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Que vidas salvar? Critérios para alocação de leitos em hospitais

A pandemia pela qual o mundo vem passando, além de ter trazido novos problemas aos sistemas de saúde, jogou luz em outros problemas que já existiam. Um deles é a escassez de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS). Não é de hoje que os médicos que atuam no sistema público têm que fazer escolhas trágicas e decidir quem ocupará os leitos disponíveis e, por consequência, quem não terá acesso a eles. Com a Covid-19, esse problema se agravou, pois o vírus possui uma alta taxa de disseminação, levando a um aumento considerável da procura por assistência hospitalar.

Em vários lugares do mundo, o sistema de saúde chegou ao colapso, com pacientes falecendo em razão da ausência do tratamento adequado. No Brasil, alguns estados estão com seus recursos praticamente esgotados, com ocupação dos leitos de UTI superior a 80%, produzindo um contexto de escassez em que apenas alguns pacientes poderão receber o tratamento intensivo.

Nesse cenário, foram desenvolvidos diversos guidelines para orientar o processo de triagem na alocação de leitos, prevendo-se critérios pré-definidos a fim de garantir uma maior objetividade, transparência e publicidade nas escolhas feitas. Além de facilitar o controle e a revisão das decisões tomadas, a construção de parâmetros objetivos diminui a pressão que recai sobre o médico e torna a decisão menos sujeita à influência de vieses não-legítimos.

A fim de compreender de forma mais aprofundada os parâmetros adotados nos mais relevantes guidelines, os autores do presente artigo realizaram uma pesquisa mais profunda (clique aqui) em que foram mapeadas, descritas e sistematizadas as principais diretrizes adotadas. O presente artigo é uma síntese e complementação das ideias ali desenvolvidas, visando contribuir para o debate à luz da realidade brasileira.

Resolução CFM 2.156/2016 e sua insuficiência
Antes da pandemia, a única regulamentação que havia para orientar os médicos e reguladores das centrais de leitos nas escolhas acerca de quem ocuparia as vagas de UTI era a Resolução 2.156/2016, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Seu artigo 6º cria uma hierarquia de cinco níveis de prioridade, favorecendo aqueles pacientes “com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico” (Prioridade 1). No segundo nível, estão os “pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico” (Prioridade 2).

Em seguida, estão os “pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica” (Prioridade 3) e os “pacientes que necessitem de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica” (Prioridade 4). Por sua vez, o nível mais baixo de prioridade envolve “os pacientes com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação” (Prioridade 5).

É fácil perceber que os critérios estabelecidos pela resolução são vagos e dependem da análise subjetiva de cada médico. Além disso, o ato normativo não prevê critérios de desempate entre aqueles pacientes que se enquadram em um mesmo nível de prioridade. Por isso, a resolução não é suficiente para resolver os problemas decorrentes da escassez de leitos em uma pandemia, devendo ser desenvolvidos critérios mais precisos com vistas a tratar especificamente da alocação de leitos em contexto de limitação de recursos.

Não existindo dúvidas de que o elenco normativo e regulamentar existente não atinge as exigências de objetividade, previsibilidade e transparência, gerando várias lacunas que precisam ser resolvidas, é de extrema importância que seja elaborada uma norma mais ampla, detalhada e específica sobre o tema. Em princípio, o ente que deveria regular a matéria, ao menos no que diz respeito ao SUS, é o Ministério da Saúde, cujo chefe, em plena crise, foi trocado por diversas vezes. Na composição tripartite do SUS, o Ministério da Saúde direciona grande parte das ações em saúde, bem como determina, de uma forma mais ampla, a política pública. Eis uma das razões para que, em um contexto ideal, ele regule a matéria ou então tome a iniciativa de discuti-la juntamente com os demais entes federados.

Além disso, o órgão tem legitimidade democrática para fixar as regras, na medida em que faz parte do Poder Executivo e pode promover debate com a sociedade para que os valores mais relevantes para ela sejam protegidos. Ainda, a fixação de critérios pelo Ministério da Saúde trará uniformidade às decisões, na medida em que eles serão os mesmos para todo o território nacional. Note-se que essa é uma matéria em que as regionalidades não são importantes a ponto de ser necessária a fixação de critérios diversificados.

