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A suspensão do direito de arrependimento do CDC

Com as medidas tomadas para a contenção da disseminação da Covid-19, principalmente as medidas de isolamento social, verificamos a presença cada vez maior da internet na vida das pessoas e a tendência é a de que, mesmo após o fim da pandemia, essa realidade não seja substancialmente afetada. O comercio eletrônico, bem como home office, são tendências que vieram para ficar.

Sem poder sair de casa, aumentou a frequência com que navegamos na internet, usamos redes sociais, assistimos a vídeos em plataformas de streaming e consumimos todo tipo de produtos e serviços, tornando-se, assim, uma opção de compras cada vez mais relevante para milhões de brasileiros.

Nesse cenário, aumenta a necessidade de proteção do consumidor no ambiente virtual e põe-se em destaque a questão da complexidade inerente a esse ambiente. Leonardo Roscoe Bessa adverte que na internet, “até consumidores mais informados podem, com uma digitação equivocada, cometer erros em relação a aspectos do produto ou da própria forma de pagamento.” Criou-se uma espécie de vulnerabilidade agravada dos consumidores, diante das novas tecnologias e contratos celebrados em meio virtual.

Os dados divulgados por diversas pesquisas realizadas desde que foi editado o Decreto Legislativo nº 6, de 2020[1], que declarou a situação de calamidade em razão da pandemia relacionada ao coronavírus (Covid-19),  demonstram que os setores de e-commerce e delivery registram um crescimento significativo, apesar de a crise imposta pelas medidas de contenção da disseminação do vírus. Segundo uma pesquisa da Compre & Confie, aplicativo que faz autenticação de segurança para compras na web, o número de pedidos online durante o mês de maio cresceu 132,8%, em comparação com o mesmo período do ano anterior[2].

O aumento do consumo pela internet se deu não só em relação a bens essenciais, como alimentos e medicamentos, mas também em relação a bens que não são de necessidade básica. Pesquisa divulgada pela revista Veja, mostra que 62% dos brasileiros estão gastando com itens que não são de necessidade básica, ou seja, aquelas compras opcionais. O número está bem acima dos 21% da média global. Os dados são o resultado de uma pesquisa com 3.542 indivíduos nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Brasil e Austrália entre 1 e 2 de maio deste ano.[3]

Os serviços de entregas, registraram um aumento substancial durante o período de maior isolamento social. Levantamento do RankMyAPP, empresa de inteligência de marketing e aquisição para aplicativos de celular, mostra que o número de downloads de aplicativos de delivery no Brasil aumentou 15% nos primeiros dias de março, registrando um pico no dia 6, de 126%, ambos comparados com os mesmos períodos de 2019.[4]

Setores como delivery de comida em geral, farmácias, produtos orgânicos, supermercados e mesmo segmentos pouco comuns de serem encontrados nos aplicativos de entrega, como lojas de roupas e sapatos, brinquedos e aparelhos eletrônicos, registraram um aumento do modelo de vendas online.

O cenário é de crise, levando à necessidade de adaptação de fornecedores e consumidores à nova realidade. No âmbito dos contratos, muitas foram as iniciativas de tentar compatibilizar tanto os interesses dos consumidores, protegendo sua vulnerabilidade no mercado de consumo, como de fornecedores, que precisam se reinventar para driblar os custos e perdas advindos da paralisação das atividades em alguns centros urbanos.

Com o objetivo de estabelecer um regramento minimamente uniforme de situações que sofreram forte impacto das medidas de contenção do avanço do coronavírus e evitar, assim, atuações oportunistas, muito comuns em tempos de crise, foi sancionada a Lei 14.010, de 10 de junho de  2020, que propõe a criação de um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) para as relações privadas.

Segundo sua justificação, o a Lei baseia-se em alguns princípios norteadores, com destaque para (1) manter a separação entre relações paritéticas (de Direito Civil e de Direito Comercial) e relações assimétricas (de Direito do Consumidor e das Locações Prediais Urbanas); (2) não alterar as leis vigentes, dado o caráter emergencial da crise gerada pela pandemia, mas apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes.

No que tange às relações de consumo, merece destaque o disposto no artigo  8º da Lei, o qual determina que “até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos”.

Dois parecem ter sido os motivos básicos para a limitação do direito de arrependimento dos consumidores durante a pandemia: um motivo de ordem pragmática, justifica a suspensão do direito de arrependimento para eliminar uma possível aglomeração de pessoas e exposição à contaminação, principalmente os consumidores inseridos em grupos de risco, no momento de devolverem os produtos aos correios, favorecendo-se, assim, o isolamento social.

