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André Godinho: A retomada planejada e gradativa Judiciário

Em tempos de isolamento social, as instituições brasileiras têm sido desafiadas diuturnamente quanto à sua capacidade de adaptação à realidade de restrições no contato interpessoal.

No âmbito do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, cumprindo seu papel constitucional de fixar diretrizes uniformes para a atuação dos tribunais brasileiros, tem editado normas para bem regulamentar o seu funcionamento, de modo a assegurar a continuidade da prestação jurisdicional, sem descuidar das necessárias medidas de prevenção do contágio pela Covid-19.

Nesse contexto, logo após a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde, foi editada a Resolução nº 313, de 19 de março, que determinou a suspensão da fluência de prazos processuais em todos os processos em trâmite no Judiciário brasileiro, por meio físico ou virtual, até 30 de abril. Em seguida, a Resolução nº 314, de 20 de abril, prorrogou a vigência da norma anterior até 15 de maio e determinou a volta da fluência dos prazos dos processos virtuais em 4 de maio.

Dois dias após o primeiro decreto de lockdown no Maranhão, o CNJ editou a Resolução nº 318, de 7 de maio, que, além de prorrogar a vigência da norma anterior até o dia 31 do mesmo mês, previu a possibilidade excepcional de suspensão total dos prazos no âmbito de cada tribunal, a depender das circunstâncias locais de restrição de locomoção. Tal orientação teve sua vigência prorrogada até o dia 14 de junho, com a publicação da Portaria CNJ nº 79, de 22 de maio.  

Importante destacar que todas as medidas têm sido objeto de cuidadoso estudo e amplo debate com OAB, AMB, Anamatra e Ajufe, o que motivou, nesta segunda-feira (1º/6), a edição da nova Resolução nº 322, atenta ao julgamento da ADI 6343 pelo STF e às recentes medidas de flexibilização do isolamento social em alguns Estados e municípios do país, permitindo a retomada gradual de atividades presenciais no âmbito dos respectivos tribunais a partir de 15 de junho de 2020, elencando os procedimentos necessários.

A nova norma, embora estabeleça como regra o atendimento virtual, passa a possibilitar que cada tribunal, em etapa preliminar, constatada a existência de condições sanitárias e de atendimento de saúde pública que as viabilizem, promova medidas de restabelecimento de atividades presenciais, as quais deverão estar amparadas em informações técnicas fornecidas por Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária e Secretarias Estaduais. Para tanto, deverão ser ouvidos o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública.

Entre as medidas que poderão ser adotadas na etapa preliminar de restabelecimento das atividades presenciais, a nova resolução indica a retomada dos prazos processuais de autos físicos e virtuais, sem prejuízo de nova suspensão em caso de imposição de medidas sanitárias restritivas à liberdade de locomoção das pessoas (lockdown), mesmo quando decretadas em caráter parcial por Estados e municípios, a contar da data do decreto governamental.

Poderão ainda ser realizadas audiências presenciais envolvendo réus presos ou adolescentes em conflito com a lei, sessões presenciais de júri e de julgamento em tribunais e turmas recursais, perícias, entrevistas e avaliações, entre outros.

Em todos os casos, deverão os tribunais fornecer e exigir o uso de equipamentos de proteção individual, bem como zelar pela presença restrita a magistrados, servidores, membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, advogados, peritos e auxiliares da Justiça, bem como às partes interessadas no ato.

Conquanto se permita a realização dos atos presenciais referidos, as audiências e sessões de julgamento deverão continuar sendo realizadas preferencialmente por meio virtual, com a utilização prioritária do sistema Webex/Cisco, disponibilizado a todos os tribunais pelo CNJ. Nos casos de realização de audiências presenciais, a nova Resolução nº 322 impõe que sejam observados distanciamento adequado e limite máximo de pessoas.

Já na primeira etapa de retomada gradual das atividades presenciais, a norma autoriza o funcionamento, nos prédios do Poder Judiciário, das dependências cedidas à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mas veda o atendimento ao público.

Após a consolidação de todas as medidas, os tribunais poderão passar à fase de retomada integral de suas rotinas presenciais, a depender da evolução do estado de pandemia, como também restabelecer restrições, acaso necessárias. Vale destacar que deverão ser criados grupos de trabalho locais para a permanente reavaliação do quadro e aprimoramento das medidas adotadas, nos moldes do grupo de trabalho mantido pelo CNJ.

Em prestígio ao princípio da transparência e publicidade de suas ações, o CNJ manterá em seu site quadros e painel eletrônico contendo dados necessários para que todos os interessados tenham conhecimento das regras em vigor em cada um dos tribunais do país durante o período de pandemia, da fluência ou suspensão dos prazos processuais para os processos eletrônicos e físicos e do regime de atendimento e de prática de atos processuais no respectivo órgão.   

