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Reforma tributária deveria evitar novas distorções

A forma federativa de Estado representa importante mecanismo de controle do poder, dentro da ideia de que a melhor forma de evitar abusos em seu exercício é dividindo-o. Trata-se de uma divisão vertical, com propósitos similares aos que inspiram, no plano horizontal, a separação de funções em Executivo, Legislativo e Judiciário. Acontecimentos recentes — no Brasil e nos EUA — talvez estejam mostrando a importância de tais instituições, e o valor da autonomia de governos estaduais diante de um ente central cujo chefe nem sempre subscreve as melhores práticas democráticas.

Mas para que exista federação, é, por definição, essencial a autonomia dos entes que a integram. E, para tanto, não bastam disposições constitucionais que atribuam competências legislativas ou mesmo materiais a tais entes, ou seja, que lhes atribuam faculdades decisórias. Se tais entes federativos não dispuserem dos recursos financeiros necessários à concretização de suas decisões, permanecendo assim dependentes de recursos a serem enviados (ou não) pelo ente central, essa autonomia desaparece. E, com ela, a própria forma federativa que dela depende. Em termos mais claros: de nada adianta formalmente permitir que o Estado tome decisões de modo autônomo em relação à União, se para dar concretude a essas decisões o Estado depender de recursos da União, a qual só repassará as quantias correspondentes se as decisões estaduais forem de seu agrado.

Tais noções devem ser lembradas quando se discute uma reforma constitucional nas competências para instituir tributos, e nas regras que cuidam da divisão dos recursos arrecadados com tais tributos. Diante delas, dependendo de como a reforma venha a ser levada a efeito, ela pode ser simplesmente inconstitucional, dado que a forma federativa é uma das cláusulas de imodificabilidade do texto constitucional vigente.

Muito já se discutiu, nessa ordem de ideias, a respeito da constitucionalidade, ou não, das propostas de emenda em trâmite no Congresso Nacional. Não é o propósito deste artigo simplesmente renovar tais questionamentos. Almeja-se tratar, ou pelo menos suscitar o enfrentamento, do mesmo tema central, mas por outro ângulo: o da diferença entre o mundo ideal presente na cabeça de quem elabora ou reforma um sistema constitucional, e a realidade institucional que se efetiva, à luz da legislação infraconstitucional e da jurisprudência do STF em torno de tais textos, nos anos seguintes, ao sabor das pressões políticas e dos inúmeros fatores sociais que passam a atuar.

Já se fez isso, aqui na ConJur, em relação a dois pontos que nos parecem muito sensíveis, relativamente ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a saber, a restituição do indébito e os equívocos da jurisprudência em torno do art. 166 do CTN, e as restrições que se criam para o aproveitamento de créditos, na sistemática da não cumulatividade, os quais passam a ser vistos pelo Fisco como um favor, um benefício, concedido com muita má vontade aos contribuintes (clique aqui). Desta vez, neste artigo, pretende-se fazer o mesmo, mas relativamente à questão federativa.

Discute-se se a supressão da competência dos estados-membros e do Distrito Federal, relativamente ao ICMS, e dos municípios, relativamente ao ISS, seria contrária ou não à forma federativa de Estado. Em um extremo, há quem imagine que qualquer alteração no desenho das competências seria inconstitucional. E, no outro, quem defenda que quaisquer alterações são possíveis, desde que se respeite um equilíbrio na divisão das rendas tributárias. Nesse último caso, os tributos poderiam até ser todos federais, desde que o produto da arrecadação fosse equitativamente partilhado, sem a possibilidade de interferências do ente central sobre essa partilha. Em posições intermediárias, há quem reconheça a importância, também, do uso do tributo como instrumento de política fiscal, sendo essencial portanto que os entes federativos periféricos — estados, Distrito Federal e municípios — tenham também competência para legislar sobre o tributo, não bastando garantir-lhes parcela da respectiva arrecadação. Essa é a razão pela qual a PEC 45 introduz uma complicada sistemática de alíquotas estaduais e municipais para o IBS, paralelamente à alíquota federal.

Sem entrar tanto no mérito das divisões propostas, o que se pretende destacar, neste artigo, é a necessidade de se pensar não apenas em uma divisão equilibrada no presente, ou no momento da aprovação da emenda. Como se espera do texto constitucional alguma longevidade, é importante fechar as portas — e as janelas — que poderiam levar a uma deformação dessa partilha. Não basta dividir o bolo de forma equânime, é preciso garantir que, se ele crescer, a divisão dos excedentes se dê também de maneira equitativa. Do contrário, com o tempo, o que parecia equilibrado pode começar a não ser mais.

Nossa história recente nos dá exemplo eloquente disso. Em 1988, a preocupação com a limitação do poder levou a um incremento do federalismo brasileiro. Municípios ganharam mais autonomia, e as rendas tributárias foram fortemente descentralizadas. A União perdeu impostos importantes sobre combustíveis, energia, comunicação, minerais e transportes, cujas bases passaram a ser alcançadas pelo antigo ICM, cuja sigla para tanto ganhou um “S”. Passou, ainda, a partilhar com estados e municípios parcela expressiva da arrecadação de seus dois principais impostos, suas principais fontes de custeio à época, o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados. Em adição a isso, os estados ganharam um novo imposto, o adicional estadual do imposto de renda (AEIR). E, os municípios, um imposto sobre vendas a varejo de combustíveis (IVVC).

O bolo, conquanto bem dividido, poderia crescer, por certo. Mas isso só poderia ocorrer por meio de impostos residuais, que, se criados pela União, deveriam ter o produto de sua arrecadação partilhado com estados. O equilíbrio na divisão seria mantido.

Esse era o cenário ideal, visualizado pelos que projetaram o sistema constitucional tributário originalmente promulgado em 1988. Mas o que houve, na sequência? Pequenas e paulatinas modificações, que isoladas não pareciam ter grande relevo ou impacto, mas que alteraram completamente a divisão inicial. E, com ela, a efetividade dada ao princípio federativo. É com isso que os reformadores do presente devem estar preocupados, e não apenas com a forma como a divisão ocorrerá no momento inicial de vigência do novo texto.

A Emenda Constitucional 3, de 1993, suprimiu a competência para estados criarem o AEIR, e para os municípios criarem o IVVC. E, em adição, a carga tributária passou a ser majorada, substancialmente, com o uso de “contribuições”, não partilhadas com estados e municípios. Não se criaram impostos residuais, mas contribuições, das mais variadas (sub)espécies: de seguridade, sociais “gerais”, de intervenção no domínio econômico. Figuras que deveriam ser excepcionais tornaram-se a regra, notadamente em virtude da complacência do Supremo Tribunal Federal para com tudo o que ostentasse esse rótulo.

Com efeito, o STF afastou a tese da “parafiscalidade obrigatória”, permitindo que as contribuições de seguridade, previstas no art. 195 da CF, apesar do disposto no art. 194, e no 165, III, da CF, fossem arrecadadas pela Receita Federal, e destinadas à conta única do Tesouro Nacional. Eventual tredestinação dos recursos, em momento posterior, seria ilegalidade que não invalidaria a cobrança da exação. Essa foi a senha para a União usar e abusar, na sequência, dessa figura tributária não partilhada, sob o pretexto de que estaria com elas a atender uma finalidade constitucionalmente determinada.

Como quase toda atuação estatal pode ser enquadrada em alguma ação social, ou de intervenção na economia, praticamente tudo poderia ser instituído sob tal rótulo. Daí o agigantamento da arrecadação federal, e o encolhimento do orçamento dos entes periféricos. Como pá de cal, passou-se a desvincular as receitas da União obtidas com tais exações (DRU), de modo que nem mais os fins (sociais ou interventivos) estavam a tentar justificar os meios (Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Contribuições e federalismo. São Paulo: Dialética, 2004, passim). Tudo foi feito aos poucos, e cada mudança, sozinha, não parecia maltratar tanto a federação, embora todas juntas tenham levado a um efeito desastroso, que jamais seria aceito se efetivado integralmente e em uma mesma oportunidade.

E o que isso tem a ver com as propostas atuais de reforma? A pergunta é retórica pois a leitora naturalmente já percebeu, e sabe que quem não respeita a História está fadado a repetir erros do passado. Não há como aplicar o processo de tentativa e erro para aperfeiçoar as instituições humanas se as tentativas — e os erros — anteriores forem esquecidos.

Em primeiro lugar, vale recordar que só se admitiu a invasão das bases imponíveis de estados e municípios (venda de mercadorias e prestação de serviços) por meio de tributos federais, porque se estava diante de “contribuições”, figuras supostamente representativas de um novo perfil de Estado, destinadas a finalidades constitucionalmente definidas. Nessa ordem de ideias, se PIS e Cofins vão ser liquidificadas com impostos estaduais e municipais, para se transformarem em um IBS, elas devem entrar na equação não como algo que o orçamento fiscal federal está “colocando na negociação”, simplesmente porque essas exações, originalmente, não eram fontes de custeio do orçamento fiscal da União. Elas cresceram e invadiram as materialidades dos entes periféricos com o uso de uma justificativa que desaparece quando assumem a real identidade de imposto e passam a atender pelo nome de IBS.

E mesmo que a divisão do produto da arrecadação, no âmbito do IBS, seja feita de forma equânime, já no texto constitucional, é importante fechar as portas para que a carga não aumente, no futuro, apenas em benefício de um dos entes federativos, notadamente da União. Por mais equilibrado que seja o rateio do produto da arrecadação do IBS, se a União puder, na sequência, por exemplo, continuar instituindo contribuições, sejam elas “sociais gerais”, ou de “intervenção no domínio econômico”, ou “de seguridade”, e a contar com a complacência da Corte Suprema quanto ao uso de tais figuras, esse equilíbrio logo será (novamente) perdido. O uso das contribuições nas décadas de 1990 e 2000 dá o testemunho de um erro que não precisamos repetir, principalmente se quisermos preservar algo que, nos dias atuais, se está mostrando tão importante, que é a autonomia dos entes subnacionais.


