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Soliano: A negociação público-privada durante e após a pandemia

No último dia 25, completou dois anos da publicação da Lei Federal nº 13.665/18, diploma que promoveu expansão substancial do Decreto-Lei nº 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Conhecida por alguns como “a nova LINDB”, os novos dispositivos se voltam especificamente para as múltiplas dimensões de aplicação do direito público: administrativa, controladora ou judicial.

Entre as várias inovações positivas, a alteração na LINDB inseriu no ordenamento jurídico dispositivo que autoriza a realização de compromisso entre a Administração Pública e particulares. Embora não tenha sido uma inovação plena, afinal outros mecanismos similares já existiam (TACs, acordos de leniência, colaboração premiada, acordos substitutivos no âmbito das agências reguladoras, termos de compromisso no âmbito da CVM, termos de cessação de conduta no âmbito do CADE, etc.), o artigo 26 da LINDB universalizou e consagrou, em definitivo, a consensualidade como um instrumental de ação administrativa.

Estabelece o dispositivo que para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público (hipóteses), inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral (pressupostos), celebrar compromisso com os interessados (meio), observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial (condição de eficácia)“. Por fim, dispõe sobre os elementos fundamentais do compromisso no seu parágrafo primeiro.

O dispositivo, portanto, contribui para a substituição de uma administração que só age de forma impositiva e unilateral por uma administração que também negocia, busca consensos e ajusta acordos de vontade. O pressuposto fundamental é que a consensualidade pode ser mais útil, eficiente e democrática do que a imposição unilateral de vontades da Administração e do que arrastar discussões administrativas e/ou judiciais por anos.

Apesar do potencial positivo do artigo 26, passados dois anos de sua publicação ainda é difícil encontrar autoridades administrativas que dele se utilizem. Em verdade, muitas autoridades desconhecem a sua existência. Assim, salvo a regulamentação federal por meio do Decreto nº 9.830/2019 e os regramentos e práticas dos órgãos e entidades que já se utilizavam da negociação antes da alteração na LINDB, o artigo 26 ainda aguarda sua plena implementação.

Entende-se que a não utilização do permissivo criado pelo dispositivo se deve, em parte, à sua não regulamentação pela maioria dos entes federados. Embora a regulamentação não seja uma condição de validade e eficácia da negociação público-privada, ela dá ao gestor e ao particular maior certeza e segurança sobre a licitude e estabilidade do negócio, além de deixar mais claro a sua possibilidade abstrata.

Contudo, a atípica situação por qual passa o país (e o mundo) pode funcionar como um fator de estímulo à ampliação da atividade negocial do Poder Público.

Por um lado, é certo que as situações de excepcionalidade, urgência, calamidade, etc. tendem a requerer e justificar ações estatais com alto teor de coerção e restrição. Por outro lado, entretanto, não é menos verdadeiro que mesmo nessas situações a negociação e o consenso podem ser caminhos produtivos. Isto é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente a quantidade e variedade de controvérsias jurídico-administrativas que surgirão após o fim da situação de calamidade ou mesmo durante a progressiva transição de volta à “normalidade”.

Entre outras, pode-se imaginar diversas situações de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa que poderão emergir durante e depois do período de crise: I) desequilíbrios econômico-financeiro de contratos, sejam eles de concessão, sejam de obras regidas pelo RDC, sejam de obras submetidas ao regime ordinário, sejam os de prestação de serviço e/ou de entrega de bens; II) descumprimentos contratuais os mais diversos (prazo, objeto, modo, informação, etc.) e nos mais diversos tipos de contratos; III) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados de requisições administrativas ou desapropriações (in)diretas; IV) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados da imposição de limitações administrativas ou expropriações regulatórias/ordenadoras, temporárias ou não; V) desrespeito a medidas a todos impostas; VI) incertezas sobre a incidência ou não de vedações/limitações em decorrência da pluralidade de atividades exercidas pelo particular; VII) dúvidas sobre a licitude de determinadas condutas em decorrência da sobreposição de vedações e não-vedações por entes federados diversos; VIII) incertezas sobre o trâmite, o estado ou os prazos dos processos administrativos decorrentes da enorme quantidade de atos normativos publicados e da extrema dificuldade de acompanhá-los; e IX) ações de improbidade e procedimentos administrativos de investigação e punição de servidores a respeito de suas posturas, orientações e decisões durante o período de calamidade.

