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Danillo Caldeira: Pensamento filosófico é base dos regramentos

Você já parou para pensar de onde o Estado retira a sua autoridade moral? Muitas vezes nos deparamos com temas filosóficos em que os argumentos justificadores, na maioria das vezes, são inegavelmente utilitaristas ou positivistas. Quem nunca se deparou com uma questão e foi respondido com: “Porque é lei” ou, “Mas está na lei”. Tais justificativas não findam a necessidade de mergulhar mais a fundo ao tema, pois justificar uma ação humana pelo fato de certas condutas estarem ou não escritas em um “pedaço de papel” não significa absolutamente nada.

O que faz as pessoas cegamente corroborar em com as leis, ainda que estapafúrdias? Por que obedecemos às leis ainda que essas nos sejam claramente prejudiciais? Talvez não seja esse o argumento central do tema, mas nem só de pontos centrais é formado um argumento. Uma reflexão filosófica pode nos encaminhar a um pensamento crítico de um tema precípuo da jus sociedade: as leis que regulamentam as ações dos indivíduos, o fazem porque existem certas ações individuais que merecem intervenção legislativa ou a lei posta apenas constitui um abstrato teórico encaixável caso a caso e distinto de juízo de moral?

Muito provavelmente parte das pessoas diriam que tal legitimidade veio de um consenso, ou seja, consentimos com isso. Mas nem sempre consentimos com tudo o que nos é imposto, algumas pessoas podem consentir mais que outras, a depender da ideologia do governo detentor do poder naquele momento. Consenso deriva de unanimidade? Mas como pode haver consenso sem que todas as pessoas concordem com tudo? Muitos apelariam para a Democracia, que nada mais é que o consenso da maioria, mas por que uma maioria pode obrigar uma minoria a fazer o que não concorda? E como ao votar, as pessoas repassam aos políticos poderes que nem eles mesmo possuem?

Parto do princípio que o presente artigo não se trata de uma crítica ou um elogio em favor ou desfavor de um modelo ou de outro, indo mais além, o simplório texto humildemente compartilhado aqui nem se trata de uma crítica. Crítica pressupõe um total (ou ao menos amplo) entendimento acerca do tema exposto, e esse entendimento eu não possuo. Dessa forma, o artigo é quase que uma reflexão filosófica e pessoal acerca do tema, por isso me dei ao trabalho quase que pretensioso de elaborar o texto com as minhas palavras e os meus pensamentos, me afastando um pouco dos conceitos e modelos adotados pelos grandes teóricos de prestígio que já abordaram o tema e merecem o devido glamour, ainda que obrigatoriamente tenha que passar por alguns desses conceitos para formar minha linha de raciocínio.

A discussão sobre o Direito Natural e o Direito positivo sempre se fará presente. E pelo andar da carruagem o leitor já deve ter reparado que abordarei mais a forte corrente defensora do jusnaturalismo, entendida pelos juristas e grandes filósofos como o direito que se perfaz independentemente da vontade humana, mas essa narrativa é a correta? Será que realmente há um direito que se perfaz independentemente da vontade humana? O regramento jurídico mais remoto que se tem conhecimento (pelo menos majoritariamente) é o Código de Hamurabi (aproximadamente 1800 anos antes de Cristo), dentro dele eram contidas diversas proteções a bens jurídicos, mas também diversos regramentos específicos àquela comunidade, que derivavam de atitudes inadmitidas pela sociedade e regulada por quem detinha o poder, exemplo disso é o Art. 25 § 227 do referido código: “Se um construtor edificou uma casa para um Awilum, mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto”.

Mas então, podemos dizer que o surgimento dos primeiros regramentos de condutas veio de algo que não fosse humano, ou então, ainda que fosse humano, mas autônomo deste?

