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Marcelo Tavares: A restrição à liberdade e o Conselho da República

O enfrentamento da crise sanitária do novo coronavírus vem ensejando alguns desafios importantes para o Brasil após mais de 30 anos do Estado Democrático de Direito, renascido da promulgação da Constituição em 1988.

Existem duas questões jurídicas que merecem ser trazidas ao debate no momento em que União, estados e municípios adotam medidas para evitar a rápida propagação da doença e para possibilitar que o sistema de saúde se aparelhe adequadamente para cuidar das pessoas infectadas.

A primeira questão diz respeito aos limites de restrição de direitos individuais que podem ser impostos. A segunda aborda o potencial pouco explorado que o Conselho da República oferece como instância de diálogo institucional no gerenciamento de riscos.

No que se refere ao primeiro tema, as relações institucionais no Brasil estão pautadas no modelo do Estado Liberal Democrático de Direito, caracterizado pelas premissas do respeito à Constituição e às leis, à legitimação do poder na vontade do povo, à separação de Poderes, aos direitos fundamentais, ao acesso a um Judiciário independente e ao devido processo legal [1]. 

Dentro desse padrão organizacional, existem dois ambientes de funcionamento: I) o de legalidade ordinária, no qual cada Poder exerce as atribuições constitucionalmente previstas e as pessoas desfrutam dos direitos fundamentais garantidos; e II) o de legalidade extraordinária, em que ocorre uma hipertrofia do Poder Executivo e no qual há restrição de direitos e suspensão de garantias dos cidadãos (o que ainda não foi testado nos últimos trinta anos) [2].

No primeiro modelo, o de estado de legalidade ordinária, diante de um problema, não será necessário fazer uso de modificações organizacionais relevantes ou de impor maior compressão ao espaço de liberdade individual. Por exemplo, a Administração pode lidar com uma crise sanitária mediante maior aprovisionamento de verbas orçamentárias (com autorização do Congresso), ação intensa de agentes públicos nas áreas afetadas, utilização de mecanismos de restrição do comércio e dos transportes públicos e recomendação de isolamento de pessoas.

Contudo, acionado o sistema de legalidade extraordinária para a defesa do estado e das instituições democráticas, dois tipos de medidas estão previstas constitucionalmente para dar maior capacidade de o Executivo responder à crise rapidamente e que permitem a suspensão de garantias: I) o estado de defesa (mais brando e previsto no artigo 136 da Constituição); II) o estado de sítio (mais forte e previsto nos artigos 137, 138 e 139 da Constituição).

O estado de defesa pode ser decretado pelo presidente da República, após ouvidos o Conselho de Defesa Nacional e o Conselho da República, em locais restritos e determinados para preservar ou restabelecer a ordem pública e a paz ameaçadas por grave a iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, pelo prazo de 30 dias, sendo possível uma prorrogação. Durante o estado de defesa, pode haver restrição ao direito de reunião, ao sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica ou telefônica e até mesmo prisão por crime contra o Estado determinada por autoridade administrativa. O decreto deve ser submetido à aprovação posterior do Congresso Nacional.

O estado de sítio serve para enfrentar crises de maior envergadura, quando o estado de defesa não for eficaz, houver comoção grave de repercussão nacional ou declaração de estado de guerra. O presidente, para decretá-lo em local determinado ou em todo território nacional, deve ouvir também o Conselho de Defesa Nacional e o Conselho da República e solicitar autorização prévia do Congresso. Sua duração pode ser de no máximo 30 dias, prorrogáveis de cada vez, exceto em caso de guerra, quando vigorará no período em que esta ocorrer. Durante o estado de sítio, as pessoas podem ser obrigadas a permanecer em determinados lugares; pode haver detenção, sem ordem judicial, em edifício não destinado a presos comuns; bem como busca e apreensão por ordem administrativa, além de intervenção em empresas e requisição de bens [3].

É fácil verificar que, no enfrentamento da crise sanitária da Covid-19, o Brasil não se encontra em nenhuma das duas situações extraordinárias, de decretação de estado de defesa ou de estado de sítio, uma vez que não há ameaça à paz ou à ordem ou comoção grave de repercussão nacional.

Logo, as decisões estatais nesta emergência sanitária precisam respeitar os contornos do estado de legalidade ordinária, com o funcionamento normal das instituições de todos os poderes da União, a boa relação federativa e a plena proteção de direitos e de garantias individuais.

Isso se torna relevante quando se observa uma tendência, por parte de alguns governantes, de pretender constranger indevidamente direitos individuais, como o da liberdade de ir e vir, até mesmo mediante enquadramento criminal de conduta e decretação de “toque de recolher”.

Caso haja necessidade de se atingir esse nível de restrição da liberdade, será necessário que o presidente da República decrete estado de defesa ou solicite ao Congresso autorização para decretar o estado de sítio, fundamentadamente e a partir da presença real dos pressupostos constitucionais [4]. 