O tema foi objeto de rica discussão em evento realizado no dia 2/6/2020 (Youtube Live), pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), sob a coordenação de Eurico de Santi e Isaias Coelho, com exposição de Aristoteles Camara e Lina Santin, e debates suscitados por Luiz Bandeira e Raquel Machado.

 é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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Isenção de IPTU para áreas esportivas descobertas em clubes de SP

O IPTU no Município de São Paulo subdivide-se em (i) Imposto Predial Urbano, que grava os imóveis construídos, e (ii) Imposto Territorial Urbano, que onera (ii.1) os terrenos sem nenhuma edificação e (ii.2) as parcelas de terreno consideradas não incorporadas à edificação (“excesso de área”), que ocorrem quando as edificações ocupam uma pequena porção do terreno em que se situam. Essa última situação – prevista no artigo 24, inciso III, da Lei paulistana 6.989/66, que institui o sistema tributário do Município (doravante referida como Lei do STM) — é a única hipótese em que ambos os impostos (o predial e o territorial) incidem em conjunto.

Essa lei isenta do imposto predial “os imóveis construídos pertencentes ao patrimônio das agremiações desportivas, efetiva e habitualmente utilizados no exercício de suas atividades, desde que não efetuem venda de ‘poules’ ou talões de apostas” (artigo 18, inciso II, alínea “h”, na redação da Lei municipal 14.865/2008). Trata-se de saber se certas áreas descobertas de clubes, destinadas à prática de esportes como o futebol, o golfe e o hipismo, atendem ao conceito de “imóveis construídos” da regra isentiva. O Fisco paulistano entende que não, para tanto recorrendo ao artigo 3º, inciso X, do Código Municipal de Obras e Edificações (Lei paulistana 16.642/2017), segundo o qual, “para fins de aplicação das disposições deste Código”, define-se como edificação a “obra coberta destinada a abrigar atividade humana ou qualquer instalação, equipamento e material”.

Considerando-as porções não construídas, aloca-as no numerador da fração conducente à apuração do eventual excesso de área (área total dividida pela área construída), o que — a depender da sua extensão e da zona da cidade em que localizado o clube (ver nota 2 supra) — pode levar à incidência ou ao aumento do imposto territorial.

Pois bem: como visto, o Fisco lança mão do Código de Obras e Edificações para definir “edificação” como “obra coberta” e negar a isenção. Contudo, o recurso à analogia — uso de conceito da lei edilícia para definir termo empregado em lei tributária — só teria lugar em caso de lacuna desta última, como decorre do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, especificamente em matéria fiscal, do art. 108 do CTN. Ocorre que a Lei do STM não é omissa nesse ponto, como se verifica de seu artigo 4º, que nada diz sobre a necessidade de cobertura: “para os efeitos deste imposto, considera-se construído todo imóvel no qual exista edificação que possa servir para habitação ou para o exercício de quaisquer atividades”.

Totalmente dispensável, assim, a remissão ao Código de Obras, sobretudo quando se considera que (i) a definição restritiva de “edificação” que este veicula vale somente “para fins de aplicação das disposições deste Código” (artigo 3º, caput) e que (ii) a sua extensão ao campo tributário levaria à exigência de tributo não previsto em lei, esbarrando na vedação do artigo 108, parágrafo 1º, do CTN.

Cabe aprofundar este segundo ponto. O conceito de “prédio” (na expressão Imposto Predial e Territorial Urbano), utilizado como sinônimo de “edificação” ou “construção” é técnico, pertencendo ao campo da Engenharia Civil, e também jurídico, vinculando-se ao Direito Civil. No primeiro âmbito, confira-se a NBR 13.531 da Associação Brasileira de Normas Técnicas, que trata da Elaboração de Projetos de Edificações — Atividades Técnicas: “2.1.2. Edificação: Produto constituído por conjunto de elementos definidos e articulados em conformidade com os princípios e as técnicas da arquitetura e da engenharia para, ao integrar a urbanização, desempenhar determinadas funções ambientais em níveis adequados. Exemplos: casas, hospitais, teatros, estações rodoviárias, ferroviárias, aeroportuárias, armazéns, estádios, ruas, avenidas, parques e monumentos”.

Os quatro últimos exemplos evidenciam a desnecessidade de cobertura — e os três últimos dispensam mesmo a verticalidade. Ora bem, as pistas de hipismo descobertas e os campos de futebol e de golfe têm finalidade própria e resultam da cuidadosa articulação de inúmeros elementos construtivos, todos sujeitos a rigorosos padrões de engenharia e de segurança definidos pelos órgãos técnicos e pelas federações estadual, brasileira e internacional dos citados esportes. A sua simplicidade é, portanto, aparente, escondendo estruturas complexas e altamente dispendiosas em sua estruturação e em sua constante manutenção.

Passando agora para o campo jurídico, importa observar que o Código Civil também estende o conceito de construção a obras de engenharia não cobertas, como provam os seus artigos 1.292 e 1.293, que regulam o direito de “construir barragens, açudes” e “canais”. Dessa forma, a manipulação dos conceitos de “prédio”, “edificação” e “construção” pelo legislador ou pelo Fisco municipais, para ampliar o campo de incidência do imposto territorial (ou restringir isenção aplicável ao imposto predial), esbarraria também no artigo 110 do CTN, segundo o qual “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal (…) para definir ou limitar competências tributárias”.

A bem dizer, toda ofensa ao artigo 110 do CTN atinge diretamente o comando constitucional que emprega o conceito de Direito Privado em tela — in casu, o artigo 156, inciso I, da Constituição (Imposto Predial e Territorial Urbano). Bem por isso, o STJ recusa recursos especiais fundados naquele dispositivo, afetando a discussão ao Supremo Tribunal Federal (1ª Seção, REsp. 1.168.038/SP, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJe 16.06.2010).

Esses argumentos têm sido acolhidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Relatando acórdão favorável ao Clube Hípico Santo Amaro, registrou o Desembargador Paulo Dimas Mascaretti que “a aparência de terreno ou gramado, na realidade, esconde uma verdadeira construção subterrânea, provavelmente com custo muito superior ao das edificações que são visíveis a olho nu, implicando obras de engenharia que envolvem terraplenagem, paisagismo, drenagem, pavimentação, entre outras, a fim de tornarem o terreno apto à prática do hipismo” (8ª Câmara de Direto Público, Apelação 9162641-69.2006.8.26.0000, j. 17.08.2011).

Isso também o que observou o Desembargador Arthur Del Guércio em favor do Golf Clube de São Paulo: “depreende-se da leitura dos laudos juntados aos autos que não há qualquer dúvida acerca de ser a área do campo de golfe efetivamente construída, embora sua aparência não dê essa ideia aos leigos. Segundo os laudos, a construção de um campo de golfe implica em verdadeira obra de engenharia que envolve aspectos de terraplanagem, obras hidráulicas e paisagísticas, com a finalidade de atender às exigências técnicas de um campo para a prática do esporte” (15ª Câmara de Direito Público, Apelação 994.06.052060-0, j. 29.07.2010; ver ainda: 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 11ª Câmara de Férias de Janeiro de 2004, Apelação 1.206.087-6, Relator Juiz Vasconcellos Boselli, j, 19.02.2004)

A conclusão é referendada por Roque Carrazza e Elizabeth Carrazza, para quem “também são prédios os campos de futebol, as pistas de atletismo, as quadras de tênis, etc., justamente porque exigem construções, ainda que apenas no nível do solo e do subsolo (tubulações, sistemas de drenagem, fiações elétricas, etc.)” (Os 50 anos do Código Tributário Nacional e sua função explicitadora do IPTU. In Revista do Advogado nº 132. São Paulo: AASP, dezembro de 2016, p. 110).

Cobrir as áreas esportivas a céu aberto, em alguns casos, seria uma saída até barata, mas que degradaria fortemente o bem estar e mesmo a saúde dos respectivos usuários. E que prejudicaria a própria cidade, por reduzir a permeabilidade do solo às águas pluviais, contrariando inúmeros dispositivos da Lei municipal 16.050/2014, que aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (artigos 6º, incisos X e XIII; 7º, inciso IX; 8º, inciso II; 265, parágrafo 2º; 268, inciso VII; etc.), como observa André Smith de Vasconcellos Suplicy em estudo inédito.

E tudo isso apenas para atender ao capricho do Fisco municipal, que se recusa a atribuir à expressão “imóvel construído” o sentido inequívoco que lhe dão a Engenharia e o Direito Civil.


https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/fazenda/servicos/iptu/index.php?p=2456

“Parte I, Título I, Capítulo II – Imposto Territorial Urbano

Art. 24. Para os efeitos deste imposto, consideram-se não construídos os terrenos:

(…)

III – cuja área exceder de 3 (três) vezes a ocupada pelas edificações, quando situado na 1ª subdivisão da zona urbana; 5 (cinco) vezes quando na 2ª, e 10 (dez) vezes quando além do perímetro desta última; (…)”

 é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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Não cumulatividade na incidência monofásica do PIS/Cofins

O princípio constitucional de não cumulatividade é uniforme quanto ao tratamento da plurifasia, ao exigir que seja compensado o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, tanto para o IPI (art. 153, § 3º, II) quanto para o ICMS (art. 155, § 2º, I). No que concerne à base de cálculo do PIS e da Cofins, o § 12, do art. 195, da Constituição determina a competência para instituir o regime de não cumulatividade conforme o setor de atividade econômica. Nada dispôs sobre o método.