Positivismo jurídico

Ainda que pareça repetitivo, faz-se necessário ao menos mencionar de forma concisa, pois o tema toca a parte fundamental da problemática do texto, a dialética quase que maçante entre o naturalismo e o positivismo, dos mesmos criadores de “Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?”, surge a discussão trabalhosa no mundo jurídico acerca de quem mais tem razão, guarde bem essa palavra, razão, voltaremos nela posteriormente. O Direito natural é uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica em volta do fenômeno jurídico, da mesma forma que a lei natural é uma das mais antigas tentativas de compreensão teórica em volta do fenômeno social comportamental. 

Durante a história do direito, o jusnaturalismo, em boa parte, confundiu-se com o próprio percurso da Filosofia do Direito e com seus direitos mais importantes, uma vez que esta se expressou desde os primórdios até o final do século XVIII, pela doutrina jusnaturalista. Os antigos teóricos, em miúdos, lecionam que o Direito Natural é uma linha de pensamento do qual existe um direito superior à legislação positiva estabelecida pelo soberano, de modo universal, questão defendida amplamente pelos filósofos Heráclito de Éfeso (535-470 A.C) e Sófocles (494-406 A.C.).

Em suas lições Sófocles relata uma clássica tragédia muito importante e amplamente difundida pelos estudiosos do tema: Antígona, irmã de Polinice não cumpriu com as leis do Rei Creonte, que instituía a proibição de enterrar o corpo de seu irmão, visto que este era considerado um traidor por se posicionar contra o poder monarca.

Assim, Antígona inconformada com tal proibição estabelecida pelo Rei, insistiu em sepultar seu irmão e foi surpreendida durante o enterro. Ocorre que em sua defesa, Antígona invocou as leis não escritas dos deuses, leis imutáveis à época, e que lhe permitiam proceder de tal forma (direito das famílias de enterrar os seus entes mortos).

Destarte, Antígona visava afastar a obrigatoriedade das leis constituídas pelo Rei, bem como fundamentar o direito positivo vigente sobre requisitos que vão além da manifestação da autoridade estabelecida, possibilitando o descumprimento das normas instituídas quando estas se chocarem com o princípio da justiça (direito superior).

A partir disto, comumente, define-se o Direito Natural como uma doutrina jurídica defensora da tese que o direito positivo deve ser objeto de uma valoração que tem como modelo um sistema superior de normas ou de princípios (direito ideal) que lhes conferem a validade. Por esta definição podemos citar algumas características[1] importantes do Jusnaturalismo:

  • A legislação vigente deve ser sopesada com base em determinados conteúdos superiores;
  • Tais conteúdos apresentam fonte de uma determinada categoria universal e imutável (ideal de justiça), devendo sempre se sobrepor às disposições formais da legislação.

Quando falamos de conteúdo, referimo-nos a uma ideia de justiça. Seus defensores como os autores Hervada, Maritain, Messner, Villey, Geroge, Boyle, Grisez e especialmente, Finnis[2], buscam ilustrar que as normas e princípios, independentemente de seu acolhimento positivo do direito, detém prioridade sobre as leis em vigor e o poder estatal que as efetiva. Ou seja, a legislação vigente somente será válida na medida em que suas disposições corresponderem às exigências de um ideal de justiça.

Com isso, temos que uma regulamentação positiva injusta da conduta humana não possui nenhuma validade, não sendo, portanto, de direito em sentido estrito, uma vez que por direito, temos apenas uma ordem jurídica válida, isso pelo o que os antigos teóricos afirmam.

No mundo jurídico, houve um momento de extrema importância na divisão entre leis, direito natural e o positivismo clássico. Antes, cumpre salientar que o positivismo já era difundido por filósofos como Hobbes em seu clássico “positivismo jurídico no Leviatã”, e por Augusto Comte, um de seus grandes idealizadores, na obra “Apelo aos conservadores” de 1855. Porém, no mundo jurídico — e aqui destaco – no mundo jurídico brasileiro, o positivismo mergulha de cabeça com a “Teoria pura do Direito” de Hans Kelsen.

