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Medon Affonso: Roupa suja não se lava na internet de casa

“Roupa suja se lava em casa”. Por muitos anos, essa máxima vem sendo repetida na sociedade como expressão da valorização da noção de privacidade e intimidade no seio das relações familiares. Conflitos internos devem ser resolvidos dentro de quatro paredes. Quando muito, devem contar com o apoio de profissionais de saúde ou, num caso extremo, podem ser levados a uma Vara de Família. No entanto, vem crescendo o número de casais que, quando se separam, passam a discutir seus problemas domésticos em seus perfis de redes sociais na internet, conclamando milhares de seguidores a tomar partido em disputas pessoais que, com frequência, dizem respeito aos seus filhos menores. O que fazer nesses casos?

Como tivemos a oportunidade de analisar em outra sede [1], os chamados “influenciadores digitais” expõem boa parte de suas vidas nas redes sociais. As razões que levam uma pessoa a segui-los são das mais variadas naturezas, mas, de um modo geral, os seguidores se identificam com o lifestyle, isto é, o modo de vida daqueles influenciadores. Há, assim, diversos perfis, que, com frequência, combinam-se numa mesma pessoa: influenciadoras que dão dicas de moda e maquiagem, que compartilham receitas e hábitos de vida saudáveis (já se advertiu para o risco da divulgação de dietas por pessoas não habilitadas [2]), que dão dicas sobre concursos públicos e até mesmo que compartilham com os seguidores as delícias e os percalços da maternidade/paternidade. E, com os influenciadores, normalmente vêm seus familiares mais próximos.

Os seguidores passam a conhecer não só os hábitos de vida de quem seguem, mas de quem os cerca. Em muitos casos, as duas pessoas num casal são influenciadoras, cada qual com seu nicho. Ou, pelo menos, uma é influenciadora e, em decorrência disso, a outra passa a ter um grande número de seguidores.

Nesse momento, tudo é lindo. Os casais são perfeitos e vendem essa imagem de perfeição. Como se costumava dizer nos idos tempos, “é um casal do comercial de margarina da TV”. Só que a realidade é outra: hoje o casal não faz mais só uma peça publicitária. Não é só a margarina que é oferecida ao público, os seguidores passam a acompanhar seus casais de influenciadores em restaurantes, hotéis e em diversos momentos do dia a dia. E, como na vida de grande parte dos casais, também os filhos se tornam protagonistas de stories, lives e posts.

No entanto, o amor não dura para sempre. Como o poeta Vinicius de Moraes já alertara: “Que seja infinito enquanto dure” [3]. E quando acaba? Na expressão corriqueira dos advogados e professores de Direito de Família, “antes do casamento, meu bem; depois, meus bens”. Muitos casais vão parar, então, diante de um juiz e, se tiverem filhos, também de um membro do Ministério Público. O conflito se judicializa. Só que, em alguns casos, ele também viraliza: vai parar nas redes sociais, como boa parte do que acontecia na vida daquele casal. Afinal, se tudo era compartilhado com os seguidores, por que seria diferente com a separação?

Começam, então, as lives com sessões de perguntas e respostas. Os seguidores, ávidos de curiosidade, querem saber: “Mas ele te traiu? Ele não te fazia feliz? Como estão as crianças? Quem vai ficar com elas? Ele está te deixando ver os cachorros?”. O privado se torna público. Por certo, não são tão grandes os problemas, desde que não haja afirmações falsas ou lesões à personalidade que impliquem até mesmo crimes contra a honra. A gravidade normalmente se revela quando o casal desfeito passa a envolver terceiros. E piora quando os envolvidos são os filhos.

Como analisamos anteriormente, o sharenting “consiste, basicamente, na prática de pais ou responsáveis que postam, de maneira exagerada, em suas redes sociais, fotos, vídeos e informações dos seus filhos menores” [4]. Na hipótese de que se trata agora, os pais não estão só postando fotos ou exibindo os filhos nas redes, mas tornando públicas situações e conflitos que dizem respeito a eles após a separação.