Este dever de eliminação da “cumulatividade” do PIS e à Cofins define-se pela apuração das “receitas brutas” ou “faturamento”, mediante um sistema de “base-contra-base”, ao estipular os descontos (art. 3º, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03 e art. 15, da Lei nº 10.865/04), na forma de “créditos”, relativos aos elementos que ingressaram na sociedade empresária, como “insumos” e outros.

A Constituição está a exigir a aplicação de um eficiente sistema de abatimentos, de deduções dos créditos apurados nas operações anteriores para compensação com as seguintes. Nestas, a alíquota (conhecida como “de entrada”), a ser usada na apuração dos descontos (i), deverá ser a mesma alíquota (chamada “de saída”) a ser empregada na apuração do débito tributário (ii), pela determinação da base de cálculo (PIS: 1,65%; Cofins: 7,6%), salvo a aplicação de eventuais regimes especiais, relativos à apuração das bases ou mesmo das alíquotas aplicáveis. Por isso, efetuar a devolução de tributos pagos nas etapas anteriores e que se agregaram ao preço dos bens ou serviços, mediante aproveitamento de créditos do regime não cumulativo, é dever que se impõe como garantia dos princípios de eficiência administrativa e da não cumulatividade.

O modelo de tributação das contribuições ao PIS e a Cofins assume a não cumulatividade como sua regra geral. Ao lado desta, tem-se o regime cumulativo e outros regimes especiais, como a substituição tributária ou mesmo o tratamento monofásico em determinadas cadeias, por concentração de alíquotas.

Importante destacar que não cumulatividade não é benefício fiscal, mas mecanismo técnico de garantia da desoneração da cadeia, pela tributação do valor agregado, mediante redução do tributo aplicável, mesmo quando sob a forma de monofasia, sem qualquer privilégio ou vocação extrafiscal.

O regime de tributação monofásica ou concentrada de recolhimento do PIS e da Cofins unifica em uma só alíquota o valor das contribuições que o legislador admite, por presunção absoluta, que seria uma média da arrecadação da cadeia plurifásica, com atribuição de alíquota-zero para as etapas seguintes.

O regime de concentração de alíquotas aplicável ao primeiro elo da cadeia de plurifasia foi o meio encontrado pelo legislador para garantir a cobrança dos tributos devidos por toda a cadeia econômica, com o propósito de garantir eficiência arrecadatória e menor impacto nos preços, além de evitar sonegações.

Dizer monofásico não equivale a afirmar que só há uma incidência na cadeia de circulação e produção das mercadorias. Aplicada a incidência monofásica, não se elimina a continuidade da cadeia plurifásica. Ao longo desta, aplicar-se-á, a cada etapa, uma “alíquota-zero” ou outro tratamento jurídico que afaste o ônus tributário, até chegar ao ato último da aquisição, que se pode dar como venda direta ao consumidor ou na forma de insumo.

Assim, a tributação monofásica, à semelhança da substituição tributária, propõe-se a garantir a arrecadação das contribuições ao PIS e à Cofins e evitar distorções econômicas eventualmente acarretadas pelo não recolhimento desses tributos, especialmente em cadeias muito pulverizadas, como é o caso dos setores de combustíveis, medicamentos, cosméticos, produtos de higiene, de produtos farmacêuticos, do setor de bebidas ou mesmo do setor automotivo.

Sem presumir a ocorrência de fatos geradores futuros, mediante a adoção de bases de incidência fictícias (a partir da determinação de Margens de Valor Agregado – MVA), como na hipótese de substituição tributária, optou o legislador, pois, no estágio inicial da cadeia, por uma concentração de alíquotas fixas, para garantia da arrecadação do PIS e da Cofins.

Portanto, a não cumulatividade pode ser igualmente efetivada pela tributação monofásica ou concentrada, porquanto, entre as distintas operações tributáveis em uma cadeia de produção e comercialização, a lei pode eleger um elo para concentrar a tributação.

Desse modo, a tributação monofásica, que seria a negação da tributação em cadeia (cumulativa ou não cumulativa), na espécie, alinha-se à não cumulatividade para servir como instrumento hábil à antecipação dos tributos, com carga tributária compatível com o que seria a arrecadação própria do circuito plurifásico, segundo critérios pertinentes à política fiscal que se pretenda perpetrar na ordem econômica e no setor designado.

Eis porque a tributação monofásica aplicada ao primeiro sujeito de uma dada cadeia de consumo pode perfeitamente conviver com a atribuição de direito de crédito aos sujeitos que se encontram na etapa subsequente, haja vista a agregação do tributo ao custo do produto ou do serviço.

De fato, a lei somente exclui, de modo expresso, a tomada de crédito, quando não há tributação na operação de entrada e na saída (salvo os casos de créditos presumidos) a saber:

“Art. 3º, (…) § 2º Não dará direito a crédito o valor: (Redação dada pela Lei nº 10.865/04) (…)

II – da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição. (Incluído pela Lei nº 10.865/04)”.

Deveras, desde que haja tributação nas etapas anteriores, afirma-se como inafastável o direito à tomada do crédito. E, de outra banda, somente não dará direito ao crédito a aquisição de produtos ou serviços quando estes forem isentos, sujeitos à alíquota-zero ou não alcançados por estas contribuições.

Para os fins da tomada do crédito importa unicamente que a operação anterior seja tributada. Portanto, mesmo nas operações nas quais a “saída” de mercadorias se der com suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência, a restituição dos créditos será sempre obrigatória.

Neste sentido, o art. 17 da Lei n. 11.033/2004 não poderia ser mais esclarecedor, ao confirmar a tomada do crédito nestes casos de saídas não tributadas, com prevalência da regra da tomada do crédito pela operação precedente tributada. Não é demasiado repetir o regime normativo assinalado:

“Art. 17. As vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota 0 (zero) ou não incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins não impedem a manutenção, pelo vendedor, dos créditos vinculados a essas operações.”

Essa regra confere ao contribuinte o direito subjetivo, em cada apuração da base de cálculo do tributo devido, ao abatimento do tributo cobrado na operação anterior, como forma de assegurar o cumprimento dos valores inerentes ao princípio de não cumulatividade.

Qualquer vínculo de exclusividade entre o artigo 17 da lei nº 11.033/04 e o REPORTO deve ser afastado de plano, haja vista a sua natureza interpretativa, de modo que esse dispositivo apenas esclarece que a realização da não cumulatividade independe de benefícios fiscais nas operações de saída, afora o fato de a Lei nº 11.033/04 disciplinar diversas outras matérias, a demover o argumento de natureza puramente topográfica. Em verdade, a Lei nº 11.033/04 não trata apenas do REPORTO, mas de diversos temas relacionados à legislação tributária, com alterações em matérias variadas da incidência das contribuições PIS e Cofins, tais como tributação do mercado financeiro e de capitais.

Vê-se, o revendedor que adquire os bens diretamente do produtor ou importador, com tributação monofásica, permanece enquadrado no regime não cumulativo. E o fato de as vendas subsequentes se sujeitarem à alíquota-zero não tem o condão de inibir o desconto dos créditos das aquisições anteriores.

O artigo 17 da lei nº 11.033/04, como assinalado, autoriza a tomada de créditos de PIS e Cofins vinculados às vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota zero ou não incidência da Contribuição ao PIS e da Cofins. Ora se o beneficiário do REPORTO deve destinar os bens adquiridos ao seu ativo imobilizado, não haveria qualquer sentido, para o usuário deste regime, em adotar medida que opera com a expectativa de circulação de bens ou serviços.

Ora, após a vigência da Lei nº 10.865/04, não há dúvidas acerca da possibilidade de cômputo da receita proveniente da venda de produtos sujeitos à incidência monofásica, ainda que submetida à suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência das contribuições ao PIS e à Cofins, no cálculo do rateio proporcional de créditos em relação às referidas contribuições, apurado mensalmente e que impacta diretamente no volume de créditos a ser apropriado efetivamente pela pessoa jurídica.

O princípio da não cumulatividade do PIS e da Cofins, como qualquer outro “princípio”, tem o seu âmbito normativo, e, por isso, todo o ordenamento deve assegurar a sua efetividade e proteção (efeito de bloqueio). Assim, o direito de crédito deve ser interpretado com meio para imputar a máxima realização da não cumulatividade (efetividade); e qualquer restrição somente pode ser oposta por lei, quando não macule o conteúdo essencial do direito à não cumulatividade.

A própria Receita Federal do Brasil tem reconhecido a compatibilidade entre o regime de incidência monofásica e a apuração não cumulativa de PIS e Cofins, assentando a diferença entre o regime de incidência (ou de recolhimento) monofásico e a sistemática de apuração das referidas contribuições, conforme se vê em algumas Soluções de Consulta.

De igual modo, o Ato Declaratório RFB nº 4, de 07 de junho de 2016, esclareceu, com caráter vinculativo para a Administração, que a partir de 1º de agosto de 2004, com a entrada em vigor dos arts. 21 e 37 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, as receitas decorrentes da venda de produtos submetidos à incidência concentrada ou monofásica do PIS e da Cofins estão, em regra, sujeitas ao regime de apuração não cumulativa das referidas contribuições, salvo as disposições contrárias estabelecidas pela legislação.

Por força destes valores da não cumulatividade, a interpretação da tipicidade das hipóteses de fatos geradores de créditos deve conferir máxima efetividade ao princípio da não cumulatividade (ou otimização, no sentido atribuído por Robert Alexy), cuja restrição aos referidos fatos somente pode ser introduzida por lei expressa, o que não ocorre na espécie.