Um segundo motivo, já de ordem econômica, justifica a limitação do exercício do direito de arrependimento dos consumidores em casos de delivery com vistas proporcionar um equilíbrio nas relações firmadas entre fornecedores e consumidores e mitigar os riscos dos fornecedores que continuam a explorar as atividades de delivery, mesmo durante a determinação de isolamento social. Identifica-se uma preocupação com a  manutenção do fluxo de caixa dos fornecedores, de modo a atenuar a intensa crise financeira que ameaça as micros e pequenas empresas, em razão do encolhimento do mercado.

É importante registrar que o direito de arrependimento ou prazo de reflexão, previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), autoriza o consumidor a desistir do contrato, no prazo de até 7 dias, sem qualquer justificativa, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial. O Objetivo do CDC, neste particular aspecto, foi proteger o consumidor, que até então não teve contato com o produto, sem oportunidade de examiná-lo, ou ainda, para proteger as compras feitas por impulso. 

Exatamente em razão do caráter protetivo do disposto no art. 49 do CDC é que o referido art. 8º suscitou debates e a limitação do direito de arrependimento não ficou indene de críticas. A principal delas, aponta que justamente quando o consumidor mais precisa da proteção do prazo de reflexão, na medida em que as entregas domiciliares se tornaram praticamente a única forma de acesso a bens em muitos casos, como mostraram os dados expostos anteriormente, não seria justificável a flexibilização desta garantia e sim o seu reforço.

Somado a isso, é necessário que se distinga o caso do exercício do direito de arrependimento do caso de inadimplemento do contrato em caso de delivery, pois a toda evidencia o descumprimento da obrigação contratada enseja a possibilidade de se enjeitar o produto entregue em desconformidade com o ajustado. Essa possibilidade, aliás, se verifica mesmo nos contratos paritários, pois o Código Civil (CC), em seu art. 484, disciplina a compra e venda feita a vista de amostras, protótipos ou modelos, impondo ao vendedor o ônus de garantir ter o bem as mesmas qualidades que a elas correspondam. Neste tipo de negócio, o comprador tem a prerrogativa de examinar a coisa, quando do seu recebimento, ocasião em que poderá recusá-la.

Assim, a Lei não exclui a possibilidade de recusa justificada mesmo durante a pandemia. Mas ao contrário da crítica apresentada, a recusa imotivada é que está sendo limitada nos casos de entrega do serviço de delivery, em razão de suas peculiaridades. Principalmente em relação à entrega de comida e de medicamentos, a recusa imotivada escudada no art. 49 do CDC pode significar a quebra da legítima expectativa criada pela boa-fé, impondo ao fornecedor um ônus descabido.

Indicando um meio-termo entre elogios e críticas à medida, a Lei prevê a validade dessa suspensão até 30 de outubro de 2020, limitando seus efeitos ao período mais agudo da crise. Dessa forma, a solução adotada pela Lei14.010/20 parece ser equilibrada em relação ao período completamente atípico que estamos vivendo.

Considerando  os diversos aspectos envolvidos na discussão, há que se encontrar um equilíbrio, pois, de um lado, não se pode garantir o direito de arrependimento em toda e qualquer circunstância em que o produto tenha sido adquirido fora do estabelecimento comercial — e isso já antes do estado de calamidade provocado pela Covid-19 —, e, de outro,  não se pode prejudicar o consumidor, que tem insculpida na Constituição Federal a garantia da defesa de seus direitos.

Em resumo, a solução encontrada na Lei 14.010/20 em relação ao direito de arrependimento parece ser proporcional e adequada ao atual cenário atípico em que vivemos. O direito deve permanecer estável, mesmo em tempos de pandemia. Deve refrear os ímpetos das pessoas durante este período, como também deve atuar no sentido de sancionar os ilícitos. Num tempo em que a sensação de segurança existente em tempos normais se esmaece, é preciso serenidade e equilíbrio para que os extremos sejam evitados: nem a supressão de direitos tão importantes para os consumidores e nem oportunismos exacerbados.

 é juíza de Direito do TJ-DF e associada do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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Diogo Malan: Advocacia criminal e julgamento midiático

Fatores tais como o fascínio despertado pela criminalidade envolvendo pessoas públicas, sexualidade, mistério e/ou violência no imaginário popular, a revolução tecnológica, o exercício do poder punitivo como referência quase hegemônica dos meios de comunicação social etc. vêm facilitando a recorrência dos julgamentos midiáticos (trials by media).