Ademais, mesmo com a suspensão da vida ordinária, as mais variadas controvérsias administrativas que não possuem qualquer relação com a pandemia certamente continuam surgindo diariamente.

É evidente que a variedade de situações é grande, assim como suas complexidades e impactos sociais e/ou individuais. Diversas delas estão ligadas à aplicação ou não de sanções, muitas estão atreladas à continuidade regular de atividades essenciais ou simplesmente importantes, a maioria envolve questões de insegurança jurídica.

Este parece ser um ambiente fértil para intensificar a realizações de negociações público-privadas. A sobrecarga de processos administrativos com potencial de se alongarem por muito tempo, em esfera administrativa e judicial, recomenda uma ação conciliadora e negocial do Poder Público. O negócio público-privado antecipa no tempo a satisfação do interesse público, descarrega a administração sancionadora e impositiva para lidar com questões em que a negociação se mostrar impossível ou inviável, minimiza a necessidade de judicialização, possui uma tendência a estimular o cumprimento pelo particular maior do que a continuidade da controvérsia e, ao menos em tese, possui menos custos de transação do que as alternativas. Adotar, por princípio ou viés de inércia, uma postura não-negocial pode se traduzir em ineficiência e prejuízo ao interesse público.

Vale destacar que o regramento criado pelo artigo 26 da LINDB é amplo o suficiente para autorizar os mais variados tipos de negociações e compromissos. Embora seja possível e até recomendável ao administrador olhar para práticas e modelos já consolidados de negociação público-privada, ele não está obrigado a segui-los. Há espaço para criatividade e modelagens de soluções ‘fora da caixa”. Em verdade, a situação de excepcionalidade que vivemos clama por soluções inovadoras.

Evidentemente que esse campo de criatividade deverá estar pautado não apenas pelos pressupostos e condições acima delineados, mas, também, pela ampla transparência, publicidade e adequada e específica motivação/fundamentação. A negociação público-privada é uma forma de agir administrativo, razão pela qual segue balizada pelos princípios que regem escolhas públicas.

Poder-se-ia arguir que a quantidade de situações conflituosas, de incerteza ou de irregularidade será tão grande que o ideal seria, ao invés da celebração de acordos público-privados, a elaboração de um regime especial estabelecido em lei. Embora um regime legal apresente relevantes aspectos positivos, estas alternativas não são e não podem ser excludentes. Isso porque, ainda que se institua regimes especiais ou de transição, haverá sempre a possibilidade de incerteza jurídica, situação contenciosa ou existência ou não de irregularidade a respeito da sua aplicação. Ou seja, a edição de lei não torna a atividade administrativa-negocial desnecessária.

Em um cenário de possíveis múltiplas negociações público-privadas, os órgãos de controle deverão atuar em uma linha tênue. Por um lado, devem estar atentos para que as negociações público-privado não se transformem em uma válvula de escape para o esvaziamento completo da legalidade ou para capturas particularistas. Os objetivos, mecanismos, pressupostos e condições deverão estar presentes e motivados. Por outro lado, devem: I) reconhecer a licitude e legitimidade abstrata da consensualidade administrativa e das negociações público-privadas; II) presumir a boa-fé do particular e do gestor; III) não pretender se substituírem aos gestores; e IV) considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (artigo 22 da LINDB).

As situações de excepcionalidade não precisam ser conduzidas apenas pelo “Direito Administrativo raiz” (autoridade, unilateralidade, imposição), como quis um meme que circulou nas redes sociais nas primeiras semanas da quarentena. Pode ser também um momento em que o convívio entre coerção (sempre limitada e condicionada) e negociação (sempre limitada e condicionada) seja não só possível, mas necessário. A manutenção desta convivência no médio e longo prazo pode ser um legado positivo do momento atípico que se vive.