Logo, só há “proibição” da tomada de crédito quando a lei, não atos administrativos, o faça expressamente. Se não está proibido, interpreta-se de modo favorável ao direito de crédito, por força do comando constitucional. Como a não cumulatividade é um princípio constitucional (art. 195, § 12 da CF) exigido para vincular os tributos PIS e Cofins, e como estão em vigor os regimes gerais e especiais que prescrevem os meios para efetividade da não cumulatividade, toda e qualquer interpretação das leis somente pode concluir pelo direito de crédito, excetuado os casos de expressa proibição legal.

Em conclusão, a manutenção da cumulatividade nas cadeias submetidas ao regime monofásico de recolhimento do PIS e da Cofins, mediante a negativa de desconto de créditos às etapas intermediárias cujas aquisições sofreram a incidência concentrada das referidas contribuições, equivale a um aumento disfarçado da carga tributária imposta às empresas integrantes dos setores sujeitos à tributação monofásica, cujo ônus econômico fatalmente será repassado – senão todo, em grande parte – ao consumidor final.

Numa interpretação conforme a Constituição dos artigos das Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03, em relação à não cumulatividade na apuração do PIS e da Cofins, a aplicabilidade do regime de concentração de alíquotas impõe o direito ao reconhecimento do crédito na operação seguinte da cadeia. Situação diversa, implicaria contrariar o art. 150, II da CF (princípio da não discriminação), na medida que seriam tratados em modo diferente aqueles que suportam tributação nas etapas anteriores e estão desonerados nas de saída, por alíquota-zero.

Negar ao contribuinte o aproveitamento de saldos credores de PIS e Cofins, acumulados em virtude de vendas submetidas à alíquota-zero, porquanto inseridas na cadeia de incidência monofásica das referidas contribuições, com tributação concentrada na fase inicial do ciclo produtivo, implica afronta aos princípios da não cumulatividade e da não discriminação, além de afetação ao próprio princípio-garantia da segurança jurídica.


Ver: TORRES, Ricardo Lobo. A não cumulatividade no PIS/Cofins. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 53-74; TÔRRES, Heleno Taveira. Monofasia e não cumulatividade das contribuições ao PIS e COFINS no setor de petróleo (refinarias). In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.); CATÃO, Marcos André Vinhas (Coord). Tributação no setor de petróleo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 179-206; GRECO, Marco Aurélio. Não cumulatividade no PIS e na Cofins. In: PAULSEN, Leandro (Coord.). Não cumulatividade do PIS/PASEP e da Cofins. São Paulo: IOB Thomson; Porto Alegre: I.E.T. – Instituto de estudos tributários, 2004, p. 101-122; TOMÉ, Fabiana Del Padre. Natureza jurídica da ”não cumulatividade” da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS: consequências e aplicabilidade. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 535-555.

Cf. MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2012, p. 453 e seguintes.

Para Alexy, os mandamentos de otimização comportam a indeterminação, se não dos pressupostos de aplicação (existência ou não de fato jurídico), da consequência jurídica, porquanto nas regras isso viria bem determinado, enquanto nos princípios haveria um amplo campo de possibilidades. Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 153.

 é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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Interpretação literal das isenções é garantia de segurança jurídica

Questão ainda intrigante para a doutrina consiste em estabelecer a correta e adequada interpretação do art. 111 do Código Tributário Nacional (CTN), a saber: “Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.” Afinal, pode-se ainda falar no emprego de um método como “interpretação literal” às isenções e reduções de base de cálculo ou de alíquota? Interessa-nos as modalidades de “exclusão” do crédito, que consistem em isenção ou anistia e seus equivalentes, como são aqueles do art. 150, § 6º da Constituição. Vejamos como o âmbito normativo do art. 111 comporta-se em relação a estas hipóteses.

Vale antecipar que a isenção corresponde a categoria dogmática, e não lógica, intimamente relacionada à fenomenologia da incidência tributária, Assim, uma vez que são diversas as concepções relativas a isenções, o são também as controvérsias relativas à categorização da redução de base de cálculo com espécie de isenção (parcial).

Em termos lógicos, “isenção” e “redução de base de cálculo”, diferenciam-se porque na “isenção” não há incidência, logo, não se verifica a ocorrência do fato jurídico tributário e formação da respectiva obrigação tributária, com atribuição do dever de pagamento do débito tributário, ao tempo que persiste a incidência na redução da base de cálculo, com formação de obrigação tributária. É o que parcela da doutrina chama de “isenção parcial”. A isenção e a redução de base de cálculo atuam em plena simetria, por isso, em face do quantum reduzido, pode-se afirmar que estas são medidas funcionalmente equivalentes.

Dada a controvérsia conceitual quanto à separação entre a isenção e a redução de base de cálculo, com o fim de avaliar as variações de doutrinas sobre ambas as formas de “exclusão” do crédito tributário, importa sempre destacar a tese que se adota.

A isenção como dispensa legal do pagamento de tributo consiste no capítulo da doutrina dita “tradicional”, que tem suas origens no anteprojeto do Código Tributário Nacional, de responsabilidade de Rubens Gomes de Sousa. Para essa corrente, a isenção corresponderia à “dispensa legal de pagamento de tributo devido”. Nesse sentido, como anota aquele Autor, “na isenção, não estrutural ao tributo, a obrigação tributária ocorre, mas não é cobrável porque a lei dispensa o pagamento do crédito correspondente”.

De outra banda, José Souto Maior Borges observa que a norma que isenta tem caráter limitador ou modificador, porquanto “o efeito principal e a finalidade última da isenção é o de impedir o nascimento do débito tributário e pois necessariamente da obrigação tributária”. Para ele, a isenção corresponde a uma espécie de não-incidência legalmente qualificada, porquanto relativa à pessoa ou ao objeto colocado, por lei ordinária, “fora do campo de incidência”, em caráter excepcional e provisório.

Como observa Paulo de Barros Carvalho, por ausência de critério da hipótese ou do consequente, haverá isenção tributária, com seus efeitos de estilo:

“O que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do consequente, podendo a regra de isenção suprimir a funcionalidade da regra-matriz tributária de oito maneiras distintas: (i) pela hipótese: i.1) atingindo-lhe o critério material, pela desqualificação do verbo; i.2) mutilando o critério material, pela subtração do complemento; i.3) indo contra o critério espacial; i.4) voltando-se para o critério temporal; (ii) pelo consequente, atingindo: ii.1) o critério pessoal, pelo sujeito ativo; ii.2) o critério pessoal, pelo sujeito passivo; ii.3) o critério quantitativo, pela base de cálculo; e ii.4) o critério quantitativo pela alíquota.”

Respeitáveis setores doutrinários, aqui e alhures, que partem de premissas similares àquelas adotadas por Paulo de Barros Carvalho, constatam que a técnica jurídica da isenção parcial é a mesma daquela total, de modo que não tem o condão de obstar a caracterização da redução da base de cálculo como isenção. Logo, a redução de base de cálculo, apesar de não afastar a incidência tributária, à semelhança da “isenção”, na parte reduzida, deve receber tratamento de equivalência funcional entre ambos.

Ultrapassada essa questão, cabe-nos verificar em qual sentido as regras interpretativas de isenções ou de exclusão, conforme o texto do art. 111, do CTN, podem advir de uma interpretação literal das leis tributárias.

Como expressão de dirigismo hermenêutico, temos as regras voltadas aos resultados da interpretação jurídica. Assim, o intérprete pode chegar a um resultado mediante a interpretação, quando o regime normativo assim o oriente para: (i) interpretação especificadora, que se apresenta como expressão da interpretação literal ou gramatical; (ii) interpretação restritiva, nos casos em que os resultados da interpretação especificadora pudessem ser desfavoráveis aos interesses do Estado; ou (iii) interpretação extensiva, manifestada na intenção do intérprete de ampliar o sentido da norma para além de uma interpretação especificadora, com a finalidade de alcançar situações ou propriedades que aparentemente não estariam contidas no enunciado interpretado.

No Brasil, o legislador fez uma escolha para interpretar as normas de isenções tributárias, que foi o emprego do art. 111, II do CTN, como dirigismo hermenêutico para estabelecer uma interpretação literal destas leis. Este é o seu sentido. Não quer dizer que se faça interpretação do texto por literalidade. Até porque a própria compreensão do que seja isenção ou redução de base de cálculo, como visto acima, já exige um esforço de hermenêutica especificadora.

O que este texto prescreve, por razões de segurança, é o emprego de uma interpretação “literal” como equivalente de “interpretação especificadora”, para evitar que o Fisco possa fazer uso de “interpretação extensiva” das restrições ou limites das isenções, para restringir seu aproveitamento; ou mesmo de “interpretação restritiva”, no que concerne ao acesso e alcance da isenção.

A literalidade das isenções propõe-se a uma interpretação especificadora do texto. Sem dúvidas, este “método” constitui o ponto de partida para uma atividade de interpretação das normas tributárias, i.e., em modo restritivo, o mais limitado possível, pela intratextualidade à qual se reduz, evitando-se a contextualidade e a intertextualidade tão próprios da interpretação extensiva.

A interpretação extensiva da decisão administrativa ou da judicial, pode significar uma tentativa de ampliar o campo material de incidência do tributo, por mero dirigismo interpretativo. Assim como a restritiva busca reduzir o acesso ao benefício da isenção. O art. 111 do CTN, neste sentido, concorre para a afirmação do princípio da certeza do direito, ao exigir uma interpretação “literal”, cujo resultado há de ser especificador do conteúdo da lei isentiva.

Como, por exemplo, nos países anglo-saxônicos, de um modo geral, e por incrível que possa parecer, o princípio vigente é o de que a tributação só pode se basear numa legislação suficientemente precisa e de alcance claramente definido, devendo-se interpretar literalmente suas disposições. No Reino Unido, os juízes, e, sobretudo, a Administração, têm que usar de uma interpretação exclusivamente restritiva. Quando o recurso ao método teleológico é reclamado, numa pretensão de aperfeiçoamento da lei, considera-se tal atitude como uma espécie de “invasão” nos direitos do legislador.