Trata-se de fenômeno mundial, havendo grandes dificuldades em se chegar a soluções normativas que atinjam equilíbrio satisfatório entre valores potencialmente conflitantes representados pela liberdade de imprensa, direito ao julgamento justo e direitos da personalidade do acusado.

Na prática judiciária, não é rara estratégia persecutória jurídico-midiática, baseada na parceria entre polícia judiciária, Ministério Público e segmentos do jornalismo investigativo. Nessa estratégia, atos de coação cautelar sobre bens, domicílio, liberdade pessoal, valores etc. do acusado, sua família ou empresa, ou elementos informativos, são propositadamente vazados para o parceiro midiático. Este, em troca, dá ampla publicidade à versão policial-ministerial dos fatos investigados, como se ela fosse uma verdade absoluta transitada em julgado. Tal publicidade, por sua vez, induz o Magistrado, jurados e opinião pública a presumir a culpa do acusado. Nesse vicioso ciclo de retroalimentação, a versão do acusado sobre os fatos tem espaço inexistente, ou desproporcionalmente inferior ao da acusação.

Ou seja, há publicidade opressiva do julgamento criminal, consistente em campanha midiática com as seguintes características: (i) cariz prejudicial de notícias opinativas que defendem implicitamente a condenação, pela divulgação parcial de fatos e versões, manipulação de dados, divulgação de provas ilícitas, ou intensidade da inserção de matérias em veículos da mídia durante certo lapso temporal; (ii) risco potencial de interferência no resultado do julgamento criminal; (iii) contemporaneidade do sobredito julgamento.

A legislação pátria não possui normas deontológicas, penais e processuais penais aptas a coibir essas práticas.

No âmbito da União Europeia, a Diretiva nº. 2016/343, do Parlamento Europeu e do Conselho, reforçou o direito fundamental à presunção de inocência, proibindo: (i) declarações públicas de autoridades que apresentem o acusado como culpado, enquanto sua culpa não for provada nos termos da lei (artigo 4º, § 1º); (ii) apresentação do acusado como culpado em tribunal ou em público, via medidas de coerção física (artigo 5º, § 1º) etc.

Não obstante, o recorte deste texto é focado em questões éticas, relativas ao papel Advogado nesse contexto do julgamento midiático. A esse propósito, o Advogado se vê diante de dilema ético e estratégico: atuar com discrição nos autos do processo criminal, ou defender seu cliente também no tribunal da opinião pública.

Nos Estados Unidos da América, a matéria em digressão está regulada pelo artigo 3.6 das Normas Modelo de Conduta Professional (Model Rules of Professional Conduct), da American Bar Association (ABA).

A regra geral é que o Advogado não pode prestar declaração extrajudicial que sabe, ou razoavelmente deve saber, que será disseminada pelos meios de comunicação social e terá probabilidade de prejudicar materialmente o procedimento de adjudicação sobre o objeto da declaração.

As exceções são as seguintes: (i) pedido, ofensa ou defesa aduzidos e, exceto quando proibido por lei, identidades dos envolvidos; (ii) informação contida em registro público; (iii) existência de investigação em curso; (iv) agendamento ou resultado de qualquer ato ou fase do litígio; (v) pedido de assistência para a obtenção de prova, e informação necessária para tanto; (vi) alerta sobre perigo decorrente do comportamento de envolvido, quando há razão para crer em probabilidade de dano individual ou público. Nos casos criminais, há as seguintes exceções adicionais: (i) identidade, residência, profissão e estado civil do acusado; (ii) informação necessária para auxiliar a captura do acusado; (iii) motivo, data e local da prisão; (iv) identidade dos agentes policiais responsáveis pela investigação ou prisão, e a duração da investigação.

Apesar dessas exceções, o Advogado pode fazer declaração necessária para proteger o cliente de indevido efeito prejudicial substancial, causado por publicidade recente, que não foi iniciada pelo Advogado nem seu cliente. Essa declaração deve se limitar à informação necessária para mitigar a publicidade adversa.

Esse marco regulador é criticado pela doutrina norte-americana, que aponta vagueza e limitação excessiva ao direito fundamental do acusado à uma defesa pública, nos termos da VI Emenda à Declaração de Direitos.

No caso Gentile v. State Bar of Nevada, o voto do Justice Anthony Kennedy da Suprema Corte incidentalmente menciona que os deveres do Advogado incluem a defesa da reputação do cliente, e a tentativa de demonstrar sua inocência no tribunal da opinião pública.