Na omissão do Ministério da Saúde, é possível que outros órgãos possam vir a estabelecer regras, como o próprio CFM, até por já ter sido o autor da resolução citada. As normas ditadas pelo CFM poderiam ser seguidas pelo sistema de saúde privado e, na inércia do Ministério da Saúde, pelo sistema público. O CFM, além de contar com comissões de bioética, também pode trazer outros setores para a discussão, na medida em que escolher quem deve ser alocado em um leito envolve questões médicas, mas também passa por uma análise jurídica à luz da Constituição Federal. Um ato normativo do CFM também teria alcance nacional, o que promoveria a equidade no acesso à saúde.

Protocolos não-oficiais e escolha por algoritmo
Ocorre que, até o presente momento, nem o Ministério da Saúde, nem o CFM perceberam a importância da questão. Justamente por isso, algumas associações, no vácuo deixado por ambos, acabaram por publicar protocolos para a triagem, inspirados em guidelines elaborados em outros países.

No mês de abril, a AMIB — Associação de Medicina Intensiva Brasileira publicou um protocolo para alocação de leitos, que foi substituído por outro uma semana depois[1]. Também o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (CREMEPE) e o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) editaram atos para definir quem terá prioridade para a ocupação dos leitos em situação de escassez.

Apesar da fixação de critérios de maneira regionalizada e por entidades privadas não ser o mais recomendável, tais instrumentos representaram um avanço em relação à Resolução 2.156/2016, do CFM.

Outra ferramenta que pode ser utilizada e merece destaque é o algoritmo desenvolvido por uma equipe médica brasileira, cujos resultados já puderam ser testados na prática. A decisão de alocação pelo algoritmo se dá pela análise de quatro fatores objetivos e de fácil compreensão. São eles: necessidade de intervenção ou monitorização, análise de comorbidades, funcionalidades da vida diária e prognóstico do médico[2].

Princípios norteadores
No coração dos principais guidelines elaborados pelas instituições de saúde mais avançadas do mundo, há uma preocupação com o princípio da maximização do bem-estar da população. A ideia é que os recursos médicos escassos devem ser alocados de modo a favorecer, de fato, o maior número de pessoas não só em termos quantitativos, mas também qualitativos.

O princípio da maximização do bem-estar geral tende a adotar três pilares fundamentais que podem se interconectar em uma mesma dinâmica de triagem: (a) priorizar as escolhas que salvem o máximo de vidas possível (saving lives); (b) priorizar as escolhas que salvem o máximo de anos de vida possível (saving life years); (c) priorizar escolhas que salvem o máximo de anos de vida ajustados com a qualidade (saving QALY – Quality-adjusted life year).

Ressalte-se, contudo, que existe uma grande variação de critérios utilizados para atingir cada um desses objetivos, devendo cada protocolo eleger os melhores critérios e desenvolver ferramentas práticas para implementá-los.

Independentemente das premissas eleitas, o princípio básico que deve orientar a alocação de recursos escassos é a igualdade de oportunidades. Desse modo, todos os que precisam do tratamento intensivo devem ter a chance de participar da triagem, concorrendo junto com os outros pacientes em um processo de seleção que utilize critérios objetivos e clinicamente relevantes.

Nenhum critério, ainda que tenha relevância clínica, como doenças pré-existentes, idade ou sexo, deve ser utilizado como um obstáculo absoluto de acesso a unidades de tratamento intensivo. O ideal é que esses fatores sejam considerados dentro de uma escala de prioridades mais ampla, de modo a não excluir qualquer paciente da possibilidade de participar do processo de seleção, mesmo que suas chances sejam mais baixas.

Por isso, os modelos mais avançados evitam estabelecer critérios de exclusão taxativos, optando por criar rankings que levem em conta mais de um fator de análise. Em linha de princípio, todas as pessoas são consideradas elegíveis para participar de um processo de triagem e recebem uma pontuação obtida a partir de uma análise abrangente de tudo aquilo que pode ter relevância clínica.