O mesmo ocorre com os EUA, Canadá e Nova Zelândia que procuram restringir ao máximo a chamada interpretação criativa, mesmo que, em contrapartida, busquem um constante aprimoramento das formulações normativas. Na Bélgica, existe a obrigação imperiosa de interpretar restritivamente as regras do direito tributário, cabendo, em caso de dúvida, benefício ao contribuinte. No Japão, o artigo 84 da respectiva Constituição, no capítulo que trata das limitações ao poder de tributar, afirma a necessidade de uma interpretação a mais restritiva possível das normas impositivas.

Ao assim determinar, o legislador empregou uma locução imperativa com sentido de ordenar um comando a ser seguido, sem dar opções à aplicação de interpretação diversa da indicada no enunciado. O modelo de interpretação especificadora pretende dirigir a aplicação dos incentivos nos limites entabulados pelo legislador, sem restrição ou ampliação, conforme o valor da certeza.

Não é outro o modo de compreensão de Aliomar Baleeiro sobre o sentido desta “interpretação literal”, a saber:

“Podemos então, inspirados nos escritos de Hart sobre a textura aberta do Direito, propor uma interpretação para a norma de interpretação contida no art. 111 do CTN. Esse parece ser, no nosso entender, o sentido da locução ‘interpretação literal’ no contexto da mencionada disposição normativa: interpretação literal é toda aquela que, tendo como base o núcleo incontroverso dos enunciados normativos estabelecidos pelo legislador e como limite intransponível o conjunto de todos os sentidos compreendidos na zona de penumbra ou incerteza desses enunciados, estabelece uma norma jurídica obrigatória à luz de um caso concreto ou de um conjunto de casos semelhantes”. (grifos nossos)

E, de igual modo, para Rubens Gomes de Sousa:

“O artigo 111 é regra apriorística, e daí o seu defeito, que manda aplicar a interpretação literal às hipóteses que descreve. A justificativa ou, se quiserem, apenas explicação do dispositivo, é de que as hipóteses nele enumeradas são exceções às regras gerais de direito tributário. Por esta razão, o Código Tributário Nacional entendeu necessário fixar, aprioristicamente, para elas, a interpretação literal, a fim de que a exceção não pudesse ser estendida por via interpretativa além do alcance que o legislador lhe quis dar, em sua natureza de exceção a uma regra geral”.

O Código Tributário Nacional, ao criar essa exceção à regra geral da intepretação “livre”, ao exigir que a interpretação deva ser literal no caso dos textos de incentivos, ou seja, sem expansão de significação, estatui uma proteção ao contribuinte, o que poucos dão exato sentido. E esta proteção consiste em não se suprimir direito ao benefício, com redução das suas possibilidades.

Nesse sentido, diz Hugo de Brito Machado, verbis:

“Há quem afirme que a interpretação literal deve ser entendida como interpretação restritiva. Isto é um equívoco. Quem interpreta literalmente por certo não amplia o alcance do texto, mas com certeza também não o restringe. Fica no exato alcance que a expressão literal da norma permite. Nem mais, nem menos. Tanto é incorreta a ampliação do alcance, como sua restrição.”

O entendimento do STJ segue a mesma, e correta de garantismo do contribuinte, conforme se verifica dos seguintes Acórdãos abaixo transcritos, verbis: “6. A imposição da interpretação literal da legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção (artigo 111, inciso II, do CTN) proscreve tanto a adoção de exegese ampliativa ou analógica, como também a restrição além da mens legis ou a exigência de requisito ou condição não prevista na norma isentiva.”

Em outro julgado: “6. Não cabe ao intérprete restringir o alcance do dispositivo legal que, a teor do art. 111 do CTN, deve ter sua aplicação orientada pela interpretação literal, a qual não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma.” Ou ainda: “4. A interpretação a que se refere o art. 111 do CTN, é a literal, que não implica, necessariamente, diminuição do seu alcance, mas sim sua exata compreensão pela literalidade da norma.”

No Estado Democrático de Direito, os núcleos funcionais da segurança jurídica operam mediante as funções de certeza, confiabilidade e estabilidade sistêmicas. Por isso, a partir do binômio certeza e coerência, a confiabilidade funcional determina, operacionalmente, a normalidade do sistema, como garantia de concretização de direitos e liberdades fundamentais.

A legalidade tributária classificadora e tipificante, nos casos de isenções, totais ou parciais, nos termos do art. 111, II do CTN, prescreve para o aplicador da norma tributária uma espécie de interpretação por paráfrases, numa expectativa de assegurar ao máximo uma tentativa de “única resposta correta”. Busca-se, assim, afastar a indeterminação e a incerteza (a dúvida interpretativa), na construção de sentidos e significados para os textos normativos.

Quando se atribui ao contribuinte o dever de interpretar a lei previamente, esta ação tem um ônus. Não se poderia abandonar o contribuinte num limbo de incertezas e de indeterminações. A liberdade de interpretar convive com as dúvidas, com as imprecisões e a ambiguidade própria dos signos linguísticos. Por isso, o CTN fez uma escolha pela interpretação literal das isenções tributárias, nos moldes do art. 111, II do CTN. O sentido de uma interpretação especificadora dos benefícios fiscais.

Descabe aqui qualquer menção a teorias de prevalência de substância sobre forma. A interpretação especificadora, na feição de “interpretação literal” do art. 111, II, do CTN, busca desvelar o significado do texto sem qualquer atitude restritiva ou ampliativa.

É neste sentido que se basta com a busca da verdade real, como expressão do texto normativo. Destaca Michelle Taruffo a insuperabilidade da teoria da verdade por correspondência, dada a exigência de uma efetiva correspondência entre o acertamento dos elementos do texto e aqueles de construção da realidade.

Como observa Klaus Tipke, legalidade tributária, segurança jurídica, especialmente na forma da certeza e da uniformidade da tributação “somente serão plenamente desenvolvidas quando o aplicador do Direito se servir de métodos disciplinados, que tornem sua decisão jurídica inteligente e racionalmente compreensível, que não transmita a impressão de que a lei foi aplicada liberalmente segundo o sentimento jurídico subjetivo.” Por isso, ocupar-se da interpretação do Direito Tributário é um modo de concretizar a segurança jurídica por meio do controle dos critérios de aplicação dos textos normativos, pela criação de normas jurídicas certas e justas.

Diante do exposto, deve-se concluir que a autoridade administrativa, na aplicação das leis de isenção ou de qualquer outra forma de “eclusão” (redução de base de cálculo, de alíquota zero, anistia etc), deve resguardar a boa-fé do contribuinte na interpretação do alcance material do texto, o que somente é possível numa atitude especificadora da finalidade da norma, sem qualquer dirigismo extensivo das limitações ou restritivos do direito. O respeito da boa-fé objetiva é a melhor evidência de efetividade dos princípios da moralidade (Administração Pública) e da segurança jurídica no Direito Tributário, mediante práticas responsáveis e legítimas na construção de sentidos pela interpretação.


SOUSA, Rubens Gomes de. Pareceres – 1: imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária, 1975, p. 269.

BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 191.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário linguagem e método. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Noeses, 2011, p. 593.

BALEEIRO, Aliomar; DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário Brasileiro. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1540.

SOUSA, Rubens Gomes de. Interpretação das leis tributárias. In: SOUSA, Rubens Gomes de; ATALIBA, Geraldo. Interpretação no direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 379.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 362.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp 1098981/PR, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, j. 02.12.2010, DJe 14.12.2010.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp 1.468.436/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, j. 01.12.2015, DJe 09.12.2015.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ, REsp nº1.471.576/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. 27.10.2015, DJe 09.11.2015.

Deveras, pois, como observa Giuseppe Melis, o emprego de métodos ou argumentos interpretativos não tem qualquer função de correção ou exatidão da decisão. MELIS, Giuseppe. L’Interpretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003, p. 445.

Cf. OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, p. 961.

TARUFFO, Michele. La prova dei fatti giuridici. Milano: Giuffrè, 1992, p. 152;

TIPKE, Klaus; LANG, Joachim. Direito tributário. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Fabris, 2008, p. 304. Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 475 e ss.

 é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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Entrada do país na OCDE exige reflexão sobre tratados tributários

A iminente entrada do Brasil na OCDE exigirá do país uma posição segura e definitiva acerca do relacionamento normativo que se estabelece na ordem constitucional brasileira entre os tratados em matéria tributária e as leis internas, bem como da adequada significação normativa do art. 98 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.

Na doutrina, o debate pauta-se pela eventual relação de prevalência dos tratados em relação às leis internas, por razões de hierarquia, cronologia ou especialidade. Neste sentido, destaca-se a posição de Alberto Xavier para quem os “tratados valem na ordem interna como tal e não como leis internas, apenas sendo suscetíveis de revogação ou denúncia pelos mecanismos próprios do direito dos tratados, o que é precisamente a essência de sua superioridade hierárquica.”

Schoueri nega que haja relação de hierarquia entre os tratados e as leis internas, sustentando que “nem o tratado internacional prevalece sobre a lei interna, nem esta sobre aquele. Se o tratado internacional efetivamente tivesse uma posição hierárquica superior à lei, então poderia regular matéria reservada à última. Seria o caso de admitir que o tratado internacional poderia criar um tributo. Mas isso não se dá: quem institui o tributo é a lei, não o tratado.” Para este autor, o tema envolve a definição de qual jurisdição que pactuou o tratado é competente para regular o fato jurídico, ou seja, alude à competência e não à hierarquia.