 é advogado do Rego, Nolasco & Lins Advogados, professor de Direito Econômica da Faculdade Baiana de Direito, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/BA e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Coronavírus e mudanças climáticas: conexões e responsabilidades

Mudanças climáticas são as variações do clima ao longo do tempo, no que se refere aos efeitos do aquecimento global como as mudanças de temperatura, desregramento climático, tempestades tropicais intensas, chuvas torrenciais, nebulosidade, secas, inundações, enchentes, deslizamentos de terra, descongelamento das geleiras, aumento do nível dos oceanos e outros fenômenos da natureza, todas analisadas em relação às médias históricas. De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, de 1992, mudança climática “significa uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis.”

As mudanças climáticas podem ocorrer tanto de causas naturais, como de causas antrópicas (realizadas pelo homem). Annelise Monteiro Steigleder aponta que: “Dentre as causas naturais, suscetíveis de provocar alterações no clima, destacam-se, dentre outras, o ciclo solar, a variação da órbita, os impactos dos meteoritos e as mudanças ou deriva dos continentes, aproximando-se ou afastando-se dos pólos. A essas causas, agregam-se as intervenções humanas, responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa (greenhouse effect), como o gás carbônico (Co2), que concorrem para o aumento da temperatura da Terra. Concomitantemente, o progressivo desmatamento, vinculado à expansão da agropecuária e à indústria madeireira, inviabiliza que as florestas e outras formas de vegetação possam funcionar como “sumidouros”, absorvendo os gases de efeito estufa da atmosfera.”

Há controvérsias científicas sobre as causas da mudanças climáticas. Contudo, a ONU reconheceu o liame destas com as ações antrópicas associadas à emissão de gases de efeito estufa, o que resta perfeitamente evidenciado nas definições inseridas no art. 1º da Convenção-Quadro, como os “Efeitos negativos da mudança do clima”. Estes são as mudanças no meio ambiente físico ou biota resultantes da mudança de clima que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resiliência ou produtividade dos ecossistemas naturais e administrados, sobre o funcionamento de sistemas socioeconômicos ou sobre a saúde e o bem estar humanos.

Leonor Assad ressalta que a OMS considera as mudanças climáticas a maior ameaça à saúde mundial do século XXI: o aquecimento global será a causa de 250 mil mortes adicionais por ano até 2030. Os principais riscos para a saúde são: Ondas de calor mais intensas; incêndios; aumento da prevalência de doenças causadas por alimentos e água contaminados e de doenças transmitidas por vetores; aumento da probabilidade de desnutrição resultante da redução da produção de alimentos em regiões pobres e perda da capacidade de trabalho em populações vulneráveis.

“Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório sobre o assunto – “Investing to overcome the global impact ofneglected tropical diseases”, alertando para a relação perigosa entre aquecimento global e doenças tropicais negligenciadas: com o aumento da temperatura, a zona de clima tropical do planeta deve se expandir, ampliando também as áreas acometidas por doenças tropicais como a malária e a dengue. De acordo com o documento, a mudança climática deverá aumentar a propagação de várias DTNs, notadamente a dengue, cujo vetor, o mosquito “Aedes aegypti”, tem ciclo de vida diretamente influenciado pela temperatura, precipitação e umidade relativa do ar.”

Em artigo intitulado “Relação explosiva: aquecimento global e doenças tropicais”, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, explica-se que há muitos anos a relação entre as mudanças climáticas e a saúde foi declarada um consenso científico pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da Organização das Nações Unidas. E especialistas ressaltaram no Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas, realizado em Amsterdã, que as epidemias de doenças vetoriais vão se desenvolver para alcançar uma grande parte da Europa nas próximas décadas em virtude das mudanças climáticas, viagens e comércio internacional.

Resta evidente que as mudanças climáticas devem exigir novas maneiras de se pensar o controle e a prevenção das doenças em um futuro próximo. Assim, o monitoramento da incidência e da expansão geográfica dessas doenças deve fazer parte da vigilância epidemiológica, com foco sobre as populações que já sofrem ou que poderão sofrer os impactos da variação climática. Ecossistemas alterados pela ação do homem não só potencializam a transmissão de doenças emergentes, mas contribuem também para a instalação de outras doenças associadas à ecotoxicologia, as quais afetam o sistema imunológico e agridem a saúde de um modo geral, mesmo não sendo infecciosas.