Por isso, não é recomendável que sejam criados cortes etários fixos no processo de triagem. É certo que a idade pode ter relevância clínica, na medida em que as pessoas mais idosas costumam estar em uma condição de saúde que tende a diminuir as chances de sobrevivência. Porém, é possível que uma pessoa idosa possa ter mais chance de sobrevivência do que uma pessoa mais jovem, sendo injusto desconsiderar uma condição de saúde mais ampla apenas em razão da idade. Nesse sentido, a idade somente deveria ser levada em conta dentro de um sistema de pontuação mais amplo que envolva a análise de outras condições clínicas, como a presença ou não de comorbidades e a chance de sobrevivência aferida objetivamente por algum critério clínico previamente estabelecido.

Para além de estabelecer critérios de triagem, há outros fatores que devem ser abordados pelos protocolos, inclusive de teor procedimental. Um deles é a criação de uma equipe de triagem que possua treinamento adequado com profissionais distintos daqueles que estão no atendimento aos pacientes. O cegamento da equipe de triagem, por meio da restrição de acesso a determinadas informações irrelevantes, como raça, condição social, profissão ou religião, por exemplo, também pode ser outro fator importante, a fim de evitar enviesamento e discriminação. Os protocolos também devem prever a possibilidade de recurso contra a decisão, em situações excepcionais, e a necessidade de que o paciente continue sendo atendido dignamente ainda que não tenha sido escolhido para ocupar o leito. Por fim, é importante que fique definido o período durante o qual as regras serão adotadas, que poderão ser flexibilizadas conforme o grau de escassez existente. 

Considerações finais
Em um contexto de escassez, em que pessoas estão falecendo pela ausência de vagas em leitos de UTI, é de grande importância que sejam estabelecidos critérios objetivos de triagem, a fim de orientar as escolhas dos médicos, hospitais e gestores públicos.

Já existem muitos modelos que podem ser utilizados como ponto de partida para um debate mais amplo, como o modelo de Pittsburgh[3], do Nice[4] e da AMIB, que adotam diversas combinações para proporcionar uma alocação de recursos capaz de promover a maximização do bem-estar. Esses modelos adotam diretrizes baseadas em critérios clínicos, visando salvar mais vidas e mais anos de vida com qualidade, além de se preocupar com as implicações éticas que devem orientar as escolhas trágicas dessa natureza, como a proibição de discriminação e a ótima alocação dos recursos disponíveis.

Embora os custos políticos de estabelecer quais vidas devem ser salvas sejam elevados, o debate precisa ser realizado abertamente. Afinal, a total ausência de critérios tem o potencial de produzir resultados muito piores, capazes de ferir a isonomia consagrada constitucionalmente e dar ensejo à discriminação e a privilégios injustificáveis, além de diminuir a eficácia dos recursos disponíveis. Por isso, o mais importante é que sejam estabelecidos critérios objetivos, transparentes e éticos, visando maximizar o bem-estar da população e garantir o respeito ao direito à vida do maior número de pessoas sem discriminação.

* JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[1]KRETZER, Lara e OUTROS. Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19. Associação de Medicina Intensiva Brasileira – AMIB. Publicado em 01 de maio de 2020. Disponível online: https://tinyurl.com/yda32rgp (consultado em 19/5/2020).

[2]RAMOS, João Gabriel Rosa e outros. A decision-aid tool for ICU admission triage is associated with a reduction in potentially inappropriate intensive care unit admissions. Journal of Critical Care, v. 51, p. 77, 2019. Disponível online: https://tinyurl.com/y7zwhon7.

[3]WHITE, Douglas B. A Model Hospital Policy for Allocating Scarce Critical Care Resources. University of Pittsburgh School of Medicine. Publicado em 23 de março de 2020. Disponível online: https://tinyurl.com/y7j93u4l.

[4] NICE – National Institute for Health and Care Excellence. COVID-19 rapid guideline: critical care in adults (NG159). Disponível on-line: https://tinyurl.com/y9v3fkjs.

 é juiz federal no Ceará, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e mestre em Direito Constitucional pela UFC.

 é juíza federal substituta da 3ª Vara Federal de Curitiba, especializada em saúde.

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Equilíbrio das prestações: recuperação da base objetiva dos contratos

O contrato não é estático, mas dinâmico, assim como a relação obrigacional (na asserção memorável de Clóvis do Couto e Silva, a obrigação como processo).