Caberá ao Supremo Tribunal Federal dar contornos definitivos ao tema. Na Corte, acompanhando o que ocorre na doutrina, o debate também parte da premissa de uma antinomia jurídica entre a norma constante do tratado e a norma produzida pelo legislador ordinário. Logo, constatada a antinomia, cumpre ao intérprete resolvê-la adotando os critérios da hierarquia, cronologia ou especialidade.

A partir do precedente firmado no RE 80.004/SE, o Supremo Tribunal Federal, rompendo uma tradição jurisprudencial, passou a adotar a teoria da paridade normativa entre tratados internacionais e leis internas, de modo que “eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá – presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico – , não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível , do critério da especialidade (RTJ 70/333 – RTJ 100/1030 – RT 554/434).

A teoria da paridade normativa sofreu inflexão com o julgamento do RE 466.343-1, onde o Supremo Tribunal Federal reconheceu o caráter de supralegalidade dos tratados sobre direitos humanos, nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes, ao assentar que “os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.”

Segundo este precedente, o caráter de supralegalidade dos tratados de direitos humanos tem o condão de “paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante” bem como paralisar a eficácia de toda a legislação infraconstitucional conflitante editada posteriormente. Na ocasião, ainda que obiter dicta, o Min. Gilmar Mendes reconheceu que o art. 98 do CTN impõe uma prevalência (por hierarquia e especialidade) dos tratados tributários sobre o direito interno.

No julgamento do RE 636.331-RJ (com repercussão geral), o Supremo Tribunal Federal voltou a adotar a tese da paridade normativa entre tratados e leis internas, já que não se tratava de conflito de norma interna em face de tratado de direitos humanos, dotado segundo a Corte do caráter de supralegalidade.

No RE 460.320, onde se analisa as disposições de tratado para evitar a dupla tributação da renda em face da lei interna, o Min. Gilmar Mendes, mesmo negando a aplicação do tratado, com apoio na doutrina de Alberto Xavier e na regra do art. 98 do CTN, reconhece a prevalência da norma do tratado internacional em face da lei interna, sob o fundamento de que “à luz dos atuais elementos de integração e abertura do Estado à cooperação internacional, tutelados no texto constitucional, o entendimento que privilegie a boa-fé e a segurança dos pactos internacionais revela-se mais fiel à Carta Magna.”

A aplicabilidade das regras tributárias constantes de tratados realmente se fundamenta em função da sua superioridade hierárquica ou especialidade em face da lei interna?

Os sistemas jurídicos fundam a sua racionalidade e legitimidade na postulação de segurança (previsibilidade quanto ao conteúdo dos comandos normativos) e justiça (tratamento igualitário para todos que se encontram em idêntica situação) e para alcançar estes objetivos utilizam-se concretamente dos dogmas da coerência e da completude. Neste contexto, a antinomia jurídica surge como um defeito lógico do sistema, uma quebra na própria racionalidade sob a qual é construída a ideia de sistema jurídico. Norberto Bobbio lembra que a dificuldade de o direito lidar com as próprias antinomias vem desde o direito romano cujos intérpretes cultivavam a premissa de que não existiam normas jurídicas contraditórias. A incompatibilidade entre duas normas jurídicas válidas prima facie é um mal a ser eliminado em nome do dever de coerência do sistema jurídico.

Há um conflito entre duas ou mais normas jurídicas válidas prima facie quando ambas imputam ao mesmo fato ou situação (mesmo suporte fático) soluções que entre si são logicamente incompatíveis (contrárias ou contraditórias), considerados os modais deônticos correspondentes à obrigatório, proibido e permitido. Assim, a antinomia jurídica exige o preenchimento de duas condições teóricas: a) dois ou mais comandos jurídicos válidos prima facie, lógica e completamente coincidentes, para o mesmo fato ou situação da realidade e b) previsão para este fato ou situação de imputações normativas (soluções normativas) logicamente incompatíveis.

A antinomia supõe a regulação logicamente incompatível do mesmo suporte fático por duas normas jurídicas admitidas como válidas. Como destaca Bobbio, esta coincidência regulatória exige que as normas em conflito tenham identidade nos quatro âmbitos de validade normativos: temporal, espacial, pessoal e material. Daí que, segundo este autor, diz-se que existe antinomia jurídica quando há uma situação em que se verifica duas normas incompatíveis, pertencentes aos mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito de validade. A identidade dos âmbitos de validade é condição sine qua non para o conflito de normas.

Constatada a antinomia, e para restaurar a coerência do ordenamento jurídico, é dever do intérprete resolvê-la, utilizando as ferramentas proporcionadas pela dogmática jurídica, saber prático destinado a auxiliar a aplicação e a evolução do direito positivo. O remédio dogmático para as antinomias é a aplicação das meta-regras da cronologia (lex posterior derogat priori), da hierarquia (lex superior derogat inferiori) e da especialidade (lex specialis derogat generali) das normas.

A antinomia contempla sempre um conflito de normas válidas, cuja resolução exige um juízo positivo de validade de uma norma e de um juízo negativo de validade da outra. A unidade e a coerência do sistema jurídico não admitem normas válidas contraditórias. Antinomia jurídica, assim, é problema de validade e não de eficácia. Afasta-se a aplicação de uma norma negando-se a sua validade em face das disposições da norma que se decidiu aplicar.

Dito isso, o que ocorre na relação entre a norma do tratado e a norma interna decididamente não é caso de conflito de normas a exigir a aplicação dos critérios de resolução de antinomias apoiados nas meta-regras da hierarquia, cronologia e especialidade.

Não há identidade de âmbitos de validade entre a norma do tratado e a norma interna. O tratado tem como suporte fático eventos que envolvem pessoas, relações e situações que tocam a pelo menos dois Estados soberanos (sujeitos de direito) que firmaram o pacto internacional, enquanto a norma interna, ainda que regule os mesmos fatos, situações e pessoas de forma diferente, cogita apenas no Estado brasileiro, ou seja, as normas não tem âmbitos de validade coincidentes. Antinomia jurídica pressupõe conflito de normas com o mesmo suporte fático, o qual deve ser avaliado à luz do âmbito de validade de cada norma jurídica em particular, o que não ocorre entre tratado e norma interna.

Antinomia jurídica exige um juízo de confronto entre duas normas jurídicas prima facie válidas regulando o mesmo suporte fático. Como não há antinomia jurídica, descabe cogitar da prevalência de uma norma em relação a outra, seja por hierarquia, cronologia ou especialidade. Logicamente e por dever de coerência do sistema jurídico não há relação de conflito entre regras que têm suportes fáticos diferentes a chamar a aplicação das meta-regras de resolução de conflitos.

Outrossim, os tratados não revogam as normas internas, apenas criam novos suportes fáticos conferindo-lhe o tratamento jurídico resultante do pacto internacional. Assim é porque a Constituição brasileira, nos seus arts. 4º e 5º com seus parágrafos, entre outros dispositivos, claramente tomou a decisão de inserir o Brasil no contexto internacional através de acordos com outras nações e organismos internacionais.

A ordem constitucional brasileira regulou o processo de incorporação e aplicação da norma do tratado ao direito interno, mas não a equiparou à norma interna, nem alterou a sua natureza. A relação entre as normas de direito interno e as normas derivadas da ordem internacional não são de subordinação, mas de coordenação tendo em vista a circunstância de que promanam de diferentes fontes de produção normativa. A subordinação da norma internacional, por decisão do constituinte brasileiro, é tão somente às disposições constitucionais.

Da mesma forma, uma norma interna posterior também não altera a disciplina da norma do tratado porque esta deriva de fonte de produção normativa diferenciada, autorizada pela Constituição, e que prevê procedimento próprio de modificação das suas disposições, sobretudo porque envolve outros sujeitos de direito (Estados e organizações internacionais). Neste sentido, a adoção pelo Brasil da Convenção de Viena sobre o Direitos do Tratados reforça a decisão do país quanto à sua inserção internacional, o que é incompatível com a alteração unilateral de pactos firmados com outras nações sob o primado da boa-fé e do pacta sunt servanda.

Não é outro o comando normativo derivado do art. 98 do CTN, apesar da sua reconhecida imprecisão técnica redacional. Os tratados não revogam, nem modificam a legislação interna como afirma o texto normativo. Eles tão somente estabelecem novos suportes fáticos, aplicando-lhes a regulação pactuada com outros sujeitos de direito. É por esta razão que a parte final do dispositivo determina que as regras dos tratados devem ser observadas pela legislação interna posterior (relativamente aos mesmos suportes fáticos).

Em conclusão:

  • a relação entre tratado e norma interna não é de prevalência, mas de mera subsunção do fato jurídico à hipótese normativa a ele aplicável. A relação não é de conflito normativo a ser resolvido mediante a aplicação das metra-regras da hierarquia, da cronologia ou da especialidade simplesmente porque tratado e norma interna são comandos com âmbitos de validade não coincidentes. Trata-se de mera tarefa interpretativa de decisão quanto à norma aplicável ao fato jurídico, autêntico juízo de subsunção que não envolve um juízo de validade próprio do que ocorre nos casos de antinomias;

  • a relação entre tratado e lei interna também não é de simples escolha da jurisdição aplicável. Admitido que o fato jurídico está submetido ao direito brasileiro, a tarefa hermenêutica é eleger, dentre as regras do nosso direito, qual hipótese normativa melhor se ajusta ao suporte fático realizado: a prevista no tratado ou a constante da lei interna. A escolha da jurisdição aplicável é momento logicamente anterior à determinação da relação entre a norma do tratado e a da lei interna.