Destarte, há casos que apresentam riscos consideráveis não só à liberdade pessoal do cliente, mas também à sua carreira profissional, negócio etc. Há clientes que acreditam que uma boa campanha de relações públicas tem potencial para neutralizar a publicidade negativa emanada de autoridades públicas, e influenciar o deslinde da persecução penal.

Assim, naturalmente há crescente pressão desses clientes para que Advogados passem a exercer também o papel de defensores na arena da opinião pública.

Barry Slotnick entende que o múnus profissional do Advogado inclui sua eventual atuação como porta-voz da inocência do cliente. Segundo ele, tal atuação é necessária para: (i) mitigar efeitos negativos sobre Juiz e jurados das declarações do acusador sobre a culpa do cliente; (ii) atenuar efeitos desfavoráveis sobre a comunidade das sobreditas declarações; (iii) exercer o direito fundamental do acusado à liberdade de expressão; (iv) exercer o precitado direito fundamental do Advogado. Nesse sentido, como as autoridades públicas são cada vez mais midiáticas, cabe ao Advogado tentar contrapor tal publicidade, nivelando o campo de jogo processual penal.

Em sentido semelhante, Robert Bennett sustenta que Advogados representando pessoas públicas em casos midiáticos devem tentar, observados os regramentos éticos e legais, neutralizar a publicidade com potencial para gerar, ou recrudescer, desdobramentos processuais desfavoráveis ao cliente.

Possível estratégia para dar voz à versão da defesa no tribunal da opinião pública é a criação de comitê de defesa pela família do acusado. Esse comitê exerce três funções: (i) influenciar os responsáveis pela tomada de decisões durante a persecução penal, amenizando o efeito desfavorável da acusação e aumentando a percepção de escrutínio público sobre a justiça dos procedimentos; (ii) articular campanha de arrecadação de fundos para custear despesas (v.g. pagamento da fiança, de investigadores particulares, assistentes técnicos etc.); (iii) viabilizar o acesso da defesa técnica a um manancial de informações e fontes de prova relevantes.

Outra alternativa é a criação de página na rede mundial de computadores, para reagir à publicidade negativa haurida de autoridades públicas. Essa ferramenta pode ser criada sob medida para veicular, com precisão, a versão defensiva dos fatos, disponibilizar documentos etc., sem os riscos inerentes à entrevista jornalística – cuja dinâmica e imprevisibilidade podem gerar publicidade desfavorável.

Também é possível a divulgação de nota à imprensa, preferencialmente feita em conjunto com assessor de imprensa, a qual pode ser acompanhada de dossiê (espécie de memorial de relações públicas) contendo argumentos e documentos selecionados.

A forma mais tradicional é a entrevista dada pelo advogado.

Nada obstante, remanescem questões em aberto sobre os limites éticos da atuação do advogado na arena da opinião pública: (i) se a assessoria de imprensa é atividade profissional compatível com a advocacia; (ii) se é legítima a cobrança de honorários advocatícios pela atividade de assessoria de imprensa; (iii) se o Advogado pode orientar o cliente a dar declarações públicas sobre temas em relação aos quais o Advogado está proibido de declarar; (iv) se o Advogado pode prestar declaração pública que sabe ser falsa, ou capaz de induzir o Juiz, jurados, parte adversa ou a opinião pública em erro; (v) qual é o critério para ponderação entre interesses conflitantes do Advogado e do cliente perante a mídia; (vi) se é possível o compartilhamento de informações protegidas pelo sigilo profissional com assessores de imprensa, jornalistas etc.

É lícito concluir que o Código de Ética e Disciplina da OAB é excessivamente lacônico sobre os limites da atuação do Advogado fora da sala de audiência, gerando insegurança jurídica pela dúvida se os preceitos deontológicos aplicáveis à defesa em juízo são extensíveis à defesa perante o tribunal da opinião pública.

Assim, por ora é possível apresentar algumas propostas: (i) o direito à defesa pública pressupõe prévia acusação pública; (ii) o exercício desse direito é facultativo, dependendo da concordância expressa do cliente e cuidadosa análise da acusação pública e demais circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto; (iii) o direito em apreço não inclui a declaração pública que o Advogado sabe ser falsa, ou capaz de induzir o Juiz, jurados, parte adversa ou a opinião pública em erro; (iv) o exercício desse direito sempre deve visar ao melhor interesse do cliente, nunca do Advogado (v.g. autopromoção etc.).