É certo que a crise de saúde pública ainda está longe de ser solucionada, o que recomenda máxima prudência no restabelecimento da normalidade do Poder Judiciário. Por isso, o CNJ continuará atento às necessidades de magistrados, Advogados, membros do Ministério Público e, em especial, aos interesses dos cidadãos, que buscam por uma necessária celeridade dos julgamentos processuais.

E que assim, com o permanente diálogo e colaboração entre as instituições da Justiça, possa-se alcançar o ponto de equilíbrio entre a segurança jurídica e a preservação da saúde de todos.

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Opinião: A Covid-19, afinal, é uma doença ocupacional?

Essa indagação ecoa atualmente no mundo jurídico com força potencializada após recente julgamento do STF que determinou, em caráter liminar, a suspensão do artigo 29 da MP 927/2020.

A Covid-19, sem dúvidas, é atualmente o arqui-inimigo de todos os países nesta “terceira guerra mundial”. Existe uma preocupação forte generalizada com as consequências desta doença, pois milhares de pessoas vieram a óbito em vários países, e o mesmo ocorreu no Brasil. Será a profecia do filme “Epidemia”, de 1995?

De todas as consequências drásticas da pandemia, há uma que vem preocupando milhares de brasileiros: a desestabilização nas relações de trabalho, em gênero e espécie, pois muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, sofreram uma redução considerável do faturamento e outras foram obrigadas a encerrar as suas atividades e, consequentemente, realizar inúmeras demissões.

Desde novembro de 2017, o Direito e o Processo do Trabalho vêm passando por grandes transformações, com reformas, minirreformas etc. Entretanto, para enfrentamento das consequências advindas dessa “força maior”, torna-se premente a necessidade de relativização e flexibilização dos direitos trabalhistas, com o escopo de manutenção do emprego e a sobrevivência das atividades empresariais. 

A fim de adequar a vida das pessoas e trabalhadores a essa nova realidade, foram instituídas diversas medidas no ambiente laboral, a maioria prevista nas MPs 927 e 936 de 2020, a saber: adoção de home office, antecipação de férias, uso de banco de horas, suspensão temporária de obrigações, suspensão do contrato de trabalho, redução da jornada e salário.

De fato, a recomendação de adoção do trabalho remoto foi amplamente seguida pelas empresas pátrias. Todavia, existem segmentos que realizam as atividades essenciais, e que estão listados no artigo 3º, § 1º, e incisos do Decreto 10.282/2020, que não podem parar. Existem outras que estão na iminência de retornar, conforme se infere dos planos de retomada divulgados por diversos municípios brasileiros.

Nesse contexto, se o trabalhador que realiza o trabalho presencial adquire a Covid-19, esta doença será considerada doença ocupacional?

O artigo 29 da MP 927/2020 assim dispõe: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.

Considerando a realidade fática de fácil contaminação decorrente do simples contato com pessoa infectada ou com superfícies contaminadas, o que pode ocorrer em atividades diárias comuns, difícil estabelecer previamente o nexo causal entre o vírus (que pode estar em qualquer lugar) e o ambiente laboral, exceto se evidenciado o risco na atividade exercida, a exemplo do que ocorre com os profissionais de saúde.

Assim, buscou a MP 927 consolidar regra já existente na legislação pátria e afastar a imputação objetiva e imediata ao empregador, que já enfrenta grave crise econômica, trazendo de certo modo segurança jurídica de que o simples fato de o trabalho presencial continuar não irá gerar eventual enxurradas de demandas, administrativas ou processuais, caso alguns dos seus empregados sejam contaminados pelo coronavírus. Para tanto, necessário que o empregador diligente tenha adotado todas as medidas e cautelas recomendáveis no ambiente de trabalho, na linha das diversas orientações e recomendações proferidas pelo MPT, pela Secretaria do Trabalho e outros milhares de decretos municipais baixados no período.

Todavia, após o ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354 [1], o Supremo Tribunal Federal, no dia 29 de abril, ao realizar juízo de cognição sumária acerca da constitucionalidade do artigo 29, afastou a sua aplicação e eficácia, ao argumento principal de que seria de prova muito difícil para o trabalhador contaminado pelo vírus comprovar o nexo causal entre a doença e o ambiente de trabalho. Em clara aplicação do princípio da proteção ao empregado, o órgão de cúpula do nosso Judiciário determinou a inversão do ônus da prova, presumindo a responsabilidade do empregador, salvo prova em contrário de que o ambiente de trabalho era apropriado ao trabalho, sem riscos para a contaminação pelo coronavírus.

o há dúvidas de que o simples fato de o trabalhador sair para o trabalho aumenta a sua exposição ao vírus. Todavia, se ele mesmo trabalhador realiza outras atividades diárias essenciais, tais como: vai ao mercado, à farmácia ou ao banco, é difícil presumir o nexo causal direto com o trabalho, especialmente se os seus colegas de trabalho não foram acometidos pelo vírus. Logo, existirá no caso uma quebra da cadeia do nexo causal.