Afastada a hipótese de atuação na legalidade extraordinária, o ideal é que os órgãos do Estado ajam preventivamente, com base no conhecimento científico disponível sobre a nova doença, adotando medidas de redução do contato social das pessoas, de acordo com a necessidade, e sempre atentos ao impacto econômico, às peculiaridades regionais e à consequência financeira nas contas públicas.

Nesse caso, parece oportuna a aplicação do princípio da precaução, que pode servir de guia para que a adoção de decisões políticas racionais, de um lado, fundamentadas em premissas científicas sobre e doença e, de outro, em critérios democráticos e de visão global do problema [5].

A principal contribuição do princípio da precaução para a atuação estatal nesta crise sanitária é a de separar o processo decisório em duas fases: I) a de avaliação de risco; e II) a de gestão de riscos.

No caso do coronavírus, o uso do princípio da precaução implica o reconhecimento da existência: I) de uma instância técnica de avaliação de riscos, no âmbito do Ministério da Saúde, tendo por foco a análise da progressão da doença e suas implicações; e II) de uma instância política de gestão de riscos sob a responsabilidade do presidente da República, a quem cabe realizar, ouvidas outras áreas setoriais, além do Ministério da Saúde, o raciocínio de custo-benefício, considerando a proteção da vida e da saúde das pessoas, mas também o impacto na economia. 

Como não foi adotado o protocolo binário no enfrentamento da atual crise sanitária, com base no princípio da precaução, surgiram dois tipos de dificuldade para o Governo Federal: o conflito público nas áreas setoriais da Saúde e da Economia e a tensão nas relações federativas com estados e municípios.

No que se refere ao problema interno no Executivo federal, a confusão entre avaliação e gerenciamento de riscos gerou a prevalência das decisões técnicas preconizadas pela área da Saúde, com o consequente desgaste da Presidência da República.     

Mas o que a emergência sanitária vem apresentando de maior desafio para o Estado é a solução da tensão na relação entre a União, os estados e os municípios. A Presidência da República parece ter perdido o timing inicial de coordenação nacional das medidas de combate à crise, do que resultou a adoção de ações isoladas por parte de estados e municípios sem a devida sistematização. Isso acabou acirrando diferenças de atuação pessoal dos governantes das entidades federativas, agravadas pela polarização ideológica e por eventuais pretensões eleitorais de cada um.

Em decorrência da crise federativa, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a dirimir parte do conflito, no julgamento da ADI 6.341, e veio a esclarecer que todas as entidades têm competência concorrente sobre o tema, destacando a necessidade de ser estabelecida uma relação mais cooperativa entre a União, os estados e os municípios [6]. 

De qualquer forma, e voltando à proposta de utilização do princípio da precaução para separar o enfrentamento da emergência sanitária em duas fases, a de avaliação e a de gerenciamento de riscos, o que parece ainda não ter sido objeto da devida atenção é a potencialidade do uso do Conselho da República como órgão capaz de ajudar o presidente na tomada de decisões políticas e no estabelecimento de uma relação produtiva com o Congresso Nacional.

O Conselho da República é uma instância de assessoria superior do presidente (artigo 89, da Constituição) e que pode auxiliá-lo a gerenciar riscos em questões relativas à estabilidade das instituições, agregando considerações dos diversos setores envolvidos na ação estatal [7].

O conselho pode servir de ponte na relação entre o Executivo e o Congresso Nacional, propício a coordenar ações entre os poderes, uma vez que é composto, entre outros, pelo vice-presidente da República, pelos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado e dos líderes da maioria e da minoria dessas casas. Nele, serão ouvidas as manifestações da presidência e dos congressistas, representados pela maioria e pela oposição.

Espera-se que a Presidência da República, no enfrentamento da atual crise, faça despertar o potencial do Conselho da República, a fim de aprimorar as relações institucionais com transparência. Talvez a emergência de saúde possa fazer com que o conselho finalmente tenha o reconhecimento que merece, que alcance aquilo a que está destinado a ser, um local de coordenação democrática entre os poderes.     

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Santolim e Giannakos: Tomada de decisões em momentos de crise

A premissa central da teoria econômica é que as pessoas escolhem por otimização. De todos os bens e serviços a adquirir, um agente econômico opta pelo melhor dentro de suas possibilidades de compra. No entanto, vivemos em um mundo de humanos que, por terem predileções pessoais, possuem sua racionalidade limitada [1].

As habilidades cognitivas do ser humano não são infinitas e suas memórias são falhas (bounded rationality). Em algumas situações, o ser humano age contra os seus próprios interesses (bounded willpower). Em outras, o ser humano pode sacrificar os seus interesses em prol dos interesses de um desconhecido (bounded self-interest[2].

Mas como fica a tomada de decisões dos agentes econômicos em momentos de crise?