Por fim, decerto há situações em que a melhor estratégia é o silêncio, pois a declaração pública — principalmente quando amadorística, feita na base do improviso — pode ser um tiro que sai pela culatra, prejudicando os interesses do cliente.


RESTA, Giorgio. Trying cases in the media: A comparative overview, In: Law and Contemporary Problems, v. 71, n. 04, pp. 31-66, 2008.

SCHREIBER, Simone. A publicidade opressiva de julgamentos criminais, pp. 373 e ss. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

O artigo 38 da Lei nº. 13.869/19 criminaliza a conduta de o responsável pelas investigações “antecipar por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação”. A questão é saber se essa norma penal incriminadora de fato será aplicada, à luz da seletividade do sistema penal, do esprit de corps etc.

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) reconheceu violação ao direito convencional do acusado à presunção de inocência (artigo 6.2 da Convenção Europeia de Direitos Humanos), pela sua caracterização como culpado pelas autoridades públicas responsáveis pela investigação preliminar do crime, durante entrevista coletiva (caso Allenet de Ribemont vs. França, sentença de 10 de fevereiro de 1995, §§ 35-41).

STERN, Max. The right of the accused to a public defense, In: Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, n. 18, pp. 53-121, 1983.

An attorney’s duties do not begin inside the courtroom door. He or she cannot ignore the practical implications of a legal proceeding for the client. Just as an attorney may recommend a plea bargain or civil settlement to avoid the adverse consequences of a possible loss after trial, so too an attorney may take reasonable steps to defend a client’s reputation and reduce the adverse consequences of indictment, especially in the face of a prosecution deemed unjust or commenced with improper motives. A defense attorney may pursue lawful strategies to obtain dismissal of an indictment or reduction of charges, including an attempt to demonstrate in the court of public opinion that the client does not deserve to be tried” (501 US 1030 (1991)).

Isso é relativamente comum quando o cliente é corporação de negócios dependente do seu conceito empresarial favorável junto a acionistas, clientes e fornecedores, ou político cujo cargo comissionado ou mandato eletivo dependem de reputação favorável perante correligionários, eleitores e financiadores.

SLOTNIK, Barry Ivan. Defense counsel as advocate outside the courtroom, In: Loyola of Los Angeles Law School, v. 30, n. 01, pp. 113-118, 1996.

BENNETT, Robert. Press advocacy and the high-profile client, In: Loyola of Los Angeles Law Review, v. 30, n. 01, pp. 13-20, 1996.

STERN, Max. Op. cit., pp. 74-81.

Richard Stack fornece as seguintes dicas: (i) exercer o controle, regulando a maior quantidade de informações possível para exibir o cliente de forma favorável; (ii) combater o controle inicial do acusador sobre a narrativa com a mesma arma (publicidade); (iii) antecipar as prováveis perguntas, preparar as respostas, e ter cuidado com a aparência; (iv) limitar as entrevistas em off a jornalistas de confiança; (v) não recusar respostas a certas perguntas, pelo risco de inferências negativas sobre a culpa do cliente; (vi) conhecer veículos, editores e jornalistas, mapeando suas inclinações políticas e subjetividades; (vii) tratar os profissionais da mídia com profissionalismo e respeito (v.g. respeitando seus prazos editoriais etc.); (viii) manter a calma e dignidade, sem ser argumentativo ou antagonista em excesso (pois a mídia sempre tem a última palavra); (ix) usar linguagem acessível e direta (sem jargão técnico-jurídico); (x) dizer sempre a verdade; (xi) assumir responsabilidade pessoal pela correção do registro, pedindo para revisar a transcrição da entrevista e retificar eventual erro; (xii) nunca subestimar a capacidade da opinião pública de influenciar o resultado do julgamento (STACK, Richard. The uneasy alliance between attorney and reporter, or when Perry Mason meets Louis Lane, In: The Champion, July 2003).

MOSES, Jonathan. Legal spin control: Ethics and advocacy in the court of public opinion, In: Columbia Law Review, v. 95, n. 07, pp. 1.811-1.856, 1995.

 é advogado criminalista, sócio do Mirza & Malan Advogados e professor da Uerj e da UFRJ.

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Justiça Federal pagará R$ 31 bilhões em precatórios da União em 2020

O Conselho da Justiça Federal divulgou o cronograma de liberação financeira aos Tribunais Regionais Federais para pagamento dos precatórios federais em 2020, atendendo às diretrizes estabelecidas em conjunto com a Secretaria do Tesouro Nacional, no valor total estimado de R$ 31.768.742.706,00. 

