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Damiani e Pupo: Um limite para publicidade dos acordos de leniência

Desde que os primeiros acordos de leniência e de colaboração premiada ganharam visibilidade, a opinião pública parece ter se tornado uma audiência obrigatória do conteúdo desses novos mecanismos de combate à corrupção. É como se toda a sociedade precisasse validar se as revelações resultantes desse processo estavam condizentes às sanções aplicadas em cada caso. Diante disso, cabe uma indagação primordial: a publicidade indiscriminada desses pactos é benéfica aos fins que eles se propõem?

A resposta a essa questão começa pelo entendimento sobre o contexto em que esse tipo de acordo ganhou força no Brasil. Trata-se de uma evolução da estratégia investigativa, à medida que os instrumentos clássicos para apurar eventuais práticas ilegais nas empresas — por exemplo, a perícia contábil criminal — se mostravam ineficientes para a repressão da criminalidade econômica, a qual, rotineiramente, permeiam negociações escusas — por exemplo,  a formação de cartel —, movimentações de capital à margem do sistema financeiro regular — como é o caso do “dólar-cabo” —, entre outras.

Diante disso, surgiram institutos para premiar, com imunidade ou diminuição de pena, os agentes que confessam às autoridades públicas os delitos que perpetraram, denunciando os seus comparsas e o modus operandi da empreitada criminosa. A concessão de tais benefícios, ressalte-se, é totalmente legítima; afinal, pressupõe o rompimento empresarial com práticas ilícitas e a necessária retomada das atividades de forma ética e sustentável, em cumprimento à sua função social. Ademais, há relevante economia ao erário, na medida em que se abreviam investigações e processos.  

A grande diferença entre os dois institutos reside no fato de que a leniência é celebrada entre as autoridades públicas e as pessoas jurídicas, sendo possível a adesão de pessoas físicas nesses acordos, enquanto os acordos de colaboração premiada são firmados diretamente com as pessoas físicas infratoras. 

Por se tratar de um instrumento voltado para pessoas jurídicas, a grande maioria das contrapartidas oferecidas às empresas lenientes consiste na mitigação das multas, bem como das sanções administrativas cabíveis como, por exemplo, proibição de contratar com a administração pública. No entanto, em alguns casos específicos, a legislação prevê, inclusive, a concessão da extinção da punibilidade das pessoas físicas aderentes ao acordo de leniência (vide artigo 87 da Lei nº 12.529/11 leniências firmadas no Cade).  

De volta à discussão sobre os limites para o sigilo dos acordos de leniência, é importante salientar que o sistema jurídico brasileiro se baseia na ideia de ampla publicidade dos atos processuais (artigo 5º, LX, da Constituição Federal). Existe, inclusive, uma súmula vinculante franqueando acesso irrestrito aos defensores de todos os “elementos de prova que já (estejam) documentados em procedimento investigatório” (Súmula Vinculante nº 14 do STF).

Há também, nesse cenário, os princípios do interesse público e controle social, dado que a sociedade exige a concreta fiscalização dos pactos mencionados, especialmente porque as infrações perpetradas pelas pessoas jurídicas lenientes causam, via de regra, prejuízos difusos ou coletivos.

Outro aspecto a ser considerado é o crescente interesse da Ordem dos Advogados do Brasil  — como se depreende dos ofícios n°193/20, 194/20 e 195/20 encaminhados, respectivamente, a PGR, AGU e CGU — e demais órgãos da sociedade civil na fiscalização do cumprimento de tais acordos; afinal, os profissionais responsáveis pela persecução penal são passíveis de erros e, até mesmo, da prática de ilícitos.  Exemplo disso configurou a perigosa e audaciosa tentativa de se criar, à margem da lei, a bilionária “Fundação Lava Jato”.

Contudo, a despeito dos fortes argumentos explicitados anteriormente, a publicidade indiscriminada desses pactos não é benéfica à sociedade e está longe de colaborar para o sucesso desse mecanismo no combate à corrupção.