Além da reconhecida “racionalidade limitada”, esses agentes, ao firmar contratos de longa duração, não têm condições de prever todas as intercorrências possíveis que podem ocorrer. Ou seja, mesmo que não padecessem das limitações cognitivas que afetam suas escolhas, ainda assim não disporiam de todas as informações necessárias a um exercício pleno da sua capacidade de discernimento.

A tentativa de elaborar contratos que prevejam todas as situações possíveis, por óbvio, aumentará os custos de transação para as partes. Assim, é até mesmo preferível não tentar prever todas as situações contratuais (a denominada “incompletude estratégica” dos contratos) e, em momentos oportunos, utilizar da cooperação para considerarem eventuais mudanças ou novas condições que a situação possa apresentar.

Esse é o ponto crucial.

Relações contratuais entre particulares facilitam a divisão de trabalho e de especializações, que são as chaves para aumentar a qualidade e quantidade dos produtos [3]. O principal conceito econômico do contrato é justamente o de ser uma ferramenta que ajuda as partes a maximizar o seu bem-estar [4].

Se para o mercado é interessante que haja continuidade contratual e manutenção da segurança jurídica das relações, comportamentos contrários a esta intenção, sobretudo carregados de influências externas e dotados de tendências abusivas, certamente não serão bem recebidos.

No entanto, em momentos de dificuldades, as partes ficam mais suscetíveis a tomadas de decisões que vão, no futuro, prejudicá-las. Isso fica ainda mais latente quando são incentivadas.

Do ponto de vista econômico, no momento em que os veículos de comunicação transmitem a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, por exemplo, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício mesmo que a sua situação fática específica não exija (“comportamento oportunista” [5]). Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

Nesse caso, o locatário pode incorrer tanto no caso de bounded rationality ou bounded willpower [6], pois, ao tentar se beneficiar de uma situação que, possivelmente, sequer se aplica ao seu caso, prejudicará uma relação de cooperação para com o locador. Partindo-se da premissa que contratos de locação, via de regra, são de longo prazo, a perda da confiança mútua só aumentará os custos de transação entre as partes.

Nas palavras de Joshua D. Wright e Douglas H. Ginsburg, as tomadas de decisões equivocadas custam caro [7].

Pode-se dizer que o locatário se coloca em uma situação em que podemos analisar na perspectiva da teoria dos jogos (dilema do prisioneiro). Este, tentado com as expectativas criadas pelas notícias veiculadas pelos veículos de comunicação, tende a não cooperar. Ao não cooperar, possivelmente, cria uma desconfiança por parte do locador que, em um momento posterior (possível renovação contratual), exigirá mais garantias do locatário.

Assim, o “comportamento oportunista” criado gerará ao locatário um acréscimo de custos posteriores.

Do ponto de vista do locador, a perspectiva é consequentemente oposta. Acaba ocorrendo o optmistic bias [8]. Com a circulação de notícias contrárias à manutenção dos termos contratuais na forma contratada, o locador, sentindo-se pressionado a relativizar os termos do contrato, acaba por incentivar o retorno às atividades normais, manifestando-se contrário ao lockdown.

Essa reação nada mais é do que reflexa à tomada de decisão do locatário.

Em outras palavras, o locador, ao analisar o índice de mortalidade da Covid-19, o percentual de incidência na localidade em que reside acaba por subestimar a incidência do vírus e, dessa forma, posicionar-se no sentido da retomada gradativa dos negócios.

O denominado desconto hiperbólico (hyperbolic discount) também pode ser utilizado para diagnosticar a atividade do ser humano nestes momentos. Tarefas ou atividades que não possuem recompensa ou punição pelo seu cumprimento ou não cumprimento tendem a ser postergadas (da mesma forma, as tarefas que só gerarão recompensas em momento muito distante). Todavia, tarefas que gerarão recompensas imediatas, não tendem a ser postergadas [9].

Esse é o exemplo da revisão contratual. No momento em que o mercado se apresenta favorável à renegociação e, com intuito de economizar no pagamento do locativo, o locatário toma rapidamente a iniciativa de notificar o locador ou, até mesmo, ajuizar ação pretendendo a redução da despesa.

A “recompensa” na redução (ou até mesmo isenção do pagamento do aluguel) incentiva o locatário a tomar tais medidas rapidamente em desfavor do locador.

Tais situações práticas acabam por bater às portas do Poder Judiciário, que, por sua vez, deve compreender tais atitudes e tentar evitar uma ideia de renegociação de forma indiscriminada, sob a pena de sofrer um abarrotamento de ações desta natureza.

Ou seja, os seres humanos possuem sua racionalidade limitada e, em momentos de crise, são ainda mais sensíveis aos incentivos e desincentivos. A economia comportamental, neste sentido, torna-se ferramenta muito útil para “diagnosticar” algumas mudanças em relações contratuais duradouras.

Portanto, a compreensão destas atitudes se faz cada vez mais relevante e a multidisciplinariedade nas análises casuísticas também.

 é advogado, economista, professor da Faculdade de Direito da UFRGS, doutor e mestre em Direito pela UFRGS e pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.