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Responsabilização jurídica por uso de cloroquina não é consenso

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de ações diretas de inconstitucionalidade — que questionaram a Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos durante a epidemia de Covid-19 — sedimentou o entendimento de que ignorar diretrizes científicas constitui erro grosseiro, o que abre a possibilidade para questionamento judicial e posterior condenação.

Uso da cloroquina no tratamento da Covid-19 é controverso no aspecto jurídico
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Apesar da clareza do enunciado jurídico, as dificuldades próprias da produção do saber científico podem ser um entrave à sua aplicação, especialmente no que diz respeito ao coronavírus.

O principal exemplo é o uso da cloroquina. O medicamento, originalmente usado no combate de doenças como malária e lúpus, foi amplamente defendido por políticos, como o presidente Jair Bolsonaro e o mandatário norte-americano Donald Trump, como eficaz no tratamento da Covid-19. 

Apesar do entusiasmo de agentes políticos, o periódico científico The Lancet publicou divulgou estudo que acompanhou 100 mil pacientes em todo o mundo e que apontou não apenas a ineficácia da cloroquina para combater a Covid-19, mas também o risco de ataque cardíaco nos pacientes, com aumento da mortalidade.

Em 25 de maio, a Organização Mundial de Saúde decidiu suspender os testes com o remédio até que sua segurança seja verificada em detalhes. Apesar das informações recentes, o SUS manteve o próprio protocolo, que recomenda a utilização do remédio para pacientes com Covid.

Assim, o médico que receitar cloroquina seguindo o protocolo do SUS estará respaldado juridicamente. O entendimento é do advogado e é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal.

Em entrevista à ConJur, Canal explica que a recomendação da OMS não é vinculativa e que a principal autoridade médica no país é o Ministério da Saúde. “Desde que o médico siga o protocolo do Ministério da Saúde e o paciente tenha concordado com o uso da cloroquina, ele [o médico] pode até ser processado, mas está legalmente amparado.”

Segundo ele, a “imunidade” vale inclusive para os autores do protocolo do SUS que recomendou o uso da cloroquina, porque o documento foi baseado nas informações científicas disponíveis no momento.

Canal explica que ainda não existe consenso médico em relação ao tratamento da Covid-19 e que o debate não pode ser contaminado pela discussão política. “No voto da ministra Carmén Lúcia, ela disse que não se pode proteger os servidores 100% ao ponto de permitir que eles possam cometer aberrações, mas também não se pode engessá-los. Se o médico sabe que o paciente é cardiopata e tem problemas nos rins e mesmo assim receitou cloroquina, pode ser responsabilizado”, comenta.

O constitucionalista Eduardo Mendonça também entende que não se poderia responsabilizar o médico com base no entendimento do STF da MP 966 se ele, médico, seguir o protocolo do SUS e informar os riscos do tratamento ao paciente.

“Do ponto de vista jurídico, a premissa é a de que constitui culpa grave o que contrarie os protocolos médicos reconhecidos pelas entidades médicas reconhecidas. Se houver discordância entre essas opiniões técnicas, não acho possível responsabilizar o administrador que segue uma delas. Mas a opção por seguir apenas a própria intuição é temerária e pode gerar responsabilização”, argumenta.

Contraponto

O jurista e colunista da ConJur, Lenio Streck, por sua vez, tem um entendimento diferente. “Erro grosseiro na medicina ocorre de dois modos: por erro na condução do procedimento ou por ministrar tratamento (medicação) sobre a qual não há comprovação científica. Assim, quem ministrar cloroquina poderá cometer erro grosseiro, sim. Veja: não é que não haja consenso sobre a eficácia. É que as pesquisas mostram que é mais perigoso usar do que não usar. Logo, o médico assume o risco de ser processado se o paciente morrer e ficar comprovado que o foi por causa da cloroquina”, explica.

Entendimento parecido tem advogado constitucionalista Paulo Peixoto. “Como não há consenso entre os cientistas, tampouco há estudos que atestem uma alta probabilidade de cura ou atenuação dos efeitos do vírus, possível dizer que não há critérios técnicos e científicos que deem respaldo à aplicação do medicamento no combate à Covid-19. Assim, o Estado pode ser responsabilizado objetivamente pela morte ou pelas sequelas dos pacientes, cabendo contra o médico eventual ação regressiva”, argumenta.

A visão é endossada, ainda, por Luís Inácio Adams, ex-AGU, em artigo publicado na ConJur. “Aparentemente, o elemento catalisador da decisão foi o político e não o técnico. Tudo considerado, o caso do protocolo da cloroquina adotado pelo Ministério da Saúde pode ser o primeiro caso em que venha a ser aplicado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do que seja erro grosseiro”, afirma.

Ministério Público 

A atuação do Ministério Público até agora parece indicar que os procuradores vão defender o uso do remédio. Recentemente, procuradores de Minas Gerais e Goiás fizeram recomendações a determinados municípios para ampliar o uso do medicamento. No Piauí foi aberta ação civil pública com o mesmo objetivo.

Em 22 de maio, a Procuradoria Geral da República enviou ofício ao Ministério da Saúde pedindo informações sobre o novo protocolo adotado em relação ao medicamento. O texto, assinado pela subprocuradora-Geral da República, Célia Regina Souza Delgado, também pede que o Ministério da Saúde apresente um plano para evitar desabastecimento do fármaco, que é usado para tratamento de doenças como malária e lúpus.

Nesse caso, os procuradores podem ser responsabilizados pelas ações de incentivo ao uso do medicamento? Para Raul Canal, não: a falta de consenso científico também respalda esses profissionais.”Existem correntes que defendem o uso da cloroquina. A OMS pausou os estudos, mas também não proibiu. O uso da cloroquina é justificável no Brasil por conta do protocolo do SUS”, diz.

O julgamento no Supremo

O voto do ministro Luís Roberto Barroso prevaleceu na decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal de manter a vigência da Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos a hipóteses de dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados ao combate da epidemia da Covid-19.

O entendimento de Barroso criou um limite claro ao determinar que agentes públicos que pratiquem atos administrativos que violem o direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente por descumprimento de normas e critérios científicos e técnicos cometem erro grosseiro e, portanto, estão sujeitos a sanções legais.

Clique aqui para ler o oficio da PGR ao Ministério da Saúde

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Opinião: O papel orientador dos tribunais de contas

O cenário de grave crise epidemiológica exige ações emergenciais dos gestores públicos. Dentre os desafios trazidos pela doença, a flexibilização de normas que pautam a execução dos gastos públicos influencia diretamente na atuação dos tribunais de contas, sobretudo quando se leva em conta que a tônica tem sido no sentido evitar que atuação desses órgãos seja um entrave à ajuda humanitária.

Em relação ao gasto de recursos públicos em medidas e ações para combater a doença, presenciamos no Congresso propostas usando como base para dar sustentação a necessidade de dar mais segurança jurídica para os gestores no cenário pós-crise.

Nesse contexto, é importante ressaltar que o exercício das competências dos tribunais de contas, inclusive no contexto de calamidade pública causada pela Covid-19 e na interpretação da Lei nº 13.979, de 2020, deve observar o ordenamento jurídico vigente, de alicerce constitucional, que impõe uma colegialidade processual-decisória, de forma a não colocar em risco a situação jurídico-funcional dos agentes públicos. Sendo imprescindível garantir o devido processo legal de controle externo e a atuação independente, imparcial e apartidária das cortes de contas, mesmo no momento atípico vivenciado no país.

Num momento em que o país necessita efetivar inúmeras ações emergenciais, a função pedagógica dos tribunais para orientar os gestores é fundamental. Ela deve ser materializada por meio do processo de consulta, que pode se dar em rito simplificado, a partir da redução de prazos para oferta de pareceres e submissão a julgamento colegiado, observado o disposto no art. 1º, §3º, inciso I da Lei n. 8.443/1992, cujo teor dispõe que as decisões são integradas pelo voto do relator, do qual deverão constar as conclusões das unidades técnicas de fiscalização e instrução processual e o parecer do Ministério Público Especial, comando legal que é reproduzido em leis orgânicas dos Tribunais de Contas de entes subnacionais.

Essas normas estabelecem o rito processual capaz de garantir o caráter pedagógico dos integrantes da função de auditoria, ministerial e judicante. Cuja colegialidade processual-decisória oportunizará aos gestores segurança jurídica na adoção de procedimentos e tomada de decisões, em estrita consonância com o disposto no art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Esse rito simplificado, inclusive, já tem previsão regimental em Tribunais de Contas, e, para além disso, o próprio artigo 4-G da Lei n.13.979, de 2020, ao reduzir prazos em procedimentos licitatórios da modalidade pregão, é indutor de simplificação por meio da redução de prazos, sem, contudo, suprimir fases, com vistas ao ideal de alcance da vantajosidade das contratações.

Para atendimento dos pressupostos necessários à segurança jurídica dos agentes controladores e controlados, é necessário que as competências constitucionalmente outorgadas aos tribunais de contas sejam regularmente exercidas, nos termos do ordenamento jurídico aplicável, de modo que a função pedagógica, em formato de orientação aos gestores, deve ser concretizada mediante processos de consulta, cujo rito não pode ser desfigurado, mas simplificado a partir da redução de prazos para oferta de pareceres e submissão a julgamento colegiado.

A simplificação do rito dos processos de consulta mediante redução de prazos é capaz de atender a celeridade e a urgência requeridas pela situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (Espin), mas sem se apartar do ordenamento vigente e nem desfigurar a forma como devem ser exercidas as competências institucionais dos tribunais de contas.

Não se pode olvidar que entendimentos manifestados pelos tribunais sobre a aplicabilidade e rota de alcance e sentido da Lei nº 13.979, de 2020, podem afetar a política pública de saúde e sobrecarregar o sistema incumbido de prestar esses serviços, caminho que vai na contramão das ações essenciais à manutenção do pacto federativo brasileiro.

A crise motivada pela pandemia obrigou os órgãos de controle dos gastos públicos, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) a considerarem as dificuldades reais dos gestores, o que impulsionou a modificação, durante esse período de anormalidade, dos próprios parâmetros do controle, especialmente aqueles pautados na rigidez, mas o desafio é que essas mudanças não transformem a ponto de desfigurar os sistemas de controle do Brasil e o sensível trato com os recursos públicos.

 é auditor de Controle Externo (TCE-PE) e presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC).

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Subteto de auditores fiscais é alvo de questionamento no STF

Defesa do teto único

Subteto de servidores da administração tributária é alvo de ação no STF

A Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e do Distrito Federal (Anafisco) ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de suspensão da aplicação do subteto aos auditores fiscais que tenha como parâmetro o salário dos prefeitos e governadores. A ação foi distribuída ao ministro Gilmar Mendes, relator de outras ações sobre o mesmo tema.

O inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal determina que o teto remuneratório dos servidores civis dos estados e dos municípios seja, respectivamente, o subsídio mensal do governador e do prefeito.

A entidade alega que o subteto cria grandes distorções remuneratórias entre os entes federados, com base num parâmetro de natureza política (salário do prefeito e do governador), sem que haja diferenciação de natureza técnica na qualificação e nas atribuições dos auditores fiscais dos estados e municípios.

Ao defender como teto único da administração tributária os subsídios dos ministros do STF, a associação argumenta que as autoridades fiscais têm competência para efetuar o lançamento de todos os tributos abrangidos pelo Simples Nacional relativamente a todos os estabelecimentos da empresa, independentemente do ente federado instituidor.

“O regime tributário do Simples Nacional concretiza um sistema nacional de fiscalização, arrecadação e cobrança de tributos que alcança a maior parte dos contribuintes do país, com atuação integrada das administrações tributárias em um modelo cooperativo”, diz. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

ADI 6.429

Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2020, 7h18