Explica-se: nos acordos de leniência, as empresas são obrigadas, além de confessar as práticas de ilícitos, a compartilhar segredos e mecanismos internos, como, por exemplo, abrir sua contabilidade, apresentar contratos, indicar bens móveis e imóveis, descrever operações comerciais, detalhar parcerias, dentre outras narrativas. Além disso, habitualmente a leniência está calcada em declarações prestadas por pessoas físicas, confessando-se condutas ilícitas e se delatando condutas de potenciais comparsas.

Ora, a concessão de ampla publicidade aos referidos acordos certamente trará desestímulo e pouca aderênciana medida em que pessoas físicas e jurídicas sentirão maior temor da potencial reação de terceiros delatadosdo que do julgamento de seus atos ilícitos. Sob outro prisma, a divulgação de certas informações estratégicas — indicação de preços comercialmente praticados, margem de lucro, fornecedores etc. — pode significar o colapso concorrencial.

Por conta disso, é necessário haver contornos bem delimitados para a publicidade dos acordos de leniência. As evidências produzidas se confundem com a própria essência dos processos (conteúdo dos acordos de leniência) e, por isso, devem ganhar publicidade. Quanto aos termos do acordo, apenas as obrigações assumidas pelos lenientes — valor do pagamento das multas, obrigações de prestação de serviço à comunidade etc. — merecem publicidade no sentido de se garantir a necessária fiscalização de sua destinação pela sociedade. Todo o restante deve ser mantido no mais absoluto sigilo.   

 é sócio-fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).

 é sócio do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IDPEE da Universidade de Coimbra, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

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Opinião: A Covid-19, afinal, é uma doença ocupacional?

Essa indagação ecoa atualmente no mundo jurídico com força potencializada após recente julgamento do STF que determinou, em caráter liminar, a suspensão do artigo 29 da MP 927/2020.

A Covid-19, sem dúvidas, é atualmente o arqui-inimigo de todos os países nesta “terceira guerra mundial”. Existe uma preocupação forte generalizada com as consequências desta doença, pois milhares de pessoas vieram a óbito em vários países, e o mesmo ocorreu no Brasil. Será a profecia do filme “Epidemia”, de 1995?

De todas as consequências drásticas da pandemia, há uma que vem preocupando milhares de brasileiros: a desestabilização nas relações de trabalho, em gênero e espécie, pois muitas empresas, principalmente de pequeno e médio porte, sofreram uma redução considerável do faturamento e outras foram obrigadas a encerrar as suas atividades e, consequentemente, realizar inúmeras demissões.

Desde novembro de 2017, o Direito e o Processo do Trabalho vêm passando por grandes transformações, com reformas, minirreformas etc. Entretanto, para enfrentamento das consequências advindas dessa “força maior”, torna-se premente a necessidade de relativização e flexibilização dos direitos trabalhistas, com o escopo de manutenção do emprego e a sobrevivência das atividades empresariais. 

A fim de adequar a vida das pessoas e trabalhadores a essa nova realidade, foram instituídas diversas medidas no ambiente laboral, a maioria prevista nas MPs 927 e 936 de 2020, a saber: adoção de home office, antecipação de férias, uso de banco de horas, suspensão temporária de obrigações, suspensão do contrato de trabalho, redução da jornada e salário.

De fato, a recomendação de adoção do trabalho remoto foi amplamente seguida pelas empresas pátrias. Todavia, existem segmentos que realizam as atividades essenciais, e que estão listados no artigo 3º, § 1º, e incisos do Decreto 10.282/2020, que não podem parar. Existem outras que estão na iminência de retornar, conforme se infere dos planos de retomada divulgados por diversos municípios brasileiros.

Nesse contexto, se o trabalhador que realiza o trabalho presencial adquire a Covid-19, esta doença será considerada doença ocupacional?

O artigo 29 da MP 927/2020 assim dispõe: “Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.

Considerando a realidade fática de fácil contaminação decorrente do simples contato com pessoa infectada ou com superfícies contaminadas, o que pode ocorrer em atividades diárias comuns, difícil estabelecer previamente o nexo causal entre o vírus (que pode estar em qualquer lugar) e o ambiente laboral, exceto se evidenciado o risco na atividade exercida, a exemplo do que ocorre com os profissionais de saúde.