Portanto, espera-se que na conclusão do RE 460.320 o Supremo Tribunal Federal estabeleça os contornos teóricos e jurisprudenciais definitivos à relação entre os tratados tributários e as normas internas na ordem jurídica brasileira, garantindo a plena e irrestrita aplicação dos pactos internacionais firmados pelo país, desde que compatíveis com a Constituição Federal.


Todas as referências a “tratados” presumem a sua prévia incorporação à ordem jurídica brasileira através do procedimento previsto na Constituição Federal.

Direito tributário internacional do Brasil. 6ª. ed. Forense : Rio de Janeiro, 2004, p. 120.

Direito tributário. 8ª ed. Saraiva Jur : São Paulo, 2018, p. 104.

O voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes no RE 460.320/PR traz excelente relato dos precedentes da Corte sobre o tema.

ADI 1.480, rel. Min. Celso de Mello.

A Corte analisou as normas do Código de Defesa do Consumidor em face das previsões do Tratado de Varsóvia, o qual, inobstante superado pelo critério cronológico porquanto anterior àquele Código, prevaleceu em razão do critério da especialidade trazido à lume pela norma do art. 178 da Constituição Federal, conforme colhe-se do voto da Min. Rosa Weber: “parece-me, aliás, que, conquanto os referidos tratados não versem sobre direitos humanos, a eles o Poder Constituinte conferiu excepcional status supralegal, ao erigir, no texto magno, regra [art. 178] segundo a qual as leis internas devem observar os acordos internacionais sobre transporte aéreo, aquático e terrestre firmados pela República Federativa do Brasil.”

Julgamento pendente com pedido de vista do Min. Dias Toffoli.

Teoria do ordenamento jurídico. 6ª. ed. Ed. UNB : Brasília, 1995, p. 81.

Carlos Santiago Nino. Introdución al análisis del derecho. 2ª. ed. Astrea : Buenos Aires, 1984, p.

Ob. cit. p. 88.

Manuel Atienza. Introdución al Derecho. 2ª. ed. Dist. Fontamara : Ciudad del Mexico, 2000, p. 249.

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: assinada pelo Brasil em 23 de maio de 1969, submetida ao Congresso em 22 de abril de 1992, aprovada por Decreto Legislativo 496/2009 e promulgada pelo Decreto 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Art. 26: Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé. Art. 27: Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o artigo 46.

 é advogado parecerista, livre-docente em Legislação Tributária pela USP e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela mesma instituição.

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Só União pode obrigar elétrica a investir em proteção ambiental

É inconstitucional lei estadual que impõe a concessionária de geração de energia elétrica o investimento em proteção ambiental. Tal conduta configura intervenção indevida do estado em matéria que compete à União. 

Cabe à União impor a concessionária de geração de energia elétrica investimentos em proteção ambiental, firma Supremo
CREA-RO

O entendimento foi firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, em julgamento virtual finalizado nesta sexta-feira (8/5). O caso tem repercussão geral.

Prevaleceu a divergência do ministro Luiz Fux, que apontou que ao inserir exigência decorrente do contrato de exploração dos recursos naturais que não foi estabelecida inicialmente pelo ente competente, “o Estado membro incrementa o custo do contrato administrativo”. De acordo com o ministro, isso configura interferência na relação contratual previamente firmada.

Fux sugeriu a seguinte tese: “A norma estadual que impõe à concessionária de geração de energia elétrica a promoção de investimentos, com recursos identificados como parcela da receita que aufere, voltados à proteção e à preservação de mananciais hídricos é inconstitucional por configurar intervenção indevida do Estado no contrato de concessão da exploração do aproveitamento energético dos cursos de água, atividade de competência da União, conforme art. 21, XII, ‘b’, da Constituição Federal”.

O voto do ministro foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes.

O ministro Alexandre de Moraes abriu corrente divergente. Para ele, somente seria possível ao Estado legislar sobre proteção ambiental, concorrentemente com a União, “respeitadas as normas gerais estabelecidas pelo ente Federal, caso utilizasse como fonte de custeio para os investimentos valores referentes à receita do próprio Estado ou verbas federais repassadas pela União”.

No caso analisado, disse Moraes, a lei estadual apenas cria “ônus direto sobre o faturamento das empresas concessionárias a ser investido na proteção ao meio ambiente local”.

Histórico do caso

A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) ajuizou Ação Cautelar  para suspender efeito suspensivo a um Recurso Extraordinário, já admitido na instância de origem, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Ao julgar apelação contra sentença de primeiro grau, o TJ mineiro manteve decisão que obrigou a Cemig a investir, no mínimo, 0,5% de sua receita operacional na proteção e preservação ambiental de mananciais hídricos em diversas cidades. A previsão consta da Lei 12.503/97 de Minas Gerais.

Em 2014, o ministro Marco Aurélio deferiu liminar em Ação Cautelar para suspender decisão que obrigava tal investimento. Na inicial, a Cemig alegava que as leis estaduais que geram obrigações tributárias ou tributárias ambientais contra as concessionárias federais de energia são inconstitucionais, pois a competência para legislar sobre o assunto é da União.

Em plenário virtual, o ministro negou o recurso, por entender que há competência concorrente no caso. Ele sugeriu a tese: “Surge constitucional, considerada a competência concorrente, norma estadual em que prevista obrigação, por parte de concessionária de energia elétrica, de promover investimentos com recursos de parcela da receita operacional auferida, voltados à proteção e à preservação ambiental de bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração.”

Seguiram o relator os ministros Luiz Edson Fachin, Celso de Mello e Rosa Weber.

Clique aqui para ler o voto do relator

RE 827.538

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A Lei 13.988/20 e o fim do voto de qualidade no Carf

Em um passado historicamente não tão distante assim, reis, faraós, czares, imperadores, chefes de tribo, detinham a função de resolver conflitos surgidos entre seus súditos, os membros da coletividade por eles liderada. Essa função, aliás, nós humanos partilhamos com os “alfas” de outros grupos de mamíferos, como chimpanzés e lobos. Também entre eles o chefe, dentre outras coisas, tem a função de dirimir conflitos e pacificar o grupo, mantendo-o coeso.

Naturalmente que o tal soberano, em sociedades cada vez maiores, não tinha como resolver sozinho, por sua própria conta, todos os conflitos. A atribuição passou gradualmente a ser delegada a pessoas de sua confiança, seus subordinados. Só no caso de alguma insatisfação diante da solução encontrada por tais subordinados haveria recurso ao soberano, devolvendo-se a ele (daí o nome do “efeito” dos recursos, até hoje?) o papel de julgar o conflito.

Não é preciso muita imaginação para concluir que tais subordinados, conquanto preparados e muito bem intencionados, não teriam como julgar adequadamente questões nas quais os interesses do próprio soberano estivessem diretamente envolvidos. Na melhor das hipóteses, se as julgassem contra esses interesses, perderiam o posto. Deixariam de ser “de confiança”. Isso quando não perdiam a cabeça. Às vezes literalmente.

Nessa ordem de ideias, no lento processo de tentativa e erro seguido pela Vida na Terra, desde o seu surgimento, e que com a inteligência humana passou a ser aplicado também às instituições sociais, quando as sociedades humanas cansaram dos abusos de seus chefes, idealizaram, dentre outras coisas, figuras como a separação de poderes e a legalidade. Junto delas se criaram, também, as garantias da magistratura, como consequência necessária. Para que o juiz possa, se for o caso, julgar contra os interesses do chefe, se este ou outros subordinados seus não tiverem seguido o que a lei determina.

A leitora então pode estar pensando, agora, ter havido um erro no site do Conjur. Não tratava o título deste artigo de “voto de qualidade”? Sim, tratava. É do que trata o artigo. Fruto da conversão em lei da Medida Provisória 899/2019, a Lei 13.988/2020 disciplina, no plano federal, o instituto da transação tributária, previsto genericamente no art. 171 do Código Tributário Nacional.

Quando de sua aprovação, contudo, um assunto rapidamente roubou a atenção até então dedicada apenas à transação: a extinção do “voto de qualidade”, levada a efeito pelo art. 28 da citada lei. A partir de agora, nos processos administrativos de controle interno da legalidade do crédito tributário, quando houver empate nos julgamentos levados a efeito por órgãos colegiados, a questão deverá ser decidida favoravelmente ao contribuinte.

Rapidamente surgiram vozes a protestar duramente contra a alteração. Mesmo o controle concentrado de constitucionalidade foi provocado, com a propositura de ADIs impugnando a validade do dispositivo. Apontam-se, basicamente, invalidades de cunho material e formal. Os vícios materiais decorreriam de uma suposta violação ao interesse público e à presunção de validade do ato administrativo. Suscita-se, ainda, uma quebra da igualdade, pois o contribuinte pode, perdedor no processo administrativo, provocar o Poder Judiciário, faculdade que não assiste à Fazenda Pública.

Quanto aos vícios formais, eles consistiriam, em suma, no fato de a extinção do voto de qualidade ser um “jabuti”, fruto de um contrabando legislativo. Diria respeito a matéria diversa da tratada originalmente na medida provisória. Isso supostamente levaria à invalidade formal da norma, havendo inclusive precedente do STF nesse sentido.

Tais argumentos já foram examinados por Igor Mauler Santiago, em primoroso artigo publicado aqui no Conjur há poucas semanas, cujas conclusões subscrevemos sem ressalvas (clique aqui). Talvez ainda haja espaço, contudo, para reflexões adicionais.