Esse entendimento já restou consolidado há muito tempo na legislação pátria. Basta citar o §1º, alínea “d” do artigo 20 da Lei 8.213/91, que, em redação bem similar, retira das doenças ocupacionais as doenças endêmicas, desde que não haja comprovação do nexo causal [2]. Tal norma existe há quase 30 anos em nosso ordenamento jurídico e é amplamente aplicada. Cite-se, por oportuno, algumas decisões nesse sentido:

“DOENÇA DO TRABALHO. MALÁRIA. REGIÃO ENDÊMICA. AUSENCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DE CULPA PATRONAL. DEVER DE INDENIZAR. IMPOSSIBILIDADE. Em regra, o reconhecimento do dever de indenizar perpassa pela comprovação do nexo de causalidade entre o resultado lesivo e a conduta patronal, sendo exigido nalguns casos a demonstração do dolo ou culpa do empregador (artigo 186 c/c 927, CC e artigo 7º, XXVIII da CR). In casu, o empregado não conseguiu demonstrar que foi acometido por malária durante as suas atividades laborais no estabelecimento empresarial da reclamada, tendo o conjunto probatório se alinhado preponderantemente em sentido contrário e evidenciado que o obreiro contraiu a moléstia anteriormente à sua admissão. (TRT 14ª R.; RO 0010388-41.2014.5.14.0006; Primeira Turma; Relª Desª Elana Cardoso Lopes Leiva de Faria; DJERO 11/12/2014; Pág. 280)”

DOENÇA DE CHAGAS. DOENÇA PROFISSIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. De acordo com o que estabelece a alínea d do §1º do artigo 20 da Lei nº 8.213/91, não é considerada, como doença do trabalho, a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. No caso dos autos, o reclamante é trabalhador rural e mora na zona rural que, de acordo com o laudo técnico, sabidamente adoecedora. Não há provas de que a doença foi adquirida em decorrência das atividades profissionais por ele desenvolvidas na fazenda do reclamado – A alteração do ambiente natural não constitui motivo suficiente para configurar a culpa do réu. (TRT 3ª R.; RO 119200-33.2009.5.03.0145; Nona Turma; Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida; DJEMG 13/01/2012; Pág. 20)”.

Ora, se a norma em comento se aplica, sem maiores questionamentos às endemias, com maior razão de ser pela potencialidade de alastramento da doença deveria ser também utilizada como solução em questões envolvendo a pandemia.

Dessa forma, ainda que suspensa a aplicabilidade e eficácia do artigo 29 da MP 927/2020, a normativa que existe sobre a matéria não permite outra interpretação senão a de ser necessária a análise pontual de cada caso, não sendo a princípio  possível estabelecer o nexo de causalidade pelo simples fato de o trabalhador estar laborando, exceção feita aos profissionais de saúde, coveiros, funcionários de mercados, entre outros, que, pela própria natureza da atividade que realizam, estão no front, em exposição total ao novo coronavírus.

Desse modo, conquanto tenha o STF liminarmente e com bons argumentos afastado a eficácia do artigo 29 da MP 927, certo é que o nosso próprio arcabouço jurídico não permite a presunção de contaminação quando o empregador é diligente, adota e faz cumprir regras de controle de acesso, saúde, higiene, inclusive com higienização do ambiente, tomando todas as medidas de proteção de saúde e segurança do trabalhador.

Interpretação contrária seria aumentar sobremaneira o risco da atividade para aqueles que em tempos de pandemia lutam para se manterem ativos.

Considerando não ser hipótese de responsabilidade objetiva do empregador, com todo respeito à decisão do Pretório Excelso, o qual citou a Rext nº 828040, a inversão injustificada do ônus da prova para o empregador poderá gerar uma avalanche de demandas judiciais, inclusive algumas de cunho aventureiro.

Destarte, importante que as empresas criem mecanismos de prevenção e proteção dos seus trabalhadores, documentando todas as iniciativas realizadas, a fim de afastar pretensa responsabilização injustificada.

Nessa linha, importante seguir as recomendações vinculadas ao reforço de higiene e medidas de saúde, tais como: disponibilização no local de trabalho de papéis toalhas, sabonetes líquidos ou detergentes e álcool em gel 70%. Além disso, importante que os empregadores divulguem por e-mail, site oficial ou redes sociais informativos sobre a importância de utilização de equipamentos de proteção individual (EPIs), e, considerando a Covid-19, o uso obrigatório de máscaras de proteção facial [3], estas que devem ser fornecidas aos empregados, para utilização no trajeto casa-trabalho e vice-versa, bem como no local de trabalho. Por fim, paras as atividades não essenciais, a adoção de home office para evitar as aglomerações.

Tais cuidados revelam não apenas a preocupação com a saúde e vida dos seus trabalhadores, como ainda refletem no ambiente laboral os princípios da cooperação e solidariedade, cada vez mais necessários atualmente na nossa sociedade.

 


§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.

 é advogada, sócia no escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 é advogada, sócia do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).