A ideia de base objetiva tem forte significado diante de um quadro de alteração radical de circunstâncias. Se já não se apresentam mais os mesmos fatos econômicos e sociais, em contraste com os que existiam quando do ajuste, abre-se a perspectiva de recomposição da base do negócio, em busca do retorno a uma posição saudável de equilíbrio contratual.

Em larga escala, a pandemia do novo coronavírus, declarada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020, pressiona as relações contratuais, sem que se possa, por ora, estimar com nitidez o seu alcance, que pode ser devastador.

A teoria da base objetiva do negócio, desenvolvida por Oertmann, logo após a primeira guerra mundial, e aprimorada por Larenz, depois da segunda grande guerra, enriqueceu o quadro doutrinário que contava com construções jurídicas anteriores, como a cláusula rebus sic stantibus, a teoria da pressuposição e a teoria da imprevisão.

Ao longo da história da civilização, não tem sido tão raro que “um fato incomum torne impossível a manutenção daquilo que se estabeleceu”, levando as partes à “contingência de adequar regras já definidas às exigências de eventos supervenientes”.

A humanidade experimentou guerras, revoluções, catástrofes naturais, inúmeras epidemias e pandemias. As teorias mencionadas são soluções imaginadas pelos juristas, e por vezes incorporadas à legislação, para lidar com fenômenos de monstruosa envergadura.

Os contratos supõem uma certa estabilidade, sem a qual se descaracterizam e podem ter esvaziada ou exaurida a respectiva força obrigatória. Por base do negócio entende-se, de tal maneira, o estado geral de coisas cuja existência ou persistência é objetivamente necessária para que o sinalagma subsista, como regulação dotada de sentido.

A teoria da base objetiva influenciou, de forma decisiva, a norma do § 313 do BGB (com a redação dada pela Lei de Modernização do Direito das Obrigações alemão, de 2001) e o art. 437 do Código Civil português, impulsionando ademais a doutrina e a legislação brasileiras.

O caráter vinculante dos contratos não é mitigado porque lhes falte a moralidade ínsita às promessas que reciprocamente são feitas pelos sujeitos que os celebraram: se é verdade que a palavra dada tem um valor moral respeitável e um peso jurídico relevante, não é menos correto que a vontade das partes tenha, há muito tempo, deixado de ser a exclusiva chave hermenêutica para a compreensão do contrato.

O princípio do equilíbrio contratual anima, por um lado, a sempre preferível renegociação, pelas próprias partes, dos termos avençados. Por outro lado, abre a via judicial, conducente à revisão do negócio ou à sua extinção.

A resolução, como modalidade de extinção do vínculo, é evidenciada pelo art. 478 do Código Civil brasileiro, diante de fatos supervenientes que tenham colaborado com feição marcante para a quebra do equilíbrio das prestações das partes. Por isso, tem-se que a comutatividade é a regra, conquanto qualquer álea anormal não seria presumível.

Para evitar a resolução, a lei prevê, como remédio, que o credor ofereça a modificação equitativa das condições do contrato (Código Civil, art. 479).

A resolução, contudo, é medida extremada, tornando mais sensato, mesmo quando o credor não aquiesça, promover-se a revisão do que fora pactuado. Bem antes do Código Civil de 2002, os princípios da boa-fé e da conservação dos negócios já iluminavam a orientação colhida pelo Código de Defesa do Consumidor e de bom grado aceita pela jurisprudência também para os contratos civis e empresariais, ao estipular “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V).

Note-se que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) não eliminou a possibilidade de revisão, a despeito de ter coarctado sua incidência, no contexto de ingerência estatal mínima sobre os negócios. O art. 421 do Código Civil recebeu o acréscimo de um parágrafo único, com a seguinte redação: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.

Ao indesejável risco da resolução, como expediente que, não obstante, permanece em vigor, acrescente-se o apego, de parte da literatura jurídica brasileira, a uma concepção de imprevisão de perfil subjetivista, que não é a melhor construção a que se pode chegar sob a égide do princípio do equilíbrio entre as partes. O que sustenta a revisão do contrato não é o caráter imprevisível dos fatos supervenientes que venham a atingir a base do negócio, mas a necessidade elementar de se manter a paridade entre os contratantes.

Essa vertente da teoria da imprevisão se revela insuficiente, dado o voluntarismo psicológico de que é infiltrada, e resulta inapta a fornecer respostas para problemas como a excessiva dificuldade da prestação e a frustração dos fins do contrato.

O critério da anormalidade da alteração de circunstâncias se afigura mais apropriado que o da imprevisibilidade, permitindo, razoavelmente, conjugado com a boa-fé, fundamentar a resolução ou a revisão do contrato.

Dado que o equilíbrio contratual remete à igualdade, a resolução ou a revisão do contrato em razão da alteração grave de circunstâncias são expressões de uma exigência fundamental do ordenamento. A paridade é a ratio que enseja a proporcionalidade nas relações contratuais privadas.

É imperativo ter em conta, todavia, que a atuação judicial sobre os contratos, quando açodada, em vez de reequilibrar os sujeitos envolvidos, pode gerar ainda maior desequilíbrio, além de romper a segurança jurídica. Têm-se visto, desde a eclosão da pandemia, algumas decisões judiciais que, embora a pretexto de salvaguardar valores caros ao ordenamento, como a dignidade da pessoa humana, suscitam intercorrências potencialmente desastrosas, em curto, médio e longo prazos, ao tutelar uma das partes, mas à custa do aniquilamento da outra.

A pandemia não é sectária, não se atendo a prejudicar apenas uma das partes, de tal modo que a atuação estatal não há de perder de vista a habitual bilateralidade do contrato, a dependência recíproca das prestações.

As relações jurídicas em que haja um sujeito protegido em especial, como o consumidor, ostentam um perfil diferenciado, fazendo sentido que a lei nacional estabeleça, por ora, alguma espécie de mecanismo transitório, como, por exemplo, uma exceção dilatória em vista de eventual mora do devedor.

Entretanto, no campo dos contratos do direito comum, de natureza civil e empresarial, a pressa legislativa, politicamente oportunista, no calor dos acontecimentos, pode ser ruinosa. Na esfera federal, ressalve-se, tramita o Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, com alicerces doutrinários idôneos. Por sua vez, nos níveis estadual e municipal da federação brasileira, têm sido editadas deletérias leis de ocasião que, com frequência, nascem inconstitucionais.

Posto que a base do negócio, como qualquer outra teoria, não seja isenta de críticas, representa uma fórmula maleável e adaptável a uma variedade incontável de situações práticas, que o legislador não teria como esgotar.

A atuação judicial precisa ser bastante prudente, de preferência a posteriori da pandemia, para resguardar e oportunamente restaurar, com o imperioso amadurecimento dos fatos, a comutatividade contratual.

Enquanto não é sequer possível medir a intensidade e a duração da crise sanitária, que pode se prolongar por vários meses, havendo tantas indefinições e grandes desafios, não parece aconselhável redesenhar relações obrigacionais, sobretudo para afastar o cumprimento de prestações que não tenham objetivamente deixado de ser exequíveis, sem embargo de seu exame percuciente no porvir.

Assim como os seres humanos, os contratos não são imortais. Como escreveu Carnelutti, “a experiência de sua mortalidade é o valor da crise”. Que as pessoas sobrevivam e que os contratos subsistam, é o que se espera.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


“Com a expressão ‘obrigação como processo’, tenciona-se sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência”. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 20.

OERTMANN, Paul. Die Geschäftsgrundlage: ein neuer Rechtsbegriff. Leipzig: Deichert, 1921. Para esse autor, a base do negócio denota a representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou a representação comum às partes, sobre a presença de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a formação da vontade.

LARENZ, Karl. Geschäftsgrundlage und Vertragserfüllung: die Bedeutung “veränderter Umstände” im Zivilrecht. München: Beck, 1951. O jurista difere a base subjetiva e a base objetiva do negócio. Enquanto a primeira abrange as representações mentais sobre as quais as partes concluíram o acordo, a segunda traduz as circunstâncias pressupostas, mesmo sem que delas tenham as partes consciência, tais como a manutenção da legislação ou de determinado sistema econômico. Dissipa-se a base objetiva do negócio quando há uma perturbação na equivalência das prestações ou uma frustração do escopo do contrato.

ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations: roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 579 e seguintes.

A pressuposição corresponderia a uma condição não desenvolvida, isto é, não expressa, mas da qual os contratantes fariam depender a validade da sua estipulação. WINDSCHEID, Bernhard. Die Lehre des römischen Rechts von der Voraussetzung. Düsseldorf: Julius Buddeus, 1850, p. 3.

Para um bem construído estudo histórico, veja-se: RODRIGUES Junior, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 32 e seguintes.

BORGES, Nelson. A teoria da imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 70.

“No sentido de base objetiva do negócio (isto é, de que o negócio jurídico, segundo o conceito imanente de justiça comutativa, supõe a coexistência de uma série de circunstâncias econômicas, sem as quais ele se descaracteriza), sem dúvida alguma vige e é utilizável em nosso direito. Nesse sentido, escreve Siebert, desaparece a base do negócio jurídico, quando a relação de equiponderância entre prestação e contraprestação se deteriora em tão grande medida, que de todo modo compreensível não se pode mais falar de ‘contraprestação’ (teoria da equivalência)”. COUTO E SILVA, Clóvis. Op. cit., p. 108.

KHAYAT, Gabriel; SAAD, Gustavo. O necessário estudo do art. 437 do Código Civil português. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 99, p. 240, mar./abr. 2019.

ATIYAH, Patrick. The Rise and Fall of Freedom of Contract. Oxford: Clarendon, 2000, p. 731.

Em corajoso sentido minoritário, a defender, à luz do art. 479 do Código Civil, que é somente do credor a legitimidade para postular a modificação do contrato afetado pela excessiva onerosidade superveniente, vide: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Revisão contratual: onerosidade excessiva e modificação contratual equitativa. São Paulo: Almedina, 2020, p. 71 e seguintes.

“Portanto, dispensa-se a imprevisibilidade nos casos em que a boa-fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente da manutenção da circunstância alterada”. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 9. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 304.

Nos dois sentidos de “princípio da igualdade perante a lei contratual” e de “princípio de equivalência na economia geral do contrato”. BERTHIAU, Denis. Le principe d’egalité et le droit civil des contrats. Paris: LGDJ, 1999, p. 13.

A dignidade da pessoa humana deixou, lastimosamente, de expressar a essência do ser (na acepção em que a filosofia kantiana distingue as pessoas das coisas), como fundamento para a proteção das situações subjetivas existenciais, para se tornar, em vez disso, um elemento do discurso legitimador das decisões judiciais, quaisquer que sejam elas. Constituiu-se, assim, uma caricatura inigualável, engendrada a suprir debilidades argumentativas. Seja consentido remeter a: MATTIETTO, Leonardo. Estado de direito, jurisdição e dignidade humana. Lex humana, Petrópolis, v. 11, n. 1, p. 97-109, jan./jun. 2019.

A providência seria inspirada na lei alemã de mitigação das consequências da pandemia (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), de 27 de março de 2020. Para a defesa de sua implantação no direito brasileiro, vide: MARQUES, Claudia Lima; BERTONCELLO, Karen; LIMA, Clarissa Costa. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de covid-19. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 129, p. 1-23, maio/jun. 2020.

CORDEIRO, António Menezes. Da alteração das circunstâncias. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1987, p. 30.

CARNELUTTI, Francesco. La morte del diritto. In: La crisi del diritto. Padova: CEDAM, 1953, p. 183.

 é professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde coordena o Curso de Mestrado em Direito, professor na UCAM, mestre e doutor em Direito pela UERJ, e procurador do Estado do Rio de Janeiro

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Soliano: A negociação público-privada durante e após a pandemia

No último dia 25, completou dois anos da publicação da Lei Federal nº 13.665/18, diploma que promoveu expansão substancial do Decreto-Lei nº 4.657/1942, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Conhecida por alguns como “a nova LINDB”, os novos dispositivos se voltam especificamente para as múltiplas dimensões de aplicação do direito público: administrativa, controladora ou judicial.

Entre as várias inovações positivas, a alteração na LINDB inseriu no ordenamento jurídico dispositivo que autoriza a realização de compromisso entre a Administração Pública e particulares. Embora não tenha sido uma inovação plena, afinal outros mecanismos similares já existiam (TACs, acordos de leniência, colaboração premiada, acordos substitutivos no âmbito das agências reguladoras, termos de compromisso no âmbito da CVM, termos de cessação de conduta no âmbito do CADE, etc.), o artigo 26 da LINDB universalizou e consagrou, em definitivo, a consensualidade como um instrumental de ação administrativa.