Reafirmo que o intuito do trabalho não é adentrar ao espectro de uma obra ou outra, mas apenas pontuar um ou outro tema que nos remeta ao presente trabalho, até mesmo para não deixar demasiado cansativo para quem lê. Assim sendo, a Teoria pura do Direito de Hans Kelsen, reduz a expressão do Direito à norma jurídica, em outras palavras, Kelsen “purifica” o Direito, libertando-o de especulações filosóficas e sociológicas, separando o mundo do ser, do mundo do dever-ser, em uma visão Kantiana.

Ao longo de todos esses anos pós positivismo “puro” Kelsiano, diversos estudiosos do tema criticaram a abordagem feita por Kelsen, entre eles Eric Voegelin, seu próprio aluno, em seu ensaio “Justo por natureza”, e John Finnis, o maior pensador contemporâneo do jusnaturalismo, em seu livro “Lei natural e Direitos naturais”.

Assim, o Direito positivo surge como uma crença exasperada no poder do conhecimento científico, totalmente oposto à posição jusnaturalista, buscando objetividade na ciência jurídica, com juízos de fato e não de valor. “Direito positivo é o direito institucionalizado pelo Estado, é a ordem jurídica em determinado lugar e tempo” [3].

Faz-se difícil caracterização do modelo positivista visto que é pautado no ceticismo ético, mas suas nuances (positivismo ideológico, metodológico e formalismo jurídico) possui profundas menções do jusnaturalismo, aqui faço um adendo. Como toda novidade teórica, ainda mais vindo de outro país, o sistema brasileiro de pronto adotou o sistema positivista essencialmente no seu regramento, como se tudo que fosse novo e estrangeiro, fosse intrinsicamente melhor a ser empregado do que a utilização da ordem natural das coisas.

Continuando, existem duas palavras que são bases para contrapor totalmente o positivismo do jusnaturalismo: a palavra “ordem” e a palavra “justiça”.

Para Finnis, a ideia básica referente ao estudo do direito e da ordem social é que existem diversos bens humanos garantidos que são pressupostos para uma razoabilidade prática que somente as instituições podem cumprir. O filósofo jusnaturalista John Locke[4] também percebe em suas reflexões que o homem possui direitos desde nascença, como a vida, saúde e a liberdade, sendo de responsabilidade do soberano a garantia de tais direitos.

Por justiça, historicamente temos três referências a serem utilizadas:

  • a justiça deve ser a própria natureza (mundo antigo): por esta percepção, temos o Direito Natural Cosmológico, que denota a ordem natural, ou seja, através da natureza das coisas. Muito diferente das diversas leis humanas, podendo ser reveladas através da análise racional dos homens, sendo justas na medida em que as coisas que forem interpretadas de forma correta pelo homem. Como exemplo, temos o pensamento de Aristóteles (384 -324 A.C.). Para ele, existem dois tipos distintos de lei: a positiva (que determina a lei própria, a que cada um determina para si mesmo, podendo ser escrita ou não) e a natural (lei comum). Trata-se, portanto, da lei que tem validade universal, instituída como referencial para a lei positiva, que não poderá sob nenhuma hipótese contrariá-la para tornar-se válida. Podemos dizer que em consequência disto, o filósofo Aristóteles propôs a existência do justo e o injusto comum pela natureza, que todos participam ou aceitam, mesmo que não exista um pacto.
  • A justiça deve ser Deus (mundo medieval): é o chamado pela doutrina de Direito Natural Teológico, voltando-se para a percepção de que o mundo é organizado pela vontade de Deus, e suas leis divinas que governam, sendo cabível ao homem analisar racionalmente os desígnios de Deus. Como forte defensor dessa teoria, temos o Tomás de Aquino (1227-1274 D.C), que entende a razão divina como ordem geral do universo e esta ordem deve ser respeitada, sendo possível compreendê-la por meio da Revelação (monopólio da Igreja) e pela ponderação racional dos homens. Assim, além da lei divina (direito natural) e da lei eterna (provinda da Igreja), temos a lei comum (positiva). Para validá-las, a lei positiva deve estar em conformidade com a lei natural e consequentemente com a lei eterna. Ou seja, a validade da lei advém de uma lei justa oriunda da vontade de Deus.
  •  E por fim, a justiça através da natureza humana (mundo moderno nascente): intitulado pela doutrina de Direito Antropológico. Este tipo de direito, remete ao homem como o centro do universo, detentor de diversos direitos naturais inatos. Para esta posição, a fase divina cai por terra e o ser humano é exaltado frente ao poder da Igreja e do Estado. Assim, o Direito Natural representou uma grande importância da história sobre o princípio da Revelação e o absoluto poder do Estado moderno. Como princípio fundamental temos o fato de que o direito positivo apenas será validado se atender os direitos naturais inatos dos homens, constituindo um contrato manifesto de vontade (contratualismo). Como principal defensor, temos o filósofo John Locke (1632-1704), que em seus estudos, relata que o homem detém conjunto de direitos inatos como a vida, liberdade e propriedade, e que, não são transpassados para o corpo político. Ainda, assegura que será inválida toda lei que contrarie os direitos inatos, mesmo com a possibilidade de ser desobedecida por qualquer cidadão, visto que este possui o direito de resistência perante a lei injusta. Esta doutrina foi um marco de inspiração para a revolução americana e francesa, contribuindo para a formação do constitucionalismo moderno e do Estado de Direito.