Não é raro vermos nas redes sociais influenciadores que divulgam a relação do outro genitor ou genitora com o filho após a separação. Basta pesquisar um pouco para encontrar relatos de influenciadores que reclamam que o outro genitor não está permitindo visitas ou contato com os filhos, que está sendo cruel, que está atrasando a pensão ou nem está pagando. Em alguns casos mais extremos, chegam ao ponto de incitar seus milhares de seguidores a invadir os perfis de seus ex-companheiros, hostilizando-os, em nome de uma suposta defesa da criança ou, até mesmo, pressionando para que aumentem o valor dos alimentos. Com atitudes como essas, acabam por violar regras de sigilo impostas no âmbito de processos judiciais de guarda.

O litígio de família se transfere das mãos de um juiz imparcial para o tribunal do júri dos apaixonados seguidores virtuais, que de tão íntimos da vida daquela família sentem-se na obrigação e no direito de opinar e participar ativamente. Em meio a tudo isso, coloca-se uma criança, que, se ainda não tem acesso à internet, acaba descobrindo por meio de colegas de classe na escola que seus pais estão discutindo questões sensíveis sobre a sua vida nas redes sociais. A gravidade dessa situação é inquestionável porque o conteúdo desses vídeos, uma vez na rede, dificilmente se apagará e poderá acompanhar aquela criança por toda a sua vida. É como um filme de terror que se protrai no tempo: o drama da separação dos pais pronto para ser revivido a um clique de distância. São estes reflexos de uma espetacularização da vida privada, com impactos danosos ainda incalculáveis.

Pode-se afirmar, com base em alguns casos emblemáticos expostos na mídia, que as redes sociais passam a ser palco até mesmo da prática de alienação parental, pois muitos desses pais criticam os outros, chegando a afirmar, inclusive, que estes não ligam para os filhos. As figuras maternas e paternas são diminuídas sob os olhares atentos de dezenas de milhares de seguidores. Confundem o fim da conjugalidade com a parentalidade, utilizando as crianças como meio “para atingir o outro genitor, acarretando danos à integridade psíquica dos filhos menores” [5].

Os filhos, na contramão do que ensinam as doutrinas de proteção integral — melhor interesse, parentalidade responsável e cuidado [6] , acabam sendo, muitas vezes, instrumentos de projeção pessoal de seus pais, que, ainda que involuntariamente, transformam as polêmicas domésticas envolvendo as crianças em fonte de aumento de curtidas e seguidores. Tudo é mídia.

Na certeira contribuição de Ana Carolina Brochado Teixeira, “diante das diretrizes constitucionais e estatutárias que ressaltam a função promocional do Direito, o relacionamento entre genitores e filho passou a ter como objetivo maior tutelar a personalidade deste e, portanto, o exercício de seus direitos fundamentais, para que possa, neste contexto, edificar sua dignidade enquanto sujeito” [7]. A autoridade parental funcionaliza-se, portanto, ao melhor interesse da criança, que desponta como norte na condução de uma parentalidade responsável. Discutir a vida de uma criança e expor sua intimidade numa rede social é o oposto disso: é uma parentalidade virtual irresponsável.

Por certo, o Ministério Público, enquanto guardião da infância e da juventude, tem o dever de atuar para fiscalizar este tipo de comportamento, judicializando-o quando necessário, opinando, em casos extremos, por eventual suspensão ou perda do poder familiar. Entretanto, o Judiciário não precisaria ser acionado se houvesse maior senso de responsabilidade por parte dos genitores, bem como dos seguidores. Em outras palavras, se não houvesse público interessado nesse tipo de polêmica, os casais não iriam lavar roupa suja na internet de suas casas.

Ainda que se objete que alguns pais recorrem a esses expedientes como uma tentativa desesperada de lutar por direitos da própria criança (ex: se o pai/mãe que está inadimplente quanto aos alimentos for famoso), é preciso tomar cuidado para que o remédio não seja pior que a doença e os danos causados ao desenvolvimento psicológico da criança não sejam mais graves que o motivo que levou os pais a exporem seus conflitos na internet.