            Primeiro, vale lembrar que o voto de qualidade não é o mesmo que um mero “voto de desempate”, como existe em alguns Tribunais, e em órgãos administrativos fiscais de determinados Estados e Municípios. No voto de desempate, tem-se a atuação do Presidente do órgão, que até o empate não profere juízo algum quanto ao julgamento, limitando-se a conduzir a sessão. Se não houver empate, o Presidente simplesmente não vota. No caso do “voto de qualidade”, que a Lei 13.988/2020 aboliu, a situação é diferente: a composição do órgão é par, incluindo-se o Presidente. Na hipótese de, com o voto do Presidente, que o profere por último, verificar-se o empate, seu voto passa a ter “peso duplo”, o que leva ao desempate no sentido do entendimento por ele manifestado. Parece o mesmo que o voto de desempate, mas não é, pois há, no voto de qualidade, maltrato à regra da igualdade entre os julgadores, diante de alguém que preside, conduz, sempre vota, e ainda pode fazê-lo duas vezes, em notória influência sobre os demais. É evidente, ainda, que o “segundo” voto do Presidente terá sempre e necessariamente o mesmo teor do primeiro. Isso não ocorre no caso de autêntico voto de desempate, quando o Presidente só vota uma vez e só se houver empate, situação que torna possível tanto o desempate dar-se em um sentido, como em outro, pelo menos em tese.

            Mas o fato é que todas essas inconveniências do voto de qualidade nunca haviam levado à decretação de sua inconstitucionalidade. Ou mesmo a tanto inconformismo como agora se verifica. Dizia-se situada a questão dentro da zona de liberdade ou de conformação do legislador infraconstitucional. A questão, porém, é que o mesmo pode ser dito agora: por igual motivo, não há qualquer inconstitucionalidade no fim do voto de qualidade.

            Nem toda norma que nos desagrada, ou que adota solução que não nos parece a mais acertada, é, só por isso, inconstitucional. Os argumentos invocados pelos críticos da Lei 13.988/2020, de que o Fisco não pode ir ao Judiciário, enquanto o contribuinte sim, e de que o ato administrativo presume-se válido, presunção que no empate deveria militar pela sua manutenção, e não pelo seu afastamento, são pontos que podem ser colocados em um debate legislativo sobre a conveniência da alteração. Não em um debate judicial sobre sua constitucionalidade.

            Não há, com efeito, no texto constitucional, uma imposição de que o empate em órgãos administrativos seja resolvido em prol da Fazenda Pública. Tampouco de que, no caso de dúvida (e o empate objetivamente indica essa dúvida, senão na mente de cada julgador, claramente no órgão formado pelo conjunto), os lançamentos devam ser mantidos, cabendo ao contribuinte, se quiser, levar a disputa ao Judiciário. Na dúvida sobre se um ato é ilegal, deve-se praticá-lo e quem achar ruim que “judicialize”? Isso não se nos afigura correto, sendo de resto o motivo pelo qual o Poder Judiciário está praticamente inviabilizado com uma quantidade absurda de processos, a maioria deles tendo a Fazenda Pública como parte. É preciso mudar essa cultura, em vez de apenas se defender genericamente o uso de “métodos alternativos” de solução de conflitos.

O fato é que a Constituição não obriga a que a dúvida objetiva, verificada no órgão cuja composição está dividida ao meio quanto à legalidade de uma cobrança, seja resolvida em favor da manutenção da exigência. Não há, pois, invalidade material alguma.

            Quanto a esse ponto, adicione-se que nem sempre conselheiros oriundos dos quadros do Fisco votam contra o Fisco, e vice-versa, não sendo raro conselheiros indicados por entidades representativas de classes de contribuintes votarem em favor da Fazenda. Todos estão sujeitos aos humores do chefe, e o que muda, entre conselheiros indicados pelo Fisco, e por contribuintes, além do background, que lhes confere horizontes hermenêuticos diferentes, enriquecendo as discussões tanto fáticas quanto jurídicas, é o regime jurídico que lhes é aplicável. Em suma, as garantias que eles têm para julgar conforme considerem correto, mesmo desagradando o Fisco.

Agora ficou claro o motivo de se ter acrescido uma pitada de História ao início deste texto. Conselheiros de ambas as origens, se decidirem contra o Fisco em questões relevantes, correm o risco de não serem reconduzidos. E, no caso dos oriundos dos quadros do Fisco, há sempre a possibilidade de, encerrado o período no CARF, passarem a exercer função talvez menos interessante, em uma fronteira distante ou em um aeroporto movimentado, abrindo malas de passageiros cansados, até como forma de castigo pela excessiva independência revelada durante sua passagem pelo órgão julgador.

Some-se a isso o fato de que os Conselheiros que são servidores fazendários efetivos recebem um adicional de produtividade que de algum modo é reflexo dos autos que mantêm, ao passo que os indicados por contribuintes devem dedicar-se exclusivamente ao ofício, sendo-lhes vedadas outras atividades, mas se adoecerem, ou se, Conselheiras, ficarem grávidas, e em virtude disso deixarem de comparecer às sessões, simplesmente deixam de receber, não havendo nenhuma segurança no âmbito trabalhista ou remuneratório.

Essa fragilização da posição de ambos, cada uma à sua maneira, faz com que posicionamentos em favor do contribuinte não sejam tomados de maneira confortável, a indicar que, em uma questão, se se verificar o empate, a probabilidade de que a exigência seja de fato indevida é incrivelmente maior do que o contrário. Ou seja: se o subordinado do chefe, mesmo com todos os riscos, ousa dizer que ele não tem razão, ou se o órgão chega pelo menos a um empate em torno disso, a possibilidade de isso ser verdade é enorme. Gigantesca. Tão grande ou talvez maior que a de uma decisão unânime do STJ envolvendo apenas interesses de dois particulares, sem o mais remoto impacto ou reflexo na vida ou nas carreiras dos Ministros.

Isso põe por terra o argumento relacionado à presunção de validade do ato administrativo, que, aliás, no caso do lançamento, ocorre apenas quando da inscrição em dívida ativa (CTN, art. 204), algo que somente ocorre depois do julgamento pelo CARF, convém lembrar.

Em suma, tudo o que se diz contra o fim do voto de qualidade poderia, quando muito, embasar discussão política em torno de uma reforma no processo administrativo tributário. Não a inconstitucionalidade material do art. 28 da Lei 13.988/2020.

Quanto aos alegados vícios formais, tampouco há inconstitucionalidade.

Como registra o já referido artigo de Mauler Santiago, o precedente invocado pelo STF cuidava de alteração jabuti em medida provisória relacionada ao Programa Minha Casa Minha Vida, na qual se inseriram disposições destinadas a extinguir a profissão do técnico em contabilidade. Além de os assuntos serem totalmente diversos, o grupo afetado, os técnicos em contabilidade, e seus representantes legislativos, não tiveram qualquer oportunidade de participar ou influir no processo, pois nem sabiam que aquela disposição estava a ser votada no meio de uma norma dedicada ao programa social referido.

Não foi o que se deu com a Lei 13.988/2020: primeiro porque a lei trata de transação, forma não apenas de extinção do crédito tributário, mas de terminação de litígios. Tal como as decisões do CARF, que também encerram litígios. Estimular o uso da transação e evitar de levar ao Judiciário questões de legalidade duvidosa, que passam a ser resolvidas em prol do contribuinte ainda na via administrativa, são medidas convergentes com um mesmo objetivo: reduzir a litigiosidade tributária e a carga de processos levados ao Judiciário.

Em outros termos, nada mais razoável, nesse âmbito, que tratar na lei oriunda da MP também da regra que dispõe a respeito dos efeitos do empate no processo de controle da legalidade do crédito, que também é uma forma de resolução de litígio e de extinção do crédito tributário. Como se isso não bastasse, diversamente do caso dos técnicos em contabilidade, no caso da MP 899/2019, a lei oriunda da sua conversão, onde supostamente se inseriu o jabuti, foi posteriormente examinada, e sancionada (poderia ter sido vetada!) pelo Presidente da República, Chefe do Executivo, do qual fazem parte o Ministério da Economia, e o CARF. Situação muito, muito diferente, a tornar inaplicável o precedente.

Por outro lado, se a Constituição tem algumas regras expressas “anti-jabuti”, como a constante do art. 150, § 6º, da CF/88, não faz sentido considerar que tais práticas estariam vedadas de maneira ampla e irrestrita. Não pudesse, nunca, uma lei tratar de um assunto e ver-se inserido em seu corpo disposição para tratar de outro, qual o sentido da proibição constante do já citado art. 150, § 6º, da CF/88? Afinal, não seriam só as regras concessivas de isenção, anistia ou remissão, mas quaisquer outras.

Em verdade, além de chamar a atenção para a necessidade de aprimoramentos no processo tributário, notadamente no administrativo, a extinção do voto de qualidade suscita uma discussão da maior importância: qual o efeito da dúvida, da hesitação, da incerteza, da indefinição, presente objetivamente em órgãos da Administração Tributária relativamente à própria procedência da cobrança que se pretende levar a efeito? Na dúvida, empurra para a frente e o contribuinte que se vire, levando ao Judiciário o problema? Ou, na dúvida, não se exige, pois a diminuição do patrimônio do sujeito passivo, como fruto de uma exação tributária, demanda uma certeza razoável a respeito da validade da exigência?

É preciso mudar essa cultura, de manter exigências de validade duvidosa e transferir sempre ao Judiciário a tarefa de as invalidar. Além de desigual, pois nem todos têm fôlego para prosseguir na discussão, e de assoberbar desnecessariamente juízes e tribunais, a medida é covarde: não se assumem responsabilidades, as quais são sempre dos juízes. “Para se preservar”, autoridades chegam mesmo a cometer os maiores absurdos, e até aconselham suas vítimas a procurar a tutela jurisdicional para resolvê-los. Nesse contexto, o in dubio pro contribuinte da Lei 13.988 é um pequeno mas importante passo rumo à correção dessa visão, que, embora equivocada, permeia toda a sociedade brasileira.

 é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).