Dessa forma, compreendemos que muito além das particularidades de cada posição defendida, o Direito Natural reconhece algo comum entre os três tipos: para ser validado um direito positivo, é necessário uma ordem superior de justiça, que poderá ser o cosmos, Deus ou os direitos naturais inatos.

O direito positivo, diferentemente, para validar o direito não requer uma norma ou princípio de justiça. Muito pelo contrário, para o positivismo jurídico, o direito vale ainda que seja injusto, ou seja, esta doutrina limita o direto à ordem estabelecida, amplamente discutido pela teoria monista.

Por outro lado, o jusnaturalismo é disciplinado pela teoria dualista, e compreendido em dois planos: a norma positiva vigente e as que nela devem ser respeitadas para serem consideradas boas, válidas e legitimas.

Ser positivista basicamente significa considerar o Direito como um método descritivo, livre de referências e valores morais. As primeiras reflexões sobre esta posição são encontradas no pensamento grego clássico e no cristianismo antigo e medieval. No entanto, Finnis critica duramente essa posição de autores como Bentham e Austin, uma vez que para ele, nenhuma pessoa pode definir algo sem participar, ele mesmo, desse processo e desconsiderar tudo o que ele entenda como ideal para o ser humano, descartando as exigências de razoabilidade prática[5]. Esta que consiste na distinção entre atos razoáveis ou desarrazoados, sendo possível construir um aglomerado de padrões morais gerais.

Para o direito positivo, o jusnaturalismo não possui nenhum significado real além de histórico e, portanto, sem nenhuma capacidade de elucidar a experiência jurídica de fato e esclarecer conceito do direito.

Entretanto, revela-se distorcida essa percepção visto que a teorização jusnaturalista persiste até os dias atuais, inclusive no positivismo de diversos pensadores, como H Kantorowicz[6] que adotou os valores do direito natural para sua concepção positivista. Como exemplo, podemos citar Talking Right Seriosly de Ronald Dworkin que sustenta veementemente a existência de direitos precedentes ao estabelecimento normativo.

Com isso, podemos dizer o Direito Natural é essencial, e que apesar de historicamente ter passado por toda polêmica, fato é que ao analisar os direitos humanos é definitivamente perceptível a influência do direito natural, sendo plenamente possível pontuar que apesar dos esforços para a sua aniquilação ainda não foi superado nos dias atuais.

Para terminar esse ponto, uma observação. Muitas vezes para que uma teoria tenha mais sucesso que a outra não é necessário apenas que a refute, mas também que eleve a teoria conflitante a uma categoria insignificante do ponto de vista teórico, para que o leitor ao estudar sobre o tema seja arrebatado inconscientemente. Dessa forma ocorre com o positivismo jurídico, que não refuta, por completo, a teoria naturalista, mas apenas põe o enfoque sobre um ponto crucial: a religião.

Ao condenar os Direitos naturais a uma crença ou uma confissão religiosa divina, o positivismo estritamente científico e antimoral retira o caráter racional do tema e aponta o leitor para um lado mais fantasioso que real. Isso em um momento onde o ateísmo toma uma proporção cada vez maior na sociedade jurídica, associar os Direitos naturais à Deus ou divindades ou qualquer coisa fora das mãos humanas, menosprezando a importância histórica e significativa dessa vertente e transformando-a em uma irracionalidade foi uma verdadeira jogada de mestre.


[1]  BEDIN, Gilmar Antônio. A doutrina jusnaturalista ou do direito natural: uma introdução. Direito em debate- Revista do departamento de ciências jurídicas e sociais da Unijuí.

[5] FINNIS, Natural Law and Natural Rights, 17. Doravante, apenas NL para Lei Natural e Direitos Naturais, trad. Leila Mendes, São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007.

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Opinião: O uso das videoconferências na Justiça do Trabalho

O acesso à Justiça é um dos direitos humanos fundamentais. A preocupação com o pleno acesso à Justiça por intermédio da prestação jurisdicional célere e efetiva como uma das principais formas de tutelar os direitos fundamentais nas relações de trabalho ainda é grande no Brasil.

A permanente evolução e modificação das relações de trabalho e dos meios de produção no mundo é uma realidade. A cada dia nos deparamos com novas tecnologias, muitas delas impulsionadoras de novos negócios e formas de trabalho. Assim como a tecnologia impacta as relações de trabalho e os modos de produção, também produz reflexos no processo judicial e no Poder Judiciário.

Manuel Castells destaca que “a era da internet foi aclamada como o fim da geografia” [1]. Como a internet é uma tecnologia da comunicação e como a comunicação é a essência da atividade humana, todos os domínios da vida social estão sendo modificados pelos usos disseminados da Internet” [2].

Não é diferente no Poder Judiciário brasileiro. A tecnologia proveniente dos novos meios informáticos (processo judicial em meio eletrônico, audiência por teleconferência, uso do aplicativo WhatsApp para negociar conciliações, realizar notificações, teletrabalho, etc.) desempenha papel fundamental não apenas na ampliação do acesso à justiça mas também na implementação de medidas que possibilitem o funcionamento do Poder Judiciário e a manutenção da prestação jurisdicional mesmo em tempo de pandemia da Covid-19, já que esta impõe a vedação de expediente presencial no Poder Judiciário como forma de evitar a disseminação do contágio.

Esse é o cenário em que nos encontramos na atualidade e é evidente que a continuidade dos serviços somente é possível porque o processo judicial tramita em meio eletrônico, o que permite que a demanda seja ajuizada perante a Justiça do Trabalho de qualquer lugar do Brasil. Para juízes, servidores e advogados, o processo judicial em meio eletrônico significa quebra do paradigma de necessidade de presença física em determinado local, que os processos sempre estão acessíveis pelo computador e que seu campo de atuação não precisa ficar restrito ao âmbito de uma Vara do Trabalho ou cidade.

Embora a previsão de realização de audiências por videoconferência não seja uma novidade, foi a necessidade de manutenção do isolamento social para evitar a contaminação pelo coronavírus que tornou urgente a utilização dessa tecnologia específica para viabilizar a continuação de uma parcela importante dos processos que tramitam na Justiça do Trabalho.

Antes da pandemia de coronavírus já havia prática de atos processuais à distância, com uso de imagem e voz, a exemplo da oitiva de depoimentos de partes ou testemunhas que estavam em lugar distinto daquele onde havia sido ajuizada a demanda judicial. Há notícias de realização de oitivas pelos aplicativos Whatsapp, Skype, entre outros.

Foi a necessidade de manter os serviços da área fim da Justiça do Trabalho em pleno funcionamento que levou a publicação de normas regulamentando a utilização das audiências telepresenciais ou por videoconferência.

Não faria sentido ter um processo judicial que se desligasse da forma física (autos de papel) e embarcasse na modernidade (um processo imaterial, acessível por meio da rede mundial de computadores e que se alinhasse com as avançadas tecnologias disponíveis no mundo) como é o processo judicial em meio eletrônico e não utilizar as ferramentas existentes e já previstas em lei para permitir a realização das audiências por videoconferência.

A realização de audiências por videoconferência é a melhor solução existente no momento para possibilitar uma continuidade mais ampla da prestação jurisdicional e a manutenção do isolamento social exigido em razão do perigo de contaminação pelo coronavírus.

Para demonstrar que a utilização de meios tecnológicos no processo judicial não é uma novidade ou extravagância, faremos um breve relato histórico em torno de algumas normas jurídicas que tratam do assunto.

Otávio Pinto e Silva [3] aponta que a Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984, que dispôs sobre a instituição dos então chamados juizados especiais de pequenas causas, previu utilização de tecnologia no §3º do artigo 14, que assim dispôs: Os atos realizados em audiência de instrução e julgamento deverão ser gravados em fita magnética ou equivalente (…)”. Em ambos os casos, não se trata de utilização de meio eletrônico, mas sim do uso de algum tipo de tecnologia no processo e para prática de ato processual.

Observe-se que o artigo 1º da Lei 9.800, de 26 de maio de 1999, abriu a possibilidade de prática de atos processuais por meio de “(…) sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar (…)”. Portanto, a lei não limitou a transmissão de dados e imagens à transmissão por fax, mas anteviu a possibilidade do surgimento de outras tecnologias que pudessem cumprir a mesma tarefa de maneira mais eficaz.

A Lei 10.259, de 12 de julho de 2001, previu que as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais poderão reunir-se pela via eletrônica na hipótese dos juízes componentes da respectiva turma serem domiciliados em cidades diversas (§3º do artigo 14 da Lei 10.259, de 12 de julho de 2001).

Trata-se de dispositivo moderno até hoje, pois embora já haja exemplos de sessões de tribunais em que os advogados das partes manifestam-se oralmente por meio de videoconferência, a lei dos Juizados Especiais Federais prevê expressamente a reunião dos julgadores por meio eletrônico, o que privilegia o princípio constitucional da razoável duração do processo, entre outros.

A Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, tratou especificamente da informatização do processo judicial.

Como anotam José Carlos de Araújo Almeida Filho [4] e Cláudio Mascarenhas Brandão [5], a polêmica sobre a utilização de videoconferência para realização de interrogatório de réu preso e outros atos processuais no âmbito do processo penal cessou com a publicação da Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009.

Por meio dela, os artigos 185 e 222 do Código de Processo Penal foram alterados. O §2º do artigo 185 do Código de Processo Penal passou a permitir, como excepcionalidade, que de ofício ou por requerimento das partes, sempre por decisão fundamentada do juiz, o réu preso possa ser interrogado por videoconferência ou “outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real”  o que demonstra que a legislação abriu caminho para novas tecnologias que possam se desenvolver além da videoconferência.

A medida é excepcional porque a lei determina quais são as situações em que a videoconferência pode e deve ser utilizada nos quatro incisos do §2º do artigo 185 do Código de Processo Penal [6].

Embora não mencionados por esses autores, são dignos de nota outras alterações promovidas também as disposições da Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009. Ao réu foi garantido o direito de acompanhar também por videoconferência os atos da audiência de instrução e julgamento previstos nos artigos 400, 411 e 531 do Código de Processo Penal (§4º do artigo 185 do Código de Processo Penal). Se o interrogatório ocorrer por videoconferência, é assegurado ao réu comunicar-se com o advogado que esteja no ato da videoconferência por via telefônica. Além disso, o defensor que está no presídio e o advogado que está na sala de videoconferência podem se comunicar por telefone (§5º do artigo 185 do Código de Processo Penal).

A previsão do §3º do artigo 222 do Código de Processo Penal é de que se a testemunha tiver domicílio fora da jurisdição em que deva ser ouvida, sua inquirição poderá ser realizada por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico em tempo real. Essa disposição é importante por diversas razões. Dentre elas, pode-se dizer que é importante porque: prestigia o princípio constitucional da duração razoável do processo; se preocupa com a economia processual; revela a tendência de extinção da remessa de cartas precatórias inquiritórias; e demonstra o uso eficaz de meios tecnológicos para encurtar distâncias e fazer valer o princípio da eficiência.

Consideramos a Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009, uma legislação avançada, pois antecipou a utilização de registros de sons e imagens em tempo real (no caso, a videoconferência) para prática de ato processual (audiência) em razão das peculiaridades do direito e processo penal. Ainda hoje aproximadamente dez anos após a publicação da Lei 11.900 estão em desenvolvimento sistemas para gravação de sons e imagens em tempo real para utilização no sistema previsto pela Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Por isso o pioneirismo da Lei 11.900.

O Código de Processo Civil brasileiro (Lei 13105, de 16 de março de 2015) criou várias disposições sobre a utilização da videoconferência em processos judiciais a exemplo dos artigos 236, §3º; 385, §3º; 453, §§1º e §2º; 461, §2º; e 937, §4º.

A videoconferência é uma ferramenta cada vez mais popular para evitar deslocamentos, cortar custos, facilitar e ampliar o acesso à justiça. Têm se tornado comuns as notícias sobre uso da videoconferência não só no âmbito criminal para salvaguardar a segurança de partes, juízes, servidores e advogados como também no âmbito cível e trabalhista para garantir o efetivo acesso à Justiça quando qualquer das partes encontra-se distante do local de realização da audiência, dentro ou fora do Brasil.

A aparente novidade que parece causar burburinho é a utilização ampla da videoconferência para realização das audiências na Justiça do Trabalho, sejam elas audiências de conciliação ou mesmo de instrução (o que implica tomar os depoimentos pessoais das partes e ouvir as testemunhas), como forma de manter o isolamento social exigido para evitar contaminação pelo coronavírus e dar prosseguimento aos processos judiciais que necessitem da realização de audiências como proposto pelo Ato Conjunto CSJT GP VP e CGJT n.006, de 4 de maio de 2020.

A realização de audiências por videoconferência possui vantagens e desvantagens. Como vantagens podemos apontar: manutenção do isolamento social necessário para evitar a propagação do coronavírus; possibilita o acesso à Justiça; possibilita que qualquer pessoa com acesso à internet participe da audiência por videoconferência, o que alarga o espectro do acesso à Justiça; prestigia, amplia e maximiza o princípio da oralidade, que é princípio específico do Direito Processual do Trabalho, já que a audiência por videoconferência pode ser reduzida a termo na ata de audiência ou mesmo gravada; torna ainda mais efetivo o princípio da desterritorialização criado pelo processo judicial eletrônico, pois não há necessidade de presença física em determinado local geográfico para qualquer pessoa (juízes, servidores, partes, advogados, testemunhas, peritos, etc.) participar da audiência; e amplia o princípio da imediatidade da prova pois qualquer magistrado de qualquer grau de jurisdição terá amplo contato com a prova oral coletada, já que a audiência por videoconferência é gravada.

No rol das desvantagens da realização das audiências por videoconferência podemos citar: necessidade de conexão com a internet; utilização de aparelho de telefone celular, tablet ou computador; problemas de conexão com a internet; e insegurança demonstrada por juízes e advogados quanto ao aspecto da realização da audiência de instrução e a garantia de que partes e testemunhas não ouvirão os depoimentos umas das outras.

De fato, os problemas de ordem técnica e material (problemas de conexão com a internet, acesso das partes e testemunhas a dispositivos que permitam acesso à videoconferência como telefone celular e computador, por exemplo) dependem de situações particulares incontroláveis pelo Poder Judiciário. Entretanto, como contra-argumento, vale lembrar que em notícia publicada no sítio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), afirma-se que no ano de 2013 metade dos brasileiros teve acesso à internet e 130,8 milhões de pessoas na faixa etária de dez anos ou mais de idade tinham telefone celular para uso pessoal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2013 (PNAD) demonstrou que dos 32,2 milhões de domicílios do país que tinham microcomputador (49,5% do total de residências), 28 milhões tinham acesso à internet. Segundo a pesquisa, esse número representa 43,1% do total de domicílios em todo o país. [7]

Os dados obtidos pela pesquisa elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística confirmam uma realidade vivida pela sociedade brasileira, na qual as pessoas utilizam cada vez mais a internet para realizar as mais diversificadas atividades: desde consultar o horóscopo, ler as notícias no jornal, ouvir músicas, assistir a vídeos no YouTube, realizar transações bancárias, adquirir produtos, até realizar consultas ao andamento de processos judiciais seja por meio de sítios na internet seja por meio de aplicativos disponibilizados pelo Poder Judiciário.

Portanto, pode-se considerar desvinculada da realidade a afirmação de que as pessoas teriam menos acesso às audiências por videoconferência porque não têm acesso à internet.

Quanto à preocupação quanto à validade ou incolumidade da prova oral colhida por meio de audiência por videoconferência vale lembrar que da mesma forma que não adianta pensar o processo judicial em meio eletrônico como mera reprodução do processo de papel, não se deve pensar na audiência por videoconferência como mera repetição daquilo que se praticava nas audiências presenciais.

Novas soluções, novas práticas devem ser implementadas, com ou sem o uso da tecnologia, para viabilizar a prática do ato de colher provas orais na audiência por videoconferência com a necessária segurança. Para isso propomos a realização de compromisso diferenciado das partes e testemunhas visando a assegurar que estejam livres da interferência de terceiros, seja de forma presencial ou por meio de utilização de aparelhos de transmissão de sons e imagens, além da criação de salas de videoconferência separadas de forma que fique assegurado que uma parte ou testemunha não ouvirá o depoimento da outra.

Importante lembrar que as partes podem celebrar negócio processual (artigo 190 do CPC), o que significa que elas próprias poderiam solicitar a realização de audiência por videoconferência ou convencionar sobre seus ônus e poderes, o que pode dizer respeito a requisitos específicos do depoimento de partes e testemunhas.

Em conclusão, a realização das audiências por videoconferência tem previsão legal desde 2015 com o advento do Código de Processo Civil e atende às necessidades de acesso à Justiça e continuidade da prestação jurisdicional. A prudência, colaboração e a criatividade de juízes, advogados e demais atores processuais contribuirá para que atravessemos esse momento excepcional e que a utilização de meios tecnológicos no processo judicial continue a ser utilizada de forma ágil, segura e prática.

 


[1] CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, edição digital setembro 2015, p. 172.

[3] SILVA, Otavio Pinto e. Processo eletrônico trabalhista. São Paulo, LTr, 2013, p. 52.

[4] ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo. Processo eletrônico e teoria geral do processo eletrônico: a informatização judicial no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.68.

[5] BRANDÃO, Cláudio Mascarenhas. Processo eletrônico na Justiça do Trabalho. In: CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Curso de processo do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2012, p. 754.

[6] “Artigo 185 § 2o Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II – viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III – impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do artigo 217 deste Código; IV – responder à gravíssima questão de ordem pública”. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 out. 1941. Disponível em: <https://goo.gl/j44Cxv>. Acesso em: 3/4/2018.

 é juíza do Trabalho titular da 1ª Vara do Trabalho de Sobral (CE) e doutora em Direito do Trabalho pela PUC-SP.

 é juiz do Trabalho substituto no TRT da 17ª Região e doutor em Direito do Trabalho pela PUC-SP.