Os precatórios serão pagos seguindo a classificação prevista no artigo 100 da Constituição Federal: natureza alimentar e natureza comum (não alimentares), os quais deverão ser depositados pelos tribunais até o último dia útil do mês de junho.  

Para os precatórios alimentares, estimados em R$ 13 bilhões, podem ser destacados os valores referentes a salários, vencimentos e vantagens dos servidores públicos federais (ativos, inativos e pensionistas), bem como de indenizações e honorários advocatícios.  

Já os precatórios comuns (não alimentares), estimados no valor global de R$ 18,7 bilhões,  no corrente ano, deverão estar depositados pelos tribunais também no mês de junho, conforme o cronograma financeiro definido junto ao Tesouro Nacional. Esse lote abrange os precatórios parcelados dos exercícios de 2011, 2018 e 2019, não compreendidos nos precatórios alimentares já citados.  

Tanto os precatórios comuns quanto os alimentares serão depositados em contas individuais abertas nas instituições financeiras responsáveis, Caixa Econômica Federal e no Banco do Brasil, e estarão à disposição dos Tribunais Regionais Federais, para posterior saque pelos beneficiários.

O CJF esclarece que cabe aos TRFs, segundo cronogramas próprios, definir o calendário para o depósito desses valores. E a informação do dia em que as contas serão efetivamente liberadas para saque deverá ser buscada na consulta processual do portal do Tribunal Regional Federal responsável. Com informações da assessoria de imprensa do Conselho da Justiça Federal.

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Grupo de mídia é responsável por conteúdo de afiliada, diz TJ-RS

Grupo que lidera a cadeia empresarial do setor de comunicação, beneficiando-se do conteúdo editorial produzido por suas afiliadas, é parte legítima para integrar o polo passivo de uma ação indenizatória em que se discute a violação do direito de imagem.

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
CNJ

Movida por este entendimento, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença que condenou a Globo Comunicação e Participações a indenizar em danos morais um casal transexual e seu filho. Motivo: o portal G1 e o jornal Extra publicaram matéria e fotos do casal e da criança recém-nascida sem autorização, violando direitos de personalidade assegurados no inciso X do artigo 5º da Constituição e o artigo 17 do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA).

Mesmo grupo econômico

A extinção do processo por ilegitimidade passiva foi suscitada pela Globo na primeira instância, ao argumento de que, originalmente, apenas reproduziu material criado por veículo da RBS, que possui independência administrativa. O juiz Fernando Antonio Jardim Porto, da 11ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, rejeitou a preliminar, por entender que o grupo carioca deve responder solidariamente pela veiculação da matéria em suas plataformas de comunicação.

“Isso porque, é evidente que a RBS, como ‘afiliada’ da Globo, integra o mesmo grupo econômico e faz parte da mesma cadeia empresarial, assim como é fato público e notório que a afiliada e o site da G1 são vinculados à rede nacional, a qual também deve ser responsabilizada pelo conteúdo das informações que são transmitidas”, anotou na sentença.

O relator da apelação no TJ-RS, desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana, comungou do entendimento do juízo de origem. Para o julgador, o fato das empresas RBS e Globo possuírem CNPJs (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) diferentes não retira a responsabilidade da ré.

“O conteúdo veiculado no site, com âmbito nacional, é chancelado pela Globo Comunicação e Participações S/A que, ao usufruir dos bônus (audiência, número de acessos ao portal, patrocinadores, seguidores) igualmente deve arcar com os ônus. A pertinência de ação regressiva contra suas parceiras não necessita ser abordada agora. O fato é que tem, sim, legitimidade passiva no presente feito”, definiu o desembargador.

Um caso inédito

Os autores aceitaram contar a sua história ao jornalista Felipe Martini, do jornal Zero Hora, do Grupo RBS, em Porto Alegre, afiliado da Rede Globo no Rio Grande do Sul. Afinal, era um caso raro e com grande interesse jornalístico: um homem com nome social feminino e uma mulher com nome social masculino estavam prestes a ser pais biológicos de uma criança. Para entender melhor: o pai — que biologicamente é do sexo feminino — foi quem deu à luz à criança, que nasceu em 7 de julho de 2018. Foi o primeiro caso, no Brasil, de um casal transexual ter gerado o próprio filho.