Assim, buscou a MP 927 consolidar regra já existente na legislação pátria e afastar a imputação objetiva e imediata ao empregador, que já enfrenta grave crise econômica, trazendo de certo modo segurança jurídica de que o simples fato de o trabalho presencial continuar não irá gerar eventual enxurradas de demandas, administrativas ou processuais, caso alguns dos seus empregados sejam contaminados pelo coronavírus. Para tanto, necessário que o empregador diligente tenha adotado todas as medidas e cautelas recomendáveis no ambiente de trabalho, na linha das diversas orientações e recomendações proferidas pelo MPT, pela Secretaria do Trabalho e outros milhares de decretos municipais baixados no período.

Todavia, após o ajuizamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 6354 [1], o Supremo Tribunal Federal, no dia 29 de abril, ao realizar juízo de cognição sumária acerca da constitucionalidade do artigo 29, afastou a sua aplicação e eficácia, ao argumento principal de que seria de prova muito difícil para o trabalhador contaminado pelo vírus comprovar o nexo causal entre a doença e o ambiente de trabalho. Em clara aplicação do princípio da proteção ao empregado, o órgão de cúpula do nosso Judiciário determinou a inversão do ônus da prova, presumindo a responsabilidade do empregador, salvo prova em contrário de que o ambiente de trabalho era apropriado ao trabalho, sem riscos para a contaminação pelo coronavírus.

o há dúvidas de que o simples fato de o trabalhador sair para o trabalho aumenta a sua exposição ao vírus. Todavia, se ele mesmo trabalhador realiza outras atividades diárias essenciais, tais como: vai ao mercado, à farmácia ou ao banco, é difícil presumir o nexo causal direto com o trabalho, especialmente se os seus colegas de trabalho não foram acometidos pelo vírus. Logo, existirá no caso uma quebra da cadeia do nexo causal.

Esse entendimento já restou consolidado há muito tempo na legislação pátria. Basta citar o §1º, alínea “d” do artigo 20 da Lei 8.213/91, que, em redação bem similar, retira das doenças ocupacionais as doenças endêmicas, desde que não haja comprovação do nexo causal [2]. Tal norma existe há quase 30 anos em nosso ordenamento jurídico e é amplamente aplicada. Cite-se, por oportuno, algumas decisões nesse sentido:

“DOENÇA DO TRABALHO. MALÁRIA. REGIÃO ENDÊMICA. AUSENCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DE CULPA PATRONAL. DEVER DE INDENIZAR. IMPOSSIBILIDADE. Em regra, o reconhecimento do dever de indenizar perpassa pela comprovação do nexo de causalidade entre o resultado lesivo e a conduta patronal, sendo exigido nalguns casos a demonstração do dolo ou culpa do empregador (artigo 186 c/c 927, CC e artigo 7º, XXVIII da CR). In casu, o empregado não conseguiu demonstrar que foi acometido por malária durante as suas atividades laborais no estabelecimento empresarial da reclamada, tendo o conjunto probatório se alinhado preponderantemente em sentido contrário e evidenciado que o obreiro contraiu a moléstia anteriormente à sua admissão. (TRT 14ª R.; RO 0010388-41.2014.5.14.0006; Primeira Turma; Relª Desª Elana Cardoso Lopes Leiva de Faria; DJERO 11/12/2014; Pág. 280)”

DOENÇA DE CHAGAS. DOENÇA PROFISSIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. De acordo com o que estabelece a alínea d do §1º do artigo 20 da Lei nº 8.213/91, não é considerada, como doença do trabalho, a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. No caso dos autos, o reclamante é trabalhador rural e mora na zona rural que, de acordo com o laudo técnico, sabidamente adoecedora. Não há provas de que a doença foi adquirida em decorrência das atividades profissionais por ele desenvolvidas na fazenda do reclamado – A alteração do ambiente natural não constitui motivo suficiente para configurar a culpa do réu. (TRT 3ª R.; RO 119200-33.2009.5.03.0145; Nona Turma; Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida; DJEMG 13/01/2012; Pág. 20)”.

Ora, se a norma em comento se aplica, sem maiores questionamentos às endemias, com maior razão de ser pela potencialidade de alastramento da doença deveria ser também utilizada como solução em questões envolvendo a pandemia.

Dessa forma, ainda que suspensa a aplicabilidade e eficácia do artigo 29 da MP 927/2020, a normativa que existe sobre a matéria não permite outra interpretação senão a de ser necessária a análise pontual de cada caso, não sendo a princípio  possível estabelecer o nexo de causalidade pelo simples fato de o trabalhador estar laborando, exceção feita aos profissionais de saúde, coveiros, funcionários de mercados, entre outros, que, pela própria natureza da atividade que realizam, estão no front, em exposição total ao novo coronavírus.

Desse modo, conquanto tenha o STF liminarmente e com bons argumentos afastado a eficácia do artigo 29 da MP 927, certo é que o nosso próprio arcabouço jurídico não permite a presunção de contaminação quando o empregador é diligente, adota e faz cumprir regras de controle de acesso, saúde, higiene, inclusive com higienização do ambiente, tomando todas as medidas de proteção de saúde e segurança do trabalhador.

Interpretação contrária seria aumentar sobremaneira o risco da atividade para aqueles que em tempos de pandemia lutam para se manterem ativos.

Considerando não ser hipótese de responsabilidade objetiva do empregador, com todo respeito à decisão do Pretório Excelso, o qual citou a Rext nº 828040, a inversão injustificada do ônus da prova para o empregador poderá gerar uma avalanche de demandas judiciais, inclusive algumas de cunho aventureiro.

Destarte, importante que as empresas criem mecanismos de prevenção e proteção dos seus trabalhadores, documentando todas as iniciativas realizadas, a fim de afastar pretensa responsabilização injustificada.

Nessa linha, importante seguir as recomendações vinculadas ao reforço de higiene e medidas de saúde, tais como: disponibilização no local de trabalho de papéis toalhas, sabonetes líquidos ou detergentes e álcool em gel 70%. Além disso, importante que os empregadores divulguem por e-mail, site oficial ou redes sociais informativos sobre a importância de utilização de equipamentos de proteção individual (EPIs), e, considerando a Covid-19, o uso obrigatório de máscaras de proteção facial [3], estas que devem ser fornecidas aos empregados, para utilização no trajeto casa-trabalho e vice-versa, bem como no local de trabalho. Por fim, paras as atividades não essenciais, a adoção de home office para evitar as aglomerações.

Tais cuidados revelam não apenas a preocupação com a saúde e vida dos seus trabalhadores, como ainda refletem no ambiente laboral os princípios da cooperação e solidariedade, cada vez mais necessários atualmente na nossa sociedade.

 


§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:

d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.

 é advogada, sócia no escritório Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

 é advogada, sócia do escritório Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados e pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho na FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).

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Opinião: Os impactos da pandemia nas relações contratuais

Afinal, qual seria o limite da interferência do Estado nas relações contratuais privadas durante um período de pandemia?

Pode-se dizer que a indagação acima é revestida de imensa complexidade e encontra-se em discussão, atualmente, nos mais diversificados ramos do Direito, sendo possível constatar seus impactos em toda a sociedade, com efeitos, por exemplo, nas relações de trabalho, nas relações de consumo, em contratos imobiliários, enfim, em todas as relações bilaterais que ensejam direitos e obrigações para ambas as Partes, terminando por atingir certeiramente a ordem econômica e social do País.

Com base nesta premissa uníssona, pode-se afirmar que os primeiros reflexos da pandemia, Covid-19, no universo do Direito, advirão da Jurisprudência. Essa fonte do Direito secundária, pois sua emanação está vinculada à Lei, será a primeira a instruir o longo e sinuoso caminho que o Direito, em sua mais ampla magnitude, deve percorrer na devida resposta social que o momento exige.

Entretanto, será um intenso desafio a ser alcançado por parte do Poder Judiciário e que exigirá a contribuição dos Poderes Legislativo e Executivo em busca de um equilíbrio na elaboração de normas que poderão colidir contra o já sedimentado entendimento jurisprudencial, a fim de se propiciar o enfrentamento da crise por toda a sociedade. Trata-se da concepção moderna da Jurisprudência por uma tendência à supremacia da Função Social do Contrato em detrimento do pacta sunt servanda.

É o que já é visto, por exemplo, nos contratos de consumo em que o princípio do pacta sunt servanda não é aplicável de maneira absoluta, já que não se pressupõe autonomia plena de vontade. Todavia, nada obstante a remansosa compreensão da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, é nítido que o equilíbrio almejado nesta pandemia também trará consequências inversas à orientação jurisprudencial, simplesmente pela proteção do fornecedor com a finalidade específica de evitar um colapso nos setores mais castigados pela crise.

É o que é possível observar da adoção da Medida Provisória nº 948, de 8 de abril de 2020, a qual dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19).

A adoção desta Medida Provisória certamente esbarra nos mais elementares princípios do Código de Defesa do Consumidor, mas sua criação está condicionada justamente ao estado de calamidade pública reconhecido pelo mencionado Decreto Legislativo, de modo que a revisão dos contratos relacionados a esta matéria pelo Poder Judiciário poderá ser contrária aos interesses tutelados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Por outro lado, nas relações trabalhistas, a Medida Provisória nº 927, instituída em 23 de março de 2020, teve a sua eficácia limitada por liminar do Supremo Tribunal Federal, diante da polêmica envolvendo o seu artigo 18, acerca da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, sem assistência sindical obrigatória. Diante das incertezas jurídicas e do aumento da crise, em 1º de abril de 2020, o Governo publicou a Medida Provisória nº 936, que regulamenta de forma muito mais ampla a intervenção da Lei nas relações trabalhistas e empresariais, visando consagrar a manutenção do emprego.

Conforme se observa na exposição de motivos da MP nº 936, a situação de emergência de saúde pública e as primeiras diretrizes jurídicas para enfrentamento da pandemia já haviam sido positivadas na Lei nº 13.979/20.

Porém, para que o reequilíbrio nas relações contratuais privadas não seja palco para retumbantes injustiças, faz-se imprescindível um olhar subjetivo em cada situação. Primeiro, pelas próprias Partes e seus advogados e, em última análise, mediante arbitramento Judicial.

Neste contexto, oportuna a citação das sábias palavras do jurista José Roberto de Castro Neves[1], que diz: “O Direito serve ao homem, e não o homem ao Direito.”

Não parece razoável tratar todos os casos de forma unitária, em função de imposição legal, sem que sejam consideradas as peculiaridades de cada caso que levaram à revisão de uma situação antes acordada em contrato.

Neste ínterim, destaca-se que apesar da força vinculante dos contratos, em hipóteses de imprevisibilidade ou situação extraordinária que alterem demasiadamente o equilíbrio do contrato, há a possibilidade de que a parte que se considera lesada busque a guarida do Poder Judiciário para requerer o seu reequilíbrio, como vem ocorrendo em demasia nos Tribunais pátrios.

A exemplo da assertiva acima, traz-se ao presente texto recente decisão proferida em 02 de abril pelo MM. Juízo da 22ª Vara Cível do Foro Central da Capital de São Paulo, na qual foi deferida liminar, nos autos do processo nº 1026645-41.2020.8.26.0100, para reduzir em 70% (setenta por cento) o valor locativo de um restaurante, durante o período de pandemia. Ao deferir a tutela, o Magistrado não se absteve de aferir o binômio necessidade/possibilidade, buscando repartir de forma isonômica as perdas inevitáveis de cada Parte, tendo como fundamento legal a função social do contrato.

Situações como essa se replicaram pelo Tribunal Bandeirante, e não tardou a ser proferida a primeira decisão de segunda instância, ressonando uniformidade e segurança nas interpretações congêneres “a quo”. Nos autos do processo nº 2065372-61.2020.8.26.0000, a Desembargadora Daise Fajardo Nogueira Jacot, da 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, indeferiu o pedido de efeito suspensivo em agravo de instrumento e manteve a liminar concedida pelo r. Juízo a quo que “optou pela solução intermediária de redução de cinquenta por cento (50%) do locativo mensal, repartindo entre a locadora e a locatária o esforço necessário para garantir a continuidade da relação jurídica”, em razão da crise pandêmica.

Em todas essas situações, o que vislumbra como fator primordial a autorizar a intervenção Judiciária no pacto particular é a relação dos contratantes com a sociedade, atados pela Função Social do Contrato. A relativização da autonomia de vontade das Partes se faz imperativa, para repelir injustas resistências à manutenção de atividades geradoras de empregos.

Sendo preceito Constitucional, recepcionado pelo Código Civil, em seu artigo 421, a Função Social do contrato engloba as repercussões da relação contratual no âmbito social. Reduzir uma obrigação contratual locativa, para ajudar a evitar a quebra de um restaurante, que faria cessar suas atividades e ocasionaria a perda do emprego de garçons, cozinheiros, manobristas, além da cessação de toda a engrenagem paralela movida pela atividade, como aquisição de insumos, demais fornecedores, contadores, gás, água, energia elétrica etc., atende à Função Social do contrato de locação que o estabelecimento celebrou.

Entretanto, esse elo entre a autonomia das Partes e a sociedade é único em cada relação. Mantenhamos como exemplo um restaurante. Há Partes Locadoras que detém vários imóveis, e cuja dependência econômica perante o aluguel é mínima. Certamente há casos em que a Parte Locadora é uma viúva, idosa e que depende exclusivamente da renda daquele imóvel para sua própria subsistência. Há de se ponderar a redução dos prejuízos mediante vendas por “delivery”, bem como a importância da sobrevivência da atividade para a sociedade como um todo. Enfim, não há como o Judiciário se furtar a um olhar subjetivo para cada situação de conflito de interesses não solucionado amigavelmente pelas Partes.

A particularidade das demandas judiciais desta natureza é tamanha, que o juiz deverá analisá-las não somente à luz dos artigos 393 e 422, ambos do Código Civil, que tratam, respectivamente, dos casos de força maior e do consagrado princípio da boa-fé objetiva, mas com vistas a evitar oportunismos, haja vista a linha tênue que segrega a abissal diferença entre a “dificuldade temporária para o cumprimento de uma obrigação contratual” da “impossibilidade de cumpri-la”. Ou seja, tratam-se de termos e situações cujas consequências são completamente distintas.

De grande valia a lição de Anísio José de Oliveira[2], ao tratar da cláusula rebus sic stantibus, ao concluir que “Nunca se deve embarcar, em face de casos concretos, na caravela do unilateralismo!…”

A importância das céleres e bem fundamentadas decisões jurisprudenciais é palpável. Nos casos em que as Partes não logram um acordo, as decisões norteiam as notificações preliminares, encaminhadas por advogados, demonstrando à outra Parte que a resistência injustificada à renegociação encontra defesa legal, e assim “encorajando” um maior número de rearranjos extrajudiciais.

Ainda no tocante a esses princípios, de celeridade e economia processuais, convém lembrar e exaltar a importância dos advogados para a administração da Justiça, ao relembrar a célebre frase do jurista italiano Francesco Carnelutti, posteriormente corroborada pelo jurista Sobral Pinto, de que “o advogado deve ser o primeiro juiz da causa”. Nesse sentido, o primeiro olhar para dentro de cada situação conflituosa deve ser do causídico, que deve ponderar as circunstâncias de cada contrato, em consonância com suas particularidades e com base na jurisprudência atinente à hipótese, contribuindo para uma menor judicialização das repartições dos danos carreados a todos pela pandemia.

Gilberto Morelli de Andrade é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Vinicius Tadeu Juliani é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Kleber Miguel da Costa é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.