A Pandemia é declarada quando ocorre uma doença infecciosa que ameaça, simultaneamente, muitas pessoas ao redor do mundo. Entre 1918 e 1920, estima-se que 50 a 100 milhões de pessoas tenham morrido na pandemia da gripe espanhola, mais do que os 17 milhões de vítimas, entre civis e militares, da 1ª Guerra Mundial. Em 2009 enfrentamos a disseminação global do vírus influenza H1N1, o qual causou a pandemia da gripe suína. Especialistas acreditam que ele tenha infectado milhões de pessoas e matado centenas de milhares.

O Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus COVID-19, do Ministério da Saúde, relata que, em 29 de dezembro de 2019, um hospital em Wuhan admitiu quatro pessoas com pneumonia e reconheceu que as quatro haviam trabalhado no Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Ali se vendem, nos mesmos espaços, aves vivas, produtos aquáticos e vários tipos de animais selvagens ao público. O hospital relatou essa ocorrência ao Centro de Controle de Doenças (CDC-China) e os epidemiologistas de campo da China (FETP-China) encontraram pacientes adicionais vinculados ao mercado. Em 30 de dezembro, as autoridades de saúde da província de Hubei notificaram esse cluster ao CDC da China.

Um estudo publicado no dia 26 de março pela revista científica Nature sugere que o pangolim – um mamífero que se assemelha ao tatu-bola e é vítima do tráfico ilegal de animais selvagens – seria o elo mais provável entre o Sars-Cov-2, morcegos e humanos. Pesquisadores de Hong Kong, da China e da Austrália descobriram que as sequências genéticas de coronavírus em pangolins são 85,5% a 92,4% idênticas ao novo coronavírus. Isso significa que, antes de chegar aos seres humanos, o vírus provavelmente foi transmitido de morcegos para o pangolim. Acredita-se também que o ebola tenha se originado em morcegos, assim como dois outros tipos de coronavírus – o Sars-Cov, que surgiu na Ásia em 2003 após ser transmitido de morcegos para civetas e depois para humanos, e o Mers-Cov, que infectou cerca de 2.500 pessoas desde 2012, após ser transmitido de camelos para humanos. Os coronavírus são doenças virais zoonóticas, ou seja, que podem se espalhar entre animais e humanos. O vírus passa por uma série de mutações genéticas no animal, o que o permite infectar seres humanos e se multiplicar.

Esse texto é uma versão reduzida.

Clique aqui para ler o artigo completo.


Decreto nº 2.652, de 1º de julho de 1998. Promulga a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, assinada em Nova York, em 9 de maio de 1992. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d2652.htm.

8. “Sumidouro” significa qualquer processo, atividade ou mecanismo que remova um gás de efeito estufa, um aerosol ou um precursor de um gás de efeito estufa da atmosfera.

STEIGLEDER, Annelise Monteiro. A imputação da responsabilidade civil por danos ambientais associados às mudanças climáticas. In: Direito e mudanças climáticas [recurso eletrônico]: responsabilidade civil e mudanças climáticas / organizado por Paula Lavratti e Vanêsca Buzelato Prestes. – São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2010. – (Direito e Mudanças Climáticas; 2) 117 p.

ASSAD, Leonor. Relações perigosas: aumento de temperatura e doenças negligenciadas. In Revista Ciência e Cultura. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000100007.

Relação explosiva: aquecimento global e doenças tropicais. Publicação: 6 de novembro de 2019. Por meio de modelos matemáticos, cientistas estimam como será, até o fim do século, a área de distribuição de quatro arbovírus: Oropouche, Mayaro, Rocio e vírus da encefalite de Saint Louis. In: https://www.sbmt.org.br/portal/relacao-explosiva-aquecimento-global-e-doencas-tropicais.

Idem.

https://www.dw.com/pt-br/de-morcegos-a-pangolins-como-v%C3%ADrus-chegam-at%C3%A9-o-ser-humano/a-52969233. Veja também: https://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2020/04/01/158242-de-morcegos-a-pangolins-como-virus-chegam-ate-o-ser-humano.html.

 é advogada, professora de Direito Ambiental e mestre em Direito pela Unesp de Franca.

 é promotor de Justiça, professor, mestre pela PUC-SP e membro do MPD.