Os autores reclamam que deram “autorização formal, explícita e individual” apenas para alguns veículos, o que não incluía a Globo, dona do site G1 e jornal Extra. Estes reproduziram o material jornalístico levantado por ZH, com com acréscimo de fotos retiradas das redes sociais dos autores.

Abuso de direito

“Tenho que houve abuso na liberdade de expressão/informação exercido pela ré, visto que, conforme documentos e narrativa dos fatos, utilizou-se da história e das imagens dos demandantes, publicando-as em seus sítios eletrônicos, sem a devida autorização”, concluiu o juiz Fernando Antonio Jardim Porto, condenando a parte ré.

A sentença condenatória, no mérito, foi mantida pela 10ª Câmara Cível do TJ-RS. “O prejuízo não necessita ser comprovado. O uso indevido da imagem por si só já enseja danos morais indenizáveis ao menor e aos pais. Corroborando a sentença, incontestável o dano moral”, observou o desembargador Pestana.

No desfecho do processo, a Globo teve a apelação provida no TJ-RS apenas para a diminuição do valor da indenizatório. Cada um dos pais vai receber, a título de dano moral, R$ 2 mil — em vez dos R$ 5 mil arbitrados no juízo de primeira instância. E a criança, em vez de R$ 10 mil, irá receber R$ 3 mil.

Clique aqui para ler a sentença.

Clique aqui para ler o acórdão.

001/1.16.0063091-0 (Comarca de Porto Alegre)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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Zaupa: A Covid-19 e o artigo 268 do Código Penal

Em razão da pandemia da Covid-19, foi editada a Lei nº 13.979/2020, regulamentada pela Portaria nº 356/2020 do Ministério da Saúde. O artigo 3º da lei traz um rol de medidas a serem adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública, entre as quais se encontram o isolamento, a quarentena, a realização de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação, tratamentos médicos específicos, entre outras.

Aqui em Mato Grosso do Sul, foi editado o Decreto Estadual nº 15.391/20 que, em seu artigo 8º, estabeleceu que para o enfrentamento da emergência de saúde decorrente do coronavírus poderão ser adotadas as medidas de isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de vacinas, entre outras. O Decreto Estadual nº 15.396/20 também estampa diversas medidas de prevenção a serem adotadas no território sul-mato-grossense.

E, assim, em cada município, os gestores municipais passaram também a editar atos, quase que em sua totalidade decretos, com intuito de regrarem as medidas a serem adotadas em âmbito local, observando ao menos é isso que se espera — as peculiaridades de seu município.

Fator a ser lembrado é que, conforme as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal nas ADIs nºs 6341 e 6443, essas normativas devem ser precedidas de “recomendação técnica e fundamentada”.

Ainda, conforme se depreende da decisão plenária face as ADIs nºs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428 (ajuizadas contra a Medida Provisória 966/2020), os gestores devem agir com observância de “normas e critérios científicos e técnicos”.

Tanto é assim que em diversas localidades do país o Poder Judiciário está a suspender os efeitos de decretos que não atendam referidos critérios.

Se é certo que muito se está a acionar o Poder Judiciário frente a decretos que tratam da flexibilização das medidas, também é certo que para imposição de medidas restritivas também há de haver necessária e prévia análise técnica para sua fundamentação e exigência, conforme também está a ocorrer em muitas comarcas do país.

Assim, antes de adentrar na análise propriamente dita do imperativo penal, é importante que haja essa compreensão.

Dispõe o artigo 268 do Código Penal:

“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro”.

Conforme se observa, a norma visa a tutelar a saúde da coletividade (incolumidade pública).

O tipo destaca “determinação do poder público”, ou seja, trata-se de norma penal em branco, que demanda a existência de um ato legalmente emanado do poder público e que tenha por finalidade específica impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.

Conforme vasta normativa sanitária, o coronavírus enquadra-se como doença contagiosa e que pode ser introduzida ou propagada em determinada localidade.

O delito em tela é de natureza dolosa, não havendo previsão de modalidade culposa, ou seja, é necessário demonstrar que o sujeito, tendo conhecimento da vedação de determinada conduta pelo poder público, de forma consciente, exteriorize conduta para seu descumprimento.

Para a configuração do crime não é necessário que o descumprimento da norma realmente introduza ou propague o coronavírus, tratando-se de crime de mera conduta e de perigo abstrato, que se consuma com a violação do mandamento de obediência à norma do poder público para o fim específico mencionado.