É necessário considerar, desse modo, que o exercício responsável da parentalidade deve ser sempre feito no melhor interesse da criança e não em seu prejuízo. A publicização de conflitos familiares para o grande público de seguidores curiosos não pode ser tido como o melhor caminho, pois, antes de tudo, a imagem, a intimidade, a privacidade e o bem-estar da criança devem ser preservados. Roupa suja se lava em casa, mas não por meio de stories, posts ou lives. Por mais que os pais possam se despir dos papeis de influenciadores, há um papel do qual não há como se afastar: o de pai e mãe. São esses papeis sérios, que independem das brigas do casal e exigem uma responsabilidade que não pode ser atenuada por filtros nem efeitos de Instagram.

 professor substituto de Direito Civil da UFRJ e doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ.

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Alexandre Triches: Advogados têm de desenvolver cultura de Previdência

O advogado é um trabalhador informal e está sendo duramente atingido pela crise da Covid-19. Os seus rendimentos não são garantidos mensalmente e as despesas nunca param de ocorrer. Portanto, mesmo que se faça imprescindível, e tudo demonstra que sim, o isolamento também traz riscos à atividade econômica da advocacia.

O advogado, uma vez atingido pela pandemia, corre o risco de não ter dinheiro para pagar a conta da luz, o rancho do supermercado e o financiamento do carro. Corre o risco também de não possuir dinheiro para eventuais gastos médicos que se façam necessários, para si e para a sua família.

Parece história de ambulantes, de vendedores ou de caixeiros viajantes. Não, essa é a história de todo trabalhador informal e é também a história de muitos advogados. Por não estarem protegidos pelo emprego, tampouco com a certeza de ganhos mensais, convivem com uma série de riscos e têm dificuldade de se organizar financeiramente.

Por isso, crises — como a atualmente vivida — devem reforçar a cultura previdenciária dentro da classe dos advogados. E medida concreta nesse sentido é a busca de orientação quanto à melhor forma de se precaver.

Muitas dúvidas existem sobre esse tema e inúmeros mitos: um deles de que o advogado é um segurado facultativo e que pode pagar a previdência com alíquota incidente sobre a base de cálculo que lhe aprouver. Outro: o de que a Previdência representa, unicamente, o aporte de contribuições ao seguro social.

Quanto ao mito da facultatividade do advogado com relação à contribuição do INSS, importante seria dar visibilidade às histórias de colegas do passado que, pela desinformação e pela pouca preocupação com a previdência, foram surpreendidos com situações de necessidade em face de doenças e da idade avançada. Não são poucos os casos.

Quanto ao segundo ponto, faz-se necessário compreender que ser previdente é diversificar os investimentos. Previdência não significa depender unicamente do seguro social seja público ou privado —, mas também da poupança, do seguro, ou de qualquer outro tipo de investimento que possa gerar tranquilidade no futuro.

O que se faz necessário é um olhar para o futuro, o que nem sempre acontece com os profissionais autônomos. É a construção de uma cultura previdenciária entre os advogados. Há um belo trabalho sendo realizado pelo sistema OABPREV e, mesmo assim, muitos não conhecem a entidade, ou não entendem o papel que ela exerce. Por isso a compulsoriedade da filiação às OABPREVs é outro tema que necessita ser debatido.

A preocupação com a previdência, por fim, demandará a construção de um atlas social da advocacia, com o papel de levantar estatísticas sobre os advogados, tais como expectativa de vida e sobrevida, doenças, invalidez e desemprego.  A consolidação desse mapeamento permitirá, inclusive, a construção de um programa de educação previdenciária, o que seria muito valioso aos advogados, principalmente os informais.

Fica a reflexão: quantos daqueles que postularam o auxílio emergencial de R$ 600, ofertado pelo Governo Federal em face da Covid-19, são advogados que exercem a profissão?  

A resposta a essa questão pode ser um bom começo para o debate sobre a importância da educação previdenciária, revigorado após a pandemia da Covid-19. 

 é advogado, professor universitário e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário.