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Autonomia da Defensoria Pública e controle pelo Tribunal de Contas

Recentemente, o Tribunal de Contas da União ao apreciar o processo n. TC 012.967/2019-0, cujo acórdão foi relatado Ministro Bruno Dantas, julgou representação para avaliar possíveis incompatibilidades do regime de teletrabalho estabelecido pela Defensoria Pública da União, com as competências legais, o regime jurídico e as atribuições dos membros instituição, na forma da Resolução CSDPU n. 101/2014.

A citada Resolução disciplina a realização de atividades, tarefas e atribuições fora da unidade da Defensoria Pública da União, por meio de trabalho a distância nas seguintes hipóteses: 1 – para acompanhamento de cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, removido no interesse da Administração Pública; 2 – por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente, aferido por perícia médica oficial; 3 -para possibilitar curso de mestrado, doutorado ou pós-doutorado. 

Uma das contrapartidas ao teletrabalho, estabelecidas no ato normativo do Conselho Superior da DPU, é a definição de medida compensatória, mediante aumento na distribuição ordinária de processos em fração não superior a 50% (cinquenta por cento) da distribuição original, consideradas as peculiaridades da unidade de lotação.

Ao analisar o tema, o Tribunal de Contas da União entendeu que a modalidade de trabalho remoto implantada pela Defensoria Pública da União desde 2014 desvirtuaria “a essencialidade da instituição”.

Apesar do quadro desenhado no acórdão, verifica-se que a corte de contas não realizou uma análise pormenorizada das funções institucionais e da autonomia administrativa da Defensoria Pública, além de inobservar a realidade tecnológica que bate as portas do sistema de justiça.

Assim, o objetivo do presente estudo é demonstrar que o regime de teletrabalho, realidade em diversos tribunais, encontra espaço no regime jurídico da Defensoria Pública, a partir da leitura dos arts. 3º e 4º da Lei Complementar n. 80/1994, diversamente do que foi concluído pelo TCU.

De início, é importante considerar a dúvida sobre a própria validade do controle exercido pelo Tribunal de Contas da União no caso em apreço. O art. 71 da Constituição Federal e a Lei n. 8.443/92 regulam as competências do Tribunal de Contas, pautadas no eixo de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade.

A lei avança e traz uma série de competências também relacionadas à gestão de pessoal, mas não é possível extrair um fundamento de validade do controle das atividades funcionais das instituições públicas que detenham autonomia administrativa.

O voto do Ministro Bruno Dantas não analisa o regime jurídico da Defensoria Pública em toda sua extensão e esse talvez seja o maior equívoco do Tribunal de Contas da União no enfrentamento da temática aqui tratada; acreditar que a totalidade das funções desempenhadas pela Defensoria Pública exija presença do Defensor Público e atendimento ao público.

A decisão também não analisa o aspecto da autonomia administrativa da Defensoria Pública da União na sua organização, sequer mencionando essa importante característica institucional, o que também constitui omissão grave no julgamento.

É certo que a autonomia administrativa da Defensoria Púbica da União foi alcançada há poucos anos através da Emenda Constitucional n. 74/2013, cuja constitucionalidade permanece em debate no Supremo Tribunal Federal por conta de um açodamento da Presidente da República à época.

Essa autonomia, importante instrumento para a gestão adequada, permite à Defensoria Pública praticar, de maneira independente e livre da influência dos demais Poderes Estatais, atos próprios de gestão, tais como: adquirir bens e contratar serviços; estabelecer a lotação e a distribuição dos membros da carreira e dos servidores; compor os seus órgãos de administração superior e de atuação; elaborar suas folhas de pagamento e expedir os competentes demonstrativos; organizar os serviços auxiliares; praticar atos e decidir sobre situação funcional e administrativa do pessoal; elaborar seus regimentos internos; praticar atos gerais de gestão administrativa, financeira e de pessoal; etc.

Por força da autonomia administrativa outorgada pela EC nº 45/2004 e subjetivamente ampliada pelas ECs nº 69/2012 e nº 74/2013, resta vedada a vinculação da Defensoria Pública a qualquer outra estrutura do Estado, reafirmando-se sua posição como instituição extrapoder.

A jurisprudência tem sido criteriosa no exame da autonomia administrativa da Defensoria Pública e em algumas oportunidades já se manifestou pela impossibilidade de controle judicial na gestão da lotação de seus membros e criação de órgãos no âmbito da instituição.

Destacamos os casos do Rio Grande do Sul1 e Bahia2, onde sentenças que determinaram a instalação de órgão da Defensoria Pública foram cassadas pelos respectivos tribunais locais.

O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade se de manifestar a respeito do tema, durante a Suspensão de Segurança nº 800/RS3. Considerando a quantidade elevada de ações semelhantes, possuindo como pretensão a designação de Defensores Públicos Federais em diversas seções e subseções judiciárias, e diante da notória escassez de recursos humanos nos quadros da Defensoria Pública da União, o então Ministro Presidente Ricardo Lewandowski determinou a suspensão de todas as liminares que ocasionassem intervenção na gestão administrativa da DPU (STF – Presidência – STA nº 800/RS – Decisão Monocrática Min. Ricardo Lewandowski, decisão: 05-08-2015).

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça também se manifestou sobre o tema, em julgamento proferido no âmbito do RMS 59.413-DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado pela Quinta Turma, reconhecendo a interferência indevida na autonomia administrativa da instituição.

Com as autonomias constitucionais da Defensoria Pública e sua transformação em uma instituição de caráter individual e coletivo pautada na atuação em favor da vulnerabilidade, verificam-se uma série de encargos conferidos à instituição que não dependam de atendimento frequente ao público, mas de um atuar estratégico em prol de interesses de envergadura difusa.

Em seu voto, o relator do acórdão afirma que da “extensa lista de funções da Defensoria Pública, aqui já colacionadas, constata-se que diversas delas exigem a presença física do membro, mormente a participação em audiências e o atendimento à população, o que, de pronto, indica a incompatibilidade entre o trabalho à distância dos Defensores e o fiel cumprimento das funções institucionais da Defensoria Pública”.

O surto da pandemia e as medidas de distanciamento social obrigaram todos os atores do sistema de justiça a reinventar os modos de atuação e de atendimento ao público, medidas estas também adotadas por diversas Defensorias Públicas, não só no Brasil como nos serviços de assistência jurídica do resto do mundo, conforme recente relatório produzido pelo Global Access to Justice Project4.

Ao mesmo tempo, se pensarmos que a Defensoria Pública da União não está implantada em 207 (duzentas e sete) das 271 (duzentas e setenta e uma) Seções Judiciárias da Justiça Federal em virtude da ausência de Defensores Públicos Federais suficientes na carreira, a organização de trabalho remoto pode permitir a criação de polos de atendimento que congregam diversas regiões e amplie os serviços da instituição.

Relembre-se que a Justiça Federal, no segundo grau de jurisdição, conta com apenas 5 (cinco) Tribunais Regionais Federais para todas as unidades federativas do Brasil, o que também indicaria a pertinência de trabalho remoto para otimizar o funcionamento da assistência jurídica dos Defensores Públicos de 1a Categoria (art. 21 da LC n. 80/94).

Apenas a título de exemplo, indicamos algumas funções institucionais, previstas no art. 4º da Lei Complementar n. 80/94, cuja realização de teletrabalho constituiria maior eficiência ao serviço, colocando em xeque a argumentação do TCU.

A função de representação perante os organismos internacionais (art. 4º, VI da LC n. 80/94) pode ser realizada por meio de teletrabalho e de emprego de medidas tecnológicas, representando verdadeira economia ao erário, ao se evitar deslocamentos para fora do país, por exemplo.

A atuação na tutela coletiva prevista nos incisos VII e VIII do art. 4º da LC n. 80/94 pode justificar a realização de teletrabalho ou a reorganização dos órgãos de atuação, especialmente para a elaboração de ações coletivas e outros instrumentos de atuação para a defesa dos direitos difusos, tarefa que exige trabalho preponderantemente intelectual.

A curadoria especial, uma função institucional prevista no art. 4º, XVI da LC n. 80/94 e no art. 72 do CPC, tradicionalmente desempenhada sem que haja atendimento presencial das partes, tendo em vista que o seu pressuposto de atuação é, exatamente, a ausência material em uma relação processual, pode ser realizada a distância.

As funções previstas no art. 4º, incisos IX (impetração de ações constitucionais em defesa das funções institucionais e prerrogativas) e XXI (execução e recebimento das verbas sucumbenciais) constituem atividades integralmente intelectuais sem que haja atendimento de partes, visto que se referem a interesses institucionais.

Em suma, o presente estudo poderia continuar elencando uma série de outras funções institucionais não só previstas na Lei Orgânica da Defensoria Pública, mas em diplomas legais negligenciados pelo Tribunal de Contas da União (Código de Processo Civil, Lei da Ação Pública, Lei do Mandado de Injunção, Lei de Execução Penal dentre outras).

Percebe-se que, diferentemente da conclusão alcançada no acórdão da corte de contas, o art. 4º da LC n. 80/94 possui funções institucionais que comportariam o atendimento por meio do teletrabalho. É certo que a preocupação trazida pelo relator, a respeito do desvirtuamento do perfil de atuação da Defensoria Pública é muito importante, mas ninguém melhor que o próprio administrador da Defensoria Pública, pautado na autonomia administrativa, para verificar se há prejuízo ao bom funcionamento institucional.

Importante rememorar que o atendimento ao público é uma realidade da Defensoria Pública e jamais será suprimido. O que se pretende demonstrar é que o perfil constitucional atribuído à Defensoria Pública também lhe garantiu um atuar estratégico, cujo exercício não depende do atendimento presencial pelo Defensor Público.

Ou até mesmo que a Defensoria Pública possa se organizar para que tenha portas de entrada de acesso ao público e divisão interna de trabalho para otimizar o seu funcionamento, tudo isso pautado na autonomia administrativa e no conhecimento do administrador que lida, diariamente, com o funcionamento da máquina de prestação de assistência jurídica.


1 (TJRS – 21ª Câmara Cível – Apelação nº 0236374-70.2013.8.21.7000 – Relator Des. DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH, decisão: 28-08-2013)

2 (TJ/BA – Quinta Câmara Cível – Processo nº 0311949-16.2012.8.05.0000 – Relatora Des. Marcia Borges Faria, decisão: 02-04-2014)

3 Em sentido semelhante: “Na hipótese em apreço, a sentença impugnada impõe à Administração a efetivação de lotação de Defensor Público da União em Rio Grande/RS, atribuição que se encontra, em princípio, dentro do seu juízo discricionário de conveniência e oportunidade, interferindo, dessa forma, diretamente na destinação do limitado número de Defensores Públicos de que dispõe a União” (STF – Presidência – STA nº 183/RS – Decisão Monocrática Min. ELLEN GRACIE, decisão: 14-12-2007)

4 https://www.conjur.com.br/dl/maioria-paises-nao-facilita-acesso.pdf

 é defensor público do Estado do Rio de Janeiro, doutor e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Global Access to Justice Project.

Diogo Esteves é defensor público do Estado do Rio de Janeiro, doutorando e mestre em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF) e membro do Global Access to Justice Project.

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Contrato em moeda estrangeira na jurisprudência do STJ

No contexto do acentuado e permanente intervencionismo estatal na economia brasileira, devido a múltiplos problemas sistêmicos, vigora na legislação pátria o curso forçado da moeda. Isso significa que, ex vi legis, é obrigatória a utilização de moeda corrente nacional nas operações que envolvem pagamento em dinheiro constituídas e realizadas em nosso território, como, v. g., aquelas formalizadas por meio de contratos de empréstimo.

Realmente, a análise da legislação brasileira sobre a questão ora examinada revela que, em princípio, há vedação quanto à pactuação de obrigações em moeda estrangeira, de conformidade com o disposto no artigo 1º do Decreto-lei n. 857, de 11 de setembro de 1969, que consolidou e alterou a legislação sobre moeda de pagamento de obrigações constituídas no Brasil; na Lei n. 10.192, de 14 de fevereiro de 2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real e dá outras providências; e nos artigos 315 e 318 do Código Civil.

De um modo geral, portanto, nos contratos e nos instrumentos de cessão de crédito celebrados em território nacional e por partes domiciliadas no Brasil, a estipulação de pagamento em moeda estrangeira é proibida, sob pena de nulidade da respectiva avença. Em consonância com a literalidade dos aludidos textos legais, infere-se que: (i) as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal; e (ii) que são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como os pactos para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional (indexação), excetuados os casos previstos na lei especial.

Nota-se que esse óbice legal encontra fundamento na proteção e valorização da moeda corrente nacional, que, por tratar-se de matéria de ordem pública, em regra, não pode ser desatendida por convenções particulares, sob pena de nulidade (v., nesse sentido, Laura de Almeida Machado, Validade de obrigações estipuladas em moeda estrangeira, São Paulo, s/ed., 2013).

No entanto, já na segunda metade do século passado, o legislador nacional anteviu o fenômeno da globalização, ao relativizar, em algumas situações específicas, referida regra, autorizando, como exceção, a pactuação em moeda estrangeira.

Com efeito, em consonância com a atual redação do disposto no artigo 2º do supra referido Decreto-lei n. 857/69: “Não se aplicam as disposições do artigo anterior: I – aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias; II – aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior; III – aos contratos de compra e venda de câmbio em geral; IV – aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional; V – aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país…”.

Desse modo, desde que o negócio celebrado se caracterize por uma das hipóteses acima delineadas, a estipulação em moeda estrangeira torna-se válida e eficaz perante o direito brasileiro, sendo certo que, em qualquer uma das situações, o pagamento deverá ser feito em moeda corrente nacional.

Todavia, se o contrato não atender aos ditames do supra transcrito artigo 2º, quando, por exemplo, celebrado entre pessoas, físicas ou jurídicas, domiciliadas no Brasil, à luz da legislação vigente em nosso ordenamento jurídico, deveria, a rigor, ser considerado visceralmente nulo, por incidência de expressa vedação prevista, em particular, nos artigos 1º do Decreto-lei n. 857/69 e 318 do Código Civil.

Observe-se, no entanto, que, diante da significativa incidência, no tráfico negocial de época contemporânea, de contratos nacionais em moeda estrangeira, diversas questões acabaram sendo submetidas à apreciação do Poder Judiciário.

Daí porque a interpretação das normas supra mencionadas gerou segura orientação jurisprudencial sobre os contratos em moeda estrangeira, que não se enquadram entre as exceções previstas no supra transcrito artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69.

Na verdade, com o tempo, os tribunais pátrios, em particular, o Superior Tribunal de Justiça, ponderaram que, caso o empréstimo fosse realmente declarado nulo, por ter sido tomado em moeda estrangeira, haveria, de fato, inequívoco enriquecimento sem causa de um dos contratantes — o mutuário —, visto que seria perfeitamente possível a situação na qual uma parte tivesse obtido vantagem do negócio e, posteriormente, alegasse a sua nulidade para ficar desobrigada do pagamento da contraprestação devida.

Assim, por paradoxal que possa parecer, o negócio jurídico potencialmente ilegal tem os seus efeitos reconhecidos pela nossa jurisprudência, ou seja, o contrato celebrado no Brasil, entre partes sediadas em território nacional, com previsão em moeda estrangeira, vedada pela lei, tem a sua exigibilidade reconhecida (cf., a propósito, Marcelo Sampaio Siqueira, Obrigação com conversão de pagamento em moeda estrangeira, Revista Direito GV, vol. 7, São Paulo, jan/jun., 2008, pág. 165 ss).

Atualmente, então, sobre essa temática, no que concerne à data da conversão da moeda estrangeira, prevalecem duas orientações convergentes nos domínios do Superior Tribunal de Justiça, que podem ser sintetizadas da seguinte forma:

a) sendo hipótese de contrato internacional, inserido nas exceções previstas no artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, a indexação pela moeda estrangeira descortina-se legal, devendo ser convertida pela cotação da data do efetivo pagamento; e

b) sendo hipótese de contrato nacional, celebrado entre partes brasileiras, admite-se, em caráter excepcional, a estipulação em moeda estrangeira, devendo, no entanto, ser convertida pela cotação da data da celebração do negócio, atualizada pela correção monetária até o momento da efetiva liquidação.

Isso significa que, para esta derradeira situação, infere-se que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que, a despeito de ser reputada válida a contratação em moeda estrangeira, o pagamento deve ser feito no valor da moeda nacional da data da cotação do momento do fechamento do contrato.

Segundo essa tese, prestigiada em inúmeros precedentes, os contratos, não excepcionados pelo indigitado artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, que atrelam valor em moeda estrangeira ou correção com base na variação cambial são válidos, embora a respectiva cláusula seja destituída de qualquer efeito. Ao converter o preço para reais com base na cotação da moeda estrangeira na data da celebração do contrato e atualizar o preço a partir de então pelo índice oficial de correção monetária, conserva-se a higidez do negócio, mas retira-se qualquer impacto que a moeda estrangeira poderia ter sobre o montante da operação celebrada no Brasil.

Com efeito, desde o leading case, representado pelo julgamento unânime da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 804.791-MG, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, esta tem sido a interpretação norteadora de sucessivos arestos.

Extrai-se, com efeito, desse importante precedente que, in verbis:

“O artigo 1º do Dec. 23.501/33 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira, regra essa mantida pelo artigo 1º do DL 857/69 e pelo artigo 1º da Lei 10.192/01 e, mais recentemente, pelos artigos 315 e 318 do Código Civil/02. A vedação aparece, ainda, em leis especiais, como no artigo 17 da Lei 8.245/91, relativa à locação. A exceção a essa regra geral vem prevista no artigo 2º do DL 857/69, que enumera hipóteses em que se admite o pagamento em moeda estrangeira.

A despeito disso, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.

O entendimento supra, porém, não se confunde com a possibilidade de indexação de dívidas pela variação cambial de moeda estrangeira, vedada desde a entrada em vigor do Plano Real (Lei 8.880/94), excepcionadas as hipóteses previstas no artigo 2º do DL 857/69.

Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira não permitem indexação. Sendo assim, havendo previsão de pagamento futuro, tais dívidas deverão, no ato de quitação, ser convertidas para moeda nacional com base na cotação da data da contratação e, a partir daí, atualizadas com base em índice de correção monetária admitido pela legislação pátria”.

Em sequência temporal, mais incisivo ainda é o conhecido julgamento da 3ª Turma, do Recurso Especial n. 1.323.219-RJ, ainda uma vez, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, ao decidir que:

“O artigo 1º da Lei 10.192/01 proíbe a estipulação de pagamentos em moeda estrangeira para obrigações exequíveis no Brasil, regra essa encampada pelo artigo 318 do Código Civil/02 e excepcionada nas hipóteses previstas no art. 2º do DL 857/69. A despeito disso, pacificou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional.

A indexação de dívidas à variação cambial de moeda estrangeira é prática vedada desde a entrada em vigor do Plano Real, excepcionadas as hipóteses previstas no artigo 2º do DL 857/69 e os contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior (artigo 6º da Lei 8.880/94).

Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária”.

Pouco tempo depois, a mesma 3ª Turma, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n. 1.447.291-RS, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, averbou que:

“… Do mesmo modo, o entendimento trazido nas razões recursais de que a conversão da dívida contraída em dólar somente se realizaria ao câmbio vigente na data do efetivo pagamento (REsp n. 647.672) encontra-se há muito tempo superado, conforme demonstrado na decisão agravada.

Em recente julgado (Resp. n. 1.323.219), firmou-se ainda orientação no sentido de que a dívida contraída em moeda estrangeira deverá ser convertida em moeda nacional com base na cotação da data de contratação, incidindo a partir daí correção monetária” (v., em senso idêntico, 4ª T., Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.325.603-SP, rel. min. Marco Buzzi).

Seguindo essa mesma tese, de forma deveras didática, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao ensejo do julgamento do Agravo Interno do Agravo em Recurso Especial n. 1.286.770-RJ, da relatoria do ministro Raul Araújo, proclamou, in verbis:

“As dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária.

Nos casos em que a dívida é líquida e com vencimento certo, os juros de mora e a correção monetária devem incidir desde o vencimento da obrigação, mesmo nos casos de responsabilidade contratual”.

Por fim, é o que também se extrai de precedente da 3ª Turma, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.342.000-PR, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao deixar patenteado, textual:

“O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que, ‘as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária’ (REsp. n. 1.323.219/RJ, rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 26/9/2013)”.

De acordo com esse entendimento, portanto, a despeito de a nossa legislação prever a nulidade da estipulação de valor ou cláusula de correção vinculada à moeda estrangeira, as mencionadas disposições legais, por força de construção pretoriana, culminam por produzir plena eficácia. Isso porque, o valor do negócio, convertendo-se pela cotação na data de sua consumação, não será indexado pela variação cambial, sendo apenas atualizado pela correção monetária até o termo da obrigação.

Aduza-se, por outro lado, que, caso o negócio preencha uma das hipóteses excepcionais contempladas no já aludido artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, como acima ressaltado, a conversão da moeda se dará pelo valor da cotação da data do adimplemento.

É esse, a propósito, como acima frisado, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, colhendo-se, por exemplo, no julgamento da 4ª Turma, no Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.299.460-SP, cujo acórdão é da lavra do ministro Marco Buzzi, ao considerar contrato internacional de intermediação, atrelado à moeda estrangeira, na respectiva ementa, que:

“AÇÃO DE COBRANÇA – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERMEDIAÇÃO NA CONTRATAÇÃO DE JOGADOR DE FUTEBOL – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO APELO EXTREMO – INSURGÊNCIA DA RÉ.

A jurisprudência do STJ entende que, em se tratando de obrigação constituída em moeda estrangeira, a sua conversão em moeda nacional deve ocorrer na data do efetivo pagamento”.

Importa outrossim salientar que o Tribunal de Justiça de São Paulo sufraga integralmente esse entendimento, reconhecendo que se a contratação se inserir nas exceções previstas no artigo 2º do Decreto-lei n. 857/69, é legítima a indexação por moeda estrangeira, devendo o valor do negócio ser convertido pela cotação da data de seu respectivo pagamento (v., e. g., Apelação n. 1015885-68.2016.8.26.0554, 23ª Câmara de Direito Privado, julg. 12.12.2018; Apelação n. 1014504-45.2016.8.26.0224, 38ª Câmara de Direito Privado, julg. 19.04.2018).

 é sócio do Tucci Advogados Associados; ex-Presidente da AASP; professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP; e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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Curta resposta errática custa genocídio e empobrecimento duradouro

A premissa de que a pandemia da Covid-19 estará sob controle até 31 de dezembro deste ano é frágil pilar a partir do qual foram erguidas todas as regras excepcionais que dispõem sobre a calamidade pública em que nos encontramos.

Enquanto não houver vacina ou controle efetivo das transmissões, a calamidade sanitária tenderá a se estender como realidade que desafia a norma abstrata, com efeitos danosos também nas searas econômica e social.

O balanço atual da tragédia brasileira é digno de comparação internacional: assumimos a segunda colocação mundial no número de mortos, assim como empobrecemos mais velozmente em relação à paridade do poder de compra e à renda média do cidadão global.

Nesta semana ultrapassamos a estimativa inicial “otimista” de 44 mil mortes por Covid-19, que foi feita em março pelo Imperial College para o Brasil, caso tivéssemos mantido corretamente o isolamento social necessário.

Infelizmente, a marcha fúnebre tupiniquim se acelera e caminhamos para o provável quadro de mais de 160 mil mortes em agosto.

No cenário mais pessimista das projeções do Imperial College, nossa sociedade pode acumular até 1,15 milhão de óbitos, por força do caos gerencial provocado primordialmente pelo Poder Executivo federal e por sua falta de diálogo cooperativo com os entes subnacionais.

Vale lembrar que estamos há um mês sem efetivamente contarmos com um Ministro da Saúde. Nosso fracasso institucional está bem representado na interinidade prolongada na chefia do Ministério da Saúde.

Sem controle e sem gestão, nosso país prossegue em rota de crescimento exponencial dos números de infectados e mortos, tal como alertara o Imperial College em 8 de maio:

More broadly, our results suggest that in the absence of the introduction of further control measures that will more strongly curb transmission, Brazil faces the prospect of an epidemic that will continue to grow exponentially.

Mesmo diante de todos esses avisos, a resposta estatal brasileira tem sido curta, omissa e errática, do que dá provas a pretensão fraudulenta de manipulação estatística pelo Ministério da Saúde, a qual foi pronta e duramente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 09 de junho.

Ora, não cabe ao poder público omitir-se, mediante a nefasta política de “deixar morrer” como “destino”, porque isso seria literalmente negar a razão de existir do próprio Estado.

A restrita vigência da calamidade pública até 31 de dezembro (fixada no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020) mostra-se temerária e incapaz de cumprir o papel nuclear de estabilizar as expectativas nas searas sanitária, econômica e social. Não se pode oferecer resposta adequada para a pandemia sem segurança jurídica quanto ao seu horizonte temporal e, sobretudo, sem planejamento suficiente de ação.

Oferecer soluções curtas é agravar o problema, tornando a crise mais onerosa em termos de mortes evitáveis, perda de empregos e renda para a população mais vulnerável, bem como queda avassaladora da receita tributária e da atividade econômica.

Ora, o curto prazo não é suficiente para lidar com a profunda instabilidade das estimativas de arrecadação inscritas no projeto de lei de diretrizes orçamentárias, enviado pelo Executivo federal em 15 de abril deste ano, para reger não só o exercício de 2021, mas também para estimar metas e riscos fiscais até 2023.

O mesmo se sucede com a frustração das estimativas de arrecadação dos Estados e Municípios para o presente e, sobretudo, para o próximo exercício financeiro. A Lei Complementar 173, promulgada no dia 27 de maio, mereceu contundente crítica formulada por José Roberto Afonso, para quem ela foi um verdadeiro “tiro no pé”, haja vista a notória insuficiência da sustentação federativa da calamidade pública.

Respostas curtas custam caro. Não adianta pretender encurtar o tamanho do Estado insidiosamente, porque a pandemia da Covid-19 desvenda – de forma dramática – a inconsistência de tais escolhas transitórias e insuficientes. Eis o contexto em que deverão ser revistos, mais cedo ou mais tarde, os seguintes parâmetros normativos francamente incapazes de reger a realidade em que vivemos:

  1. limites impostos ao custeio dos serviços públicos essenciais pelo teto global de despesas primárias no “Novo Regime Fiscal” (a que se refere a Emenda 95/2016), algo já suscitado, aliás, pela Instituição Fiscal Independente;

  2. prazo de vigência da calamidade pública prevista no Decreto Legislativo nº 6/2020 e, por conseguinte, na Emenda do Orçamento de Guerra (EC 106/2020); e

  3. “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)” de que trata a LC 173/2020, como debatido aqui.

Precisamos assumir, com honestidade intelectual e seriedade jurídica, o fato de que a calamidade sanitária, social e econômica decorrente da pandemia da Covid-19 certamente se estenderá para além de 2020 e impactará 2021, como abordamos em nossa última coluna.

Somente assim seremos capazes de tentar planejar estruturalmente as ações primordiais que se revelam, desde já, necessárias, sem a adoção de arremedos sabidamente insuficientes. Exemplo de engodo jurídico, aliás, reside na tese de manutenção do teto dado pela EC 95/2016, por meio da pretensão de um suposto uso de créditos extraordinários no próximo exercício financeiro, o que seria flagrantemente inconstitucional.

Quanto mais a realidade dura e complexa se impõe, mais devemos sair em busca da construção de respostas amplas e adequadas. É preciso que tenhamos a ousadia de falar em revisão da vigência da calamidade para podermos passar a debater um plano nacional de enfrentamento da crise sanitária, social e econômica, que deve ser estender, no mínimo, até 31 de dezembro de 2021.

Ideal seria que os poderes políticos da União, em diálogo com os entes subnacionais, tivessem assumido – em caráter prudencial e republicano – que a crise é tão severa que sua gestão merecia, no mínimo, um plano bienal de enfrentamento. Ideal seria que aludido plano fosse executado por um consórcio nacional em esforço de cooperação federativa, a que se refere o art. 241 da Constituição de 1988.

Ideal seria que dialogássemos, ideal seria que planejássemos, ideal seria que os entes políticos executassem o planejado sob regime de cooperação federativa, ideal seria que preservássemos vidas, ideal seria que sustentássemos renda básica e produção econômica, ideal seria que não houvesse desvios patrimonialistas e curto prazismo eleitoral no trato dos recursos destinados ao enfrentamento da pandemia, ideal seria que o Estado cumprisse seu papel constitucional…

Ideal seria que… nós não nos alienássemos nesse momento de tragédia coletiva. As regras fiscais merecem ser debatidas e aprimoradas, sobretudo para fazer face à tragédia de sociedades que caminham para a barbárie civilizatória.

Mas será que nós somos capazes de manter a ousadia de lutar pelo ideal? O desafio que se apresenta — com o decurso dos dias e meses embrutecidos pela escalada de mortes no nosso entorno – é o de não nos acomodarmos em face da banalização do mal, tal como Hannah Arendt bem alertara.

No Brasil, a banalidade do mal muito se assemelha ao cinismo fiscal de deixar que milhares de cidadãos morram para que regras mal formuladas sobrevivam contra tudo e contra todos.

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).