Pode haver configuração de sua forma tentada, a depender da característica da vedação prevista pelo poder público e, ainda, caso seja possível fragmentação de atos para sua consumação, com eventual percurso do iter criminis.

O delito é de ação pública incondicionada e, tratando-se de norma de pequeno potencial ofensivo (Lei nº 9.099/90, artigo 61), a competência para seu processamento e julgamento será do Juizado Especial Criminal.

Qualquer pessoa pode ser autora do crime e, a depender de sua condição, pode ter sua pena aumentada (vide parágrafo único).

Deste modo, em um momento de pandemia como o atual, havendo embasamento técnico e científico para que o gestor estampe medidas restritivas à população, a qual deve levar em consideração os aspectos e circunstâncias próprios de sua localidade, caso haja o descumprimento, há o poder-dever das autoridades locais em agirem, com vistas à preservação da saúde da coletividade.

Contudo, é preciso muita responsabilidade, análise e, conforme destacado, fundamentação técnica e científica para que o gestor imponha ao cidadão medidas que restrinjam seus direitos e garantias, elementos esses essenciais à vida humana e previstos como cláusulas pétreas na Constituição Federal, os quais somente em formatação temporária e excepcional podem ser momentaneamente mitigados ou tolhidos.

Quem acompanha o panorama nacional está a constatar a balbúrdia legislativa sobre a questão, já que União, Estados e municípios, ao mesmo tempo, estão a editar regramentos sobre a conduta do cidadão frente ao coronavírus.

Essa situação se intensificou após a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 6341, em que se consignou que União, Estados e municípios podem legislar sobre medidas frente à pandemia de coronavírus, confirmando os ditames do artigo 23, II, da Constituição Federal.

Em meio a enxurrada de normas e até mesmo contradições entre elas, há uma pluralidade de entendimentos ditos técnicos e científicos que, somados a fake news e discussões tomadas de ideologias e bases políticas, colocam o cidadão em estado de aflição, pressão e confusão.

Nessa esteira, seria demasiado falar que em alguns casos ocorrerão os chamados erros de tipo (Código Penal, artigo 20) ou erro de proibição (Código Penal, artigo 21)? A discussão, frente a cada caso apresentado, tomará seus rumos.

Veja que a junção do artigo 268 do Código Penal com uma norma do poder público para enfrentamento ao coronavírus traz ao mesmo tempo a confluência de uma norma penal em branco com uma (ou várias) normas de caráter temporário e excepcional, o que formam base para acender uma luz de alerta ao aplicador da lei, por ocasião da análise do caso prático posto.

Normas com expressa previsão de poder de polícia e sanções de caráter administrativo talvez fossem mais interessantes aos gestores municipais, lembrando-se da tutela criminal como ultima ratio e o caráter subsidiário e fragmentário do direito penal.

Eventual entendimento de insuficiência das demais normas de tutela não deve ser prontamente e indiscutivelmente aceita, já que a busca do pálio da legislação criminal enseja maior rigor e seriedade.

Caso a norma complementar do tipo penal em branco do artigo 268 do Código Penal, como por exemplo, um decreto municipal (norma penal em branco heterogênea), seja eivado de vício de fundamentação técnica e/ou científica (ou sua ausência), nada obstante as discussões jurídicas existentes, é de se aquilatar até onde deve haver a incidência da norma penal em lume, em face ao que foi exposto acima.

A exoneração de responsabilidade poderia ser aferida, diante de possível aniquilação da norma do poder público, a qual se figura como complementar ao tipo penal (acessoriedade administrativa), ante sua flagrante inconstitucionalidade, nos termos das ADIs nºs 6341, 6443, 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428, julgadas recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.

Ademais, é preciso lembrar que a norma do poder público municipal também não pode violar as regras de competência insculpidas na Constituição Federal.

Assim, ainda que a pretexto de disciplinar a conduta dos cidadãos frente ao coronavírus, o Poder Executivo municipal não pode usurpar as competências privativas da União e do Estado.

Caso ocorra referida violação, também não há que se falar em validade da norma administrativa municipal e, assim, também não haverá o aperfeiçoamento da norma penal em branco, por falta de sua complementariedade necessária.

Ante o exposto, o momento é de mobilização frente a pandemia de Covid-19 e o imperativo contido no artigo 268 do Código Penal está à disposição das autoridades para referida finalidade.

Contudo, sua aplicabilidade deve obedecer ao regramento do ordenamento jurídico pátrio e ditames hermenêuticos estampados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade supramencionadas.

 é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul e especialista em Direito Constitucional.