Estabelece o dispositivo que para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público (hipóteses), inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral (pressupostos), celebrar compromisso com os interessados (meio), observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial (condição de eficácia)“. Por fim, dispõe sobre os elementos fundamentais do compromisso no seu parágrafo primeiro.

O dispositivo, portanto, contribui para a substituição de uma administração que só age de forma impositiva e unilateral por uma administração que também negocia, busca consensos e ajusta acordos de vontade. O pressuposto fundamental é que a consensualidade pode ser mais útil, eficiente e democrática do que a imposição unilateral de vontades da Administração e do que arrastar discussões administrativas e/ou judiciais por anos.

Apesar do potencial positivo do artigo 26, passados dois anos de sua publicação ainda é difícil encontrar autoridades administrativas que dele se utilizem. Em verdade, muitas autoridades desconhecem a sua existência. Assim, salvo a regulamentação federal por meio do Decreto nº 9.830/2019 e os regramentos e práticas dos órgãos e entidades que já se utilizavam da negociação antes da alteração na LINDB, o artigo 26 ainda aguarda sua plena implementação.

Entende-se que a não utilização do permissivo criado pelo dispositivo se deve, em parte, à sua não regulamentação pela maioria dos entes federados. Embora a regulamentação não seja uma condição de validade e eficácia da negociação público-privada, ela dá ao gestor e ao particular maior certeza e segurança sobre a licitude e estabilidade do negócio, além de deixar mais claro a sua possibilidade abstrata.

Contudo, a atípica situação por qual passa o país (e o mundo) pode funcionar como um fator de estímulo à ampliação da atividade negocial do Poder Público.

Por um lado, é certo que as situações de excepcionalidade, urgência, calamidade, etc. tendem a requerer e justificar ações estatais com alto teor de coerção e restrição. Por outro lado, entretanto, não é menos verdadeiro que mesmo nessas situações a negociação e o consenso podem ser caminhos produtivos. Isto é ainda mais verdadeiro quando se tem em mente a quantidade e variedade de controvérsias jurídico-administrativas que surgirão após o fim da situação de calamidade ou mesmo durante a progressiva transição de volta à “normalidade”.

Entre outras, pode-se imaginar diversas situações de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa que poderão emergir durante e depois do período de crise: I) desequilíbrios econômico-financeiro de contratos, sejam eles de concessão, sejam de obras regidas pelo RDC, sejam de obras submetidas ao regime ordinário, sejam os de prestação de serviço e/ou de entrega de bens; II) descumprimentos contratuais os mais diversos (prazo, objeto, modo, informação, etc.) e nos mais diversos tipos de contratos; III) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados de requisições administrativas ou desapropriações (in)diretas; IV) prejuízos, potenciais ou consumados, derivados da imposição de limitações administrativas ou expropriações regulatórias/ordenadoras, temporárias ou não; V) desrespeito a medidas a todos impostas; VI) incertezas sobre a incidência ou não de vedações/limitações em decorrência da pluralidade de atividades exercidas pelo particular; VII) dúvidas sobre a licitude de determinadas condutas em decorrência da sobreposição de vedações e não-vedações por entes federados diversos; VIII) incertezas sobre o trâmite, o estado ou os prazos dos processos administrativos decorrentes da enorme quantidade de atos normativos publicados e da extrema dificuldade de acompanhá-los; e IX) ações de improbidade e procedimentos administrativos de investigação e punição de servidores a respeito de suas posturas, orientações e decisões durante o período de calamidade.

Ademais, mesmo com a suspensão da vida ordinária, as mais variadas controvérsias administrativas que não possuem qualquer relação com a pandemia certamente continuam surgindo diariamente.

É evidente que a variedade de situações é grande, assim como suas complexidades e impactos sociais e/ou individuais. Diversas delas estão ligadas à aplicação ou não de sanções, muitas estão atreladas à continuidade regular de atividades essenciais ou simplesmente importantes, a maioria envolve questões de insegurança jurídica.

Este parece ser um ambiente fértil para intensificar a realizações de negociações público-privadas. A sobrecarga de processos administrativos com potencial de se alongarem por muito tempo, em esfera administrativa e judicial, recomenda uma ação conciliadora e negocