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Vidas perdidas para Covid-19 pedem melhores respostas do Direito

Em paradigma da ordem natural das coisas, a morte tem o seu tempo devido, como um código de barras de validade da vida. Nada, entretanto, será possível categorizar quando de vidas interrompidas, no espectro trágico da atual pandemia. Rupturas que subtraem da ordem da vida a sua própria ordem, em dramáticas anti-relações com a concretude do natural.

As perdas desconformes, de tamanha dor, daqueles que partem antes, em partida que retira, estranhamente, a vida do seu lugar, por uma caminhada inconclusa de horizontes, constitui uma enorme perda de capital humano, o que tem enlutado a humanidade inteira.

Para a melhor compreensão do problema, os diálogos do direito com os desafios da pandemia estão a exigir a análise de suas causas mediatas e imediatas, com suas evidências de políticas públicas. Sobretudo, em suas repercussões jurídicas nas áreas do direito de família, dos direitos fundamentais, bioéticos, trabalhistas e cíveis, com atenções na defesa da vida.

São vidas interrompidas que, em instante súbito, desapartam o que viria existir, contrariando o ritmo essencial e ingente, quando a vida estava à frente. Nos significantes desses lutos diferentes, sem linguagem exata a tanto poder expressá-los, a fatídica realidade convoca-nos refletir quantas as décadas de vida estão perdidas no morrer, diante de tantas mortes prematuras, arrostadas pela Covid-19. O mundo está indigente das vidas de suas famílias.

Mudou o cotidiano, mudamos nós, o modelo civilizatório será outro; e os que morrem deixam seus legados, avisos e lições por um mundo mais responsável com o próximo. Suas vidas subtraídas reclamarão, na ordem social e no Direito, melhores respostas.

Vejamos:

(i) As relações sistêmicas (ADPF 671/20 vs. ADI 6362) — Sistemas de saúde colapsados ou não em (in)suficiência de leitos de UTI às necessidades naturais ou emergenciais dos pacientes têm sido uma questão primacial enfrentada.

Em nosso país, as discussões jurídicas controvertem quanto ao uso de leitos privados pelo sistema de saúde pública, no sentido seguinte:

a) pela unicidade do sistema de saúde (público e privado) no efeito de o S.U.S. ter um eficaz controle da totalidade dos leitos disponíveis, em sistema da chamada “fila única”, para a redução de óbitos (ADPF 671/2020, de 31 de março). A ação, onde se pretende a regulação pelo poder público da utilização dos leitos de unidades de tratamento intensivo (UTIs) na rede privada durante a pandemia, teve seguimento negado pelo Min. Relator Ricardo Lewandowski, em 03.04.2020, com agravo em tramitação [1].

b) pelas garantias de os beneficiários do sistema privado obterem o devido atendimento, pelas operadoras de planos de saúde, regulado pela Agência Nacional de Saúde, conforme os investimentos próprios nas suas redes assistenciais; atualmente afetados pela Lei nº 13.979/20, quando permite “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas”, com o pagamento posterior de “indenização justa” (ADI 6362/2020, de 02 de abril). [2] 

Antes de mais, a experiência pandêmica tem evidenciado, quanto bastante em perdas de vidas, que o direito à saúde, como um direito social fundamental e prioritário, é um dever do Estado, cumprindo-lhe efetivá-lo a contento (art 196, CF), com maiores investimentos permanentes e não sazonais e/ou precários. A figura jurídica da grave negligência pública induz diversas responsabilidades.

Em ser assim, a privatização da saúde é um plus, não podendo o Estado, através dela, elidir a sua continuada omissão em prestar, a custo próprio, serviços de saúde pública satisfatórios a todos. Há exatos quatro anos (05/2016), o Conselho Federal de Medicina, com base em dados do Ministério da Saúde, identificou em todo o país, apenas 40.960 leitos de UTI (1,8/10 mil hab.), certo que dessa soma, 20.173 estavam disponíveis ao SUS, a atender, no mínimo, 150 milhões de pessoas (razão de 0,95/10 mil hab.); e os demais 20.787 leitos, disponíveis pela saúde suplementar ou privada, para atender 50 milhões (razão de 4,5/10 mil hab.). Pior: constatou-se a má distribuição dos leitos (públicos e privados), quando “apenas 505 dos 5.570 municípios brasileiros possuíam pelo menos um leito de UTI”. [3]

Afinal, leciona o jurista português Jorge Reis Novais, “nosso sentido de justiça considera intocável: as situações-tipo em que essencialmente afectado o estatuto de igual dignidade de cada pessoa”.

(ii) As relações de subtração de vidas — Interessante pesquisa utilizando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) calculou o tempo de vida remanescente que as vítimas da Covid-19, depois dos cinquenta anos, perderam em média, desmistificando a preconceituosa ideia que “os idosos mortos por coronavírus teriam pouco tempo de vida mesmo antes da doença”. A pesquisa concluiu que: a) os homens tiveram, uma subtração de existência, em média, de 14 anos (sem doenças pré-existentes) ou de 13 anos (com comorbidades) e b) as mulheres, a seu turno, de 12 ou 11 anos, em respectivo. O gráfico do estudo indicou que quanto menor a idade e o número de comorbidades, mais tempo de vida o paciente que vem a óbito terá perdido. [4]

Ocorre que os indicadores da letalidade epidêmica não revelam dados suficientes que convivem com o trágico. Os registros que identificam agora uma multidão invisível que padece, antes do próprio vírus, da falta de uma assistência social adequada, encontram nas populações periféricas e na morte de idosos, as injúrias das desigualdades sociais e da solidão que já os desprotegiam, carecentes de um amor prestativo.

Tais relações de vidas subtraídas assinalam, em todas as faixas etárias, maior perda de vidas reprodutivas, implicando forte decesso na força de trabalho. Isso já sucede com taxas anuais de homicídio, considerando a Organização Mundial de Saúde (OMS) como epidêmicas as taxas de homicídio superiores a 10 homicídios a cada 100 mil habitantes. Ora bem. Os dados de morte na violência do Brasil vitimaram, dentre os 65,6 mil homicídios ocorridos em 2017, 35.783 jovens (entre 15 a 29 anos), significando “uma juventude perdida por mortes precoces”. [5]

(iii) As relações de força (o dom da vida desperdiçado) — Como se respeita o dom da vida quando as forças da morte vencem, diante das crônicas prestações deficitárias de saúde pública? Enquanto milhões de vidas foram salvas pelos epidemiologistas, a partir do primeiro (John Snow – 1813-58), com a invenção da vacina (sec. XVIII), a teoria microbiana das doenças (sec. XIX) e a descoberta dos grupos sanguíneos (Karl Landsteiner, 1900) para transfusões de sangue mais seguras; milhares de vidas são, todavia, perdidas, apesar dos avanços médicos. Muitos países agonizam até a morte, pela falência de cautelas nos investimentos sanitários, por insuficiência estatal com a proteção integral das pessoas e pela omissão iniludível ante as desigualdades sociais.

Em “O Novo Iluminismo”, Steven Pinker escreve que durante a maior parte da história humana, a mais devastadora causa de morte foram as doenças infecciosas e que os ganhos de longevidade são os espólios da vitória contra as doenças, fome, guerras, homicídios e acidentes.

No entanto, quanto mais contribui a ciência e os esforços médicos para a melhoria da condição humana, a contradição dramática é assinalada por Angus Deaton (Nobel de Economia, 2015), apontando que em partes do mundo “as pessoas vivem resignadas à péssima saúde e nunca sonharam que mudanças em suas instituições e normas podem melhorá-la”.

Ele vaticina, na sua obra “The Great Escape” (2013): “Mas, à medida que as pessoas passam a viver mais, o objetivo começa a ser atacar a ‘próxima’ doença – ‘próxima’ aqui significa a enfermidade que assolará as pessoas mais velhas com impacto letal maior que a ‘anterior’”.

Não há negar, por consabido, que as mutações continuadas dos coronavírus, ano a ano, conduzem a desafios que exigem sistemas de saúde mais aptos a enfrentá-los.

(iv) As relações senectárias — A relação dos idosos de risco com a segurança de suas sobrevivências reclama revisitação do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e maiores atenções com as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Neste sentido, o PL 1.888/2020, de 14.04.2020, dispõe auxílio financeiro emergencial pela União, de até R$ 160 milhões a essas entidades que desenvolvam programas de institucionalização senectária, sujeitos aos princípios do art. 49 do I.I.

Lado outro, o PL nº 105/2020, de 05.02.2020, com muita oportunidade, introduz o novo instituto jurídico da senexão ao Estatuto do Idoso, como medida protetiva a colocar o idoso de risco em família substituta.

(v) As relações fatídicas — O fatídico das vidas subtraídas situa-se em diversos fenômenos:

a) A prioridade dos pacientes em confronto com o déficit de vagas em UTIS, em face da maior ou menor gravidade, tem seus critérios de admissão e alta em unidades de terapia intensiva, tratados pela Resolução nº 2.156-CFM, de 28.10.2016 (D.O.U. de 17.11.2006), em cinco níveis de necessidades que especifica. [6] 

A Resolução nº 2.077/2014 – CFM dispõe sobre a normatização do funcionamento dos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência, bem como do dimensionamento da equipe médica e do sistema de trabalho. Determina o atendimento denominado de “vaga zero” de pacientes mais graves e a quantificação da equipe médica “conforme a responsabilidade de cobertura populacional e especialidades que oferece na organização regional”.

b) as mortes diante de outros déficits, como os da falta de unidades médicas, de médicos, de profissionais de saúde e de medicamentos, com a gravidade atual dos índices de mortalidade, reclamam urgentes políticas públicas com melhor legislação que regule o funcionamento da saúde pública provido de condições mínimas obrigatórias à satisfatividade dos desempenhos.

c) as mortes periféricas dos que não ingressam, agora, nos hospitais por outras enfermidades, desconsideradas urgentes, configuram flagrante evidência do mal-estar da saúde que vitimiza milhares de outras pessoas.

d) as mortes no binômio relacional pobreza-letalidade, por razões de infortúnios sociais nunca resolvidos, à míngua de saneamento básico, de condições de habitação, de higiene, em extensivo rol de carências, subestimam, sempre, a dignidade humana. Mais de dezoito milhões no país não tem acesso diário ao fornecimento de água e esse dado, por si, é ilustrativo na moldura da vitimização mortal dos mais pobres.

Em todas as hipóteses acima, a objetividade implícita dos dados de mortalidade, pelos eventos e suas causas, acrescenta preocupação para o direito e aos seus operadores, à míngua de uma ordem jurídica de saúde pública com eficiência operacional. Logo, o único caminho a trilhar é o de sempre, o da Constituição.

(vi) As relações laborais — O adoecimento ocupacional por profissionais em face da Covid-19 configura, sim, acidente de trabalho, independente de culpa e dolo do empregador, máxime constituir prova diabólica exigir-se comprovação do momento preciso da contaminação, ou seja, tenha sido no ambiente de trabalho. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal (em 29.04.20), suspendendo os artigos 29 (que não considera como doença ocupacional as contaminações pelo novo coronavírus) e 31 (limitador da atuação dos auditores fiscais) da Medida Provisória 927/2020, de 22 de março. Na esteira desse julgado, tem-se relevante a garantia de pensões previdenciárias aos familiares dos que venham a óbito, por força da Covid-19. [7][8]

(vii) As relações resilientes — Sucede, então, neste Mês de Maria, a esperança tornar-se muito mais intensa. E porque onde mora a esperança, nela sempre existirão os sonhos (e os dias futuros), a fé mariana nos conduzirá ao dever etimológico de professar a crise (do grego, “krísis”), como ruptura de um estado anterior no absoluto significado de superação.

O amanhã convoca a confiança na travessia para os dias que virão, em vida pulsante. Na experiencia humanitária da pandemia que vitima o mundo, há uma morte que não provoca morte: a humanidade de ontem fenece e uma outra subsequente surgirá diferente, bem melhor, em um novo iluminismo. “O tempo é quando”, reza o poema.


[1] Estudos iniciais, nessa linha, estimam, até esta última semana, que até 14,7 mil mortes seriam evitadas. Web: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2020/05/05/fila-unica-para-utis-poderia-evitar-147-mil-obitos-diz-estudo.htm?cmpid=copiaecola – Fonte: jornal “O Estado de São Paulo”. Acesso em 05.05.2020. Conferir decisão do STF. Web:

http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=440821&ori=1

[2] A ação, com o relator prevento pela ADPF 671/2020, Min. Ricardo Lewandowski, está com vistas ao AGU. Web: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886574

[3] Fonte: Conselho Federal de Medicina. Matéria a propósito da Resolução nº Resolução CFM nº 2.156/2016, que define critérios para melhorar fluxo de atendimento médico em UTIs.

Web: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26557:2016-11-17-13-28-46&catid=3

[4] Fonte: DANTAS, Carolina. G1. Globo.

Web: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/02/idosos-perdem-em-media-uma-decada-de-vida-ao-morrer-por-covid-19-diz-estudo.ghtml

[5] Atlas da Violência 2019: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com dados de 2017, coletados pelo Ministério da Saúde. Web: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48504184

[6] PUPO, Matheus. DAMIANI, André. Médicos precisam de ‘vacina jurídica’ para enfrentar colapso. In: Consultor Jurídico, de 05.05.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-05/damiani-pupo-medicos-vacina-juridica-colapso

[7] Decisão proferida pelo min. Marco Aurélio de Melo, no julgamento de sete ações diretas de inconstitucionalidade contra a M.P. 927/2020 (ADIs 6.342, 6.344, 6.346, 6.348, 6.349, 6.352 e 6.354). Web: https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/suspensos-artigos-mp-flexibilizam-regras-trabalhistas

[8] Ver, a propósito: ARANTES, Denise. RAMOS, Gustavo. “Covid-19: empregador é responsável por adoecimento ocupacional”. In: Consultor Jurídico, em 05.05.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-mai-05/arantes-ramos-empregador-responsavel-adoecimento-ocupacional


Resenhas bibliográficas:

DEATON, Angus. A Grande saída. Saúde, Riqueza e as origens da desigualdade. trad. Marcelo Levy; Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017, 1ª ed., 335 p.;

PINKER, Steven. O Novo Iluminismo. Em defesa da razão, da ciência e do humanismo. Trad, Laura Teixeira Motta e Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed., 2018, 686 p.;

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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Diretrizes interpretativas de crise nas relações privadas

A escalabilidade viral da Covid-19 é extrema. Alastrando pelo mundo e praticamente afetando todos os países, desencadeou consequências dramáticas: milhões de infectados e mais de cem mil óbitos até começo de abril de 2020. À patogenia atual somam-se antigas e novas causas: meio ambiente ainda desamparado por inadiáveis políticas públicas relacionadas à saúde sanitária; consumismo como racionalidade econômica; medidas prevencionistas e precautórias ainda não absorvidas pela população; aumento de habitantes por faixa etária (sobretudo, em idades mais avançadas); concentração acentuada de indivíduos por metro quadrado em grandes centros.Enfim, estão reunidas circunstâncias amplamente favoráveis à proliferação do patógeno.[1]

Soma-se a isso a incerteza: o ‘não-saber’ é verdadeiro revés. A tecnologia, distribuída em densidade informacional (conectividade), inovação (criação), amplitude (espaço), imediatismo (tempo) e acesso (custos), acaba testada por desafios que enquanto ao senso comum possam parecer singulares e simples (v.g., higiene pessoal e limpeza doméstica), ao saber científicos e apresentam repletos de incógnitas(vacinas, medicamentos, isolamentos, medidas profiláticas e terapêuticas).

Evidente que o temor (estatal, científico e comunitário) e os resultados catastróficos contabilizados e alusivos aos extremos flagelos dispersos irrompem complexas ‘irritações’ nas variadas esferas e instituições da sociedade.O sistema jurídico,a partir do abalo pela interceptação de causa externa, reage com as próprias ferramentas para correção de rumos e definição de diretrizes normativas (lei, aplicação e interpretação).As significativas funções teóricas do direito (conformação, transformação e garantia) são intensificadas e ajustadas aos tempos de crise.

Para tanto a experiência jurídica brasileira reúne o aproveitamento de dispositivos já consagrados internacionalmente, na legalidade constitucional e legislação infraconstitucional (especialmente as codificações nacionais), assim como novas proposições legislativas (delege lata delege ferenda) objetivando a disciplina das relações públicas e privadas sob forte impacto deste colapso global.

Vale dizer: para situações excepcionais alguns critérios ganham prevalência, contudo sem que haja alteração acentuada ou concentrada do Direito.Ao que parece, o mais prudente, é ter a altivez na clareza de que interpretação e dogmática têm grande protagonismo na solução das mais diversas intempéries e conflitos.

As manifestações no plano internacional são imprescindíveis, porquanto podem ser internalizadas ou mesmo levadas em consideração como modelos jurídicos.A recomendação da OMS classificando a Covid-19 como pandemia e, via de consequência, instalando transnacionalmente situação de ‘Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional’se aproxima da conhecida ferramenta de ‘alerta’, já captada no direito pátrio (rico tema de prevenção a desastres).[2] Na sua fatia, a OIT advertiu sobre aumento do número de desempregados, sugerindo pautas urgentes relacionadas à proteção dos empregados no ambiente de trabalho, implantação de políticas públicas de estímulo à economia e ao emprego, assim como incentivo a postos de trabalho e renda. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao seu tempo, emitiu recomendações relacionadas à promoção da vida, saúde e integridade das pessoas;às liberdades fundamentais e à defesa de grupos vulneráveis.[3]

No direito estrangeiro,colhe-se o exemplo da edição na Alemanha da Corona-Gesetz[4]que estabelece, afora outras medidas,no plano das obrigações,moratória em contratos relacionais de caráter essencial e em mútuos (tanto a benefício de consumidores e pequenas empresas), como suspende ordens de despejo e quebra de locação por falta de pagamento. Igualmente a Espanha, que optou em adotar regime flexível (também moratória) quanto aos contratos celebrados por consumidores, trabalhadores e famílias vulneráveis, inclusive com direito à resolução e contratos sem imposição de multa.[5]

Em determinadas situações excepcionais, em que o equilíbrio contratual é permeado por um abismo, rever as prestações não basta, e a moratória não pode ser descartada como uma possibilidade, observado sempre o devido processo legal, com a intervenção do Poder Judiciário.

No âmbito interno, a Lei 13.979/20 inaugura a fixação de medidas a serem adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (com remissão clara à OMS). O destaque inicial está ligado às diversas atividades dos poderes públicos para confrontação da crise, com relevo à maior flexibilidade nas aquisições de produtos e serviços referentes ao trato da pandemia (dispensa e aproveitamento de licitações), suspensão dos prazos processuais nos processos administrativos e de prazos prescricionais na aplicação de sanções administrativas, assim como ampliação e redefinição, ainda que temporária, de bens e serviços de natureza essencial.

Da mesma lei, entretanto, são perceptíveis inserções de dispositivos que tangenciam verticalmente situações jurídicas privadas tanto patrimoniais como existenciais: i) direito de propriedade (possibilidade de requisição de bens e serviços); ii) direitos de personalidade relativos ao corpo (realização compulsória de exames médicos, tratamentos, vacinação), iii) direitos de personalidade relativos à liberdade (isolamento e quarentena), iv) direitos de personalidade relativos a dados pessoais (coleta de amostras e identificação dos infectados).

Em trâmite no âmbito legislativo federal entre tantos projetos de lei, dois merecem distinção. O PL 1179/20 que institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), fixando marco temporal para incidência de efeitos contingenciaise atribuindo regramento ocasional a diversos institutos (resilição, resolução e revisão contratuais; locação urbana;prescrição extintiva e aquisitiva; condomínios edilícios; regime societário; concorrência e dívida por alimentos).E o PL 1997/20, na linha da legislação alemã, instituindo moratória em contratos com objetos essenciais, aí inclusos aqueles de natureza bancária, securitária e prestação de serviços de assistência à saúde em favor dos consumidores. Ambos projetos são complementares,haja vista as infindáveis situações a que estão expostos os brasileiros.

A atenta observação quanto às nuances narradas permite ao cientista jurídico concluir pela prevalência de certos critérios hermenêuticos que podem auxiliar no deslinde de inúmeras circunstâncias. Podemos assim sintetizar:

i. Maior intervenção do Estado nas relações particulares

A necessidade em adotar medidas de resposta à pandemia exige do Poder Público, como já visto, não apenas iniciativas legislativas e executivas, mas também fixação de ‘estado de calamidade’, potencializando,temporariamente (gize-se), o interesse público sobre o interesse privado, nas diversas situações jurídicas subjetivas existenciais e patrimoniais, inclusive incidindo sobre as liberdades individuais. Calha, porém, o aviso de que nestas circunstâncias as hipóteses de responsabilização do Estado por danos e prejuízos aos particulares são mais acentuadas, cabendo temperar a atuação administrativa mediante boa governança e prioridade na utilização dos fundos públicos e sociais.Para tanto alguns critérios podem ser operacionalizados quanto à restrição da liberdade: a) persecução de finalidade pública; b) demonstração de razoabilidade da restrição por quem a exige; c) não extinção ou desnaturalização do direito afetado; d) proporcionalidade nas medidas; e) igualdade substancial na repartição dos encargos à toda coletividade.[6]

ii. Modelo jurídico inibitório

A monetização de vidas ceifadas, desde que haja fundamento imputável de responsabilidade considerando a pandemia (ausência de leitos, políticas públicas de saúde, contágio e deveres de solidariedade), estratégia ex post, está condicionada à indicação do momento de violação do direito e ocorrência de danos. Necessário adotar, para melhor concretude aos direitos da personalidade e direitos fundamentais, medidas inibitórias (preventivas e precautórias)[7]que surtam efeito a partir da simples ameaça de lesão a direito, modelo ex ante, removendo ou cessando ilícitos, especialmente os futuros onde o estado anímico é desnecessário.

iii. Reconhecimento de vulnerabilidades

As recomendações internacionais respeitantes aos direitos humanos estrategicamente abonam o conceito de vulnerabilidade como falha setorial a fim de proporcionar a utilização de programas normativos e estatutários de empoderamento de pessoas sob circunstâncias de grave diferenciação circunstancial. Por isso, passou-se de única vulnerabilidade para plúrimas ‘vulnerabilidades’, onde há dimensões de fragilidade (mercado, família, espaço digital, cidades etc.)com ampla carência de priorização de promoção pessoal. No caso da Covid-19, a indicação de existência ‘grupo de risco’ reforça tipos vulneráveis, como cria outros (além de idosos, pacientes de asma, enfermidades hematológicas, doença renal crônica, imunodepressão, diabetes, hipertensão; e, ainda, obesos e fumantes).

iv. Dever de solidariedade

Numa situação crítica de larga e indefinida instabilidade as projeções individuais, mesmo que protegidas juridicamente, cedem à afirmação do dever de solidariedade, derivado da solidariedade arrimada valorativamente como escopo republicano (CF, art. 3º). Quando em projeção no direito privado, referido dever, encontra ampla coordenação com princípios normativos notadamente estruturais e funcionais (boa-fé; função social do contrato, da propriedade e da empresa; autonomia privada) permitindo melhor adequação dos institutos à situação emergencial (responsabilidade civil, contratos, propriedade, direito de vizinhança, família e sucessões etc.). Numa só expressão: o dever de solidariedade justifica e fundamenta as relações jurídicas privadas qualificadamente tanto pela cooperação coletiva quanto pela colaboração mútua entre partes e indivíduos.

Tais diretrizes interpretativas, insista-se, não são novas,mas são totalmente relevantes e indispensáveis em tempos de pandemia.

 


[2] Trata-se da lei nº 12.608/12 que institui a Política nacional de Proteção e Defesa Civil, especificamente no inciso IX do art. 5º quando trata dos alertas quanto aos desastres naturais.

 é Promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro.; professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ); professor permanente do doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense (PPGDIN); doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ; e diretor do Brasilcon – Instituto de Política e Direito do Consumidor.

 é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Uberlândia e diretor do Instituto de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).