uma ordem jurídica de saúde pública com eficiência operacional. Logo, o único caminho a trilhar é o de sempre, o da Constituição.

(vi) As relações laborais — O adoecimento ocupacional por profissionais em face da Covid-19 configura, sim, acidente de trabalho, independente de culpa e dolo do empregador, máxime constituir prova diabólica exigir-se comprovação do momento preciso da contaminação, ou seja, tenha sido no ambiente de trabalho. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal (em 29.04.20), suspendendo os artigos 29 (que não considera como doença ocupacional as contaminações pelo novo coronavírus) e 31 (limitador da atuação dos auditores fiscais) da Medida Provisória 927/2020, de 22 de março. Na esteira desse julgado, tem-se relevante a garantia de pensões previdenciárias aos familiares dos que venham a óbito, por força da Covid-19. [7][8]

(vii) As relações resilientes — Sucede, então, neste Mês de Maria, a esperança tornar-se muito mais intensa. E porque onde mora a esperança, nela sempre existirão os sonhos (e os dias futuros), a fé mariana nos conduzirá ao dever etimológico de professar a crise (do grego, “krísis”), como ruptura de um estado anterior no absoluto significado de superação.

O amanhã convoca a confiança na travessia para os dias que virão, em vida pulsante. Na experiencia humanitária da pandemia que vitima o mundo, há uma morte que não provoca morte: a humanidade de ontem fenece e uma outra subsequente surgirá diferente, bem melhor, em um novo iluminismo. “O tempo é quando”, reza o poema.


[1] Estudos iniciais, nessa linha, estimam, até esta última semana, que até 14,7 mil mortes seriam evitadas. Web: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2020/05/05/fila-unica-para-utis-poderia-evitar-147-mil-obitos-diz-estudo.htm?cmpid=copiaecola – Fonte: jornal “O Estado de São Paulo”. Acesso em 05.05.2020. Conferir decisão do STF. Web:

http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440821&ori=1

[2] A ação, com o relator prevento pela ADPF 671/2020, Min. Ricardo Lewandowski, está com vistas ao AGU. Web: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886574

[3] Fonte: Conselho Federal de Medicina. Matéria a propósito da Resolução nº Resolução CFM nº 2.156/2016, que define critérios para melhorar fluxo de atendimento médico em UTIs.

Web: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26557:2016-11-17-13-28-46&catid=3

[4] Fonte: DANTAS, Carolina. G1. Globo.

Web: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/02/idosos-perdem-em-media-uma-decada-de-vida-ao-morrer-por-covid-19-diz-estudo.ghtml

[5] Atlas da Violência 2019: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com dados de 2017, coletados pelo Ministério da Saúde. Web: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48504184

[6] PUPO, Matheus. DAMIANI, André. Médicos precisam de ‘vacina jurídica’ para enfrentar colapso. In: Consultor Jurídico, de 05.05.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-05/damiani-pupo-medicos-vacina-juridica-colapso

[7] Decisão proferida pelo min. Marco Aurélio de Melo, no julgamento de sete ações diretas de inconstitucionalidade contra a M.P. 927/2020 (ADIs 6.342, 6.344, 6.346, 6.348, 6.349, 6.352 e 6.354). Web: https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/suspensos-artigos-mp-flexibilizam-regras-trabalhistas

[8] Ver, a propósito: ARANTES, Denise. RAMOS, Gustavo. “Covid-19: empregador é responsável por adoecimento ocupacional”. In: Consultor Jurídico, em 05.05.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-05/arantes-ramos-empregador-responsavel-adoecimento-ocupacional


Resenhas bibliográficas:

DEATON, Angus. A Grande saída. Saúde, Riqueza e as origens da desigualdade. trad. Marcelo Levy; Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017, 1ª ed., 335 p.;

PINKER, Steven. O Novo Iluminismo. Em defesa da razão, da ciência e do humanismo. Trad, Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed., 2018, 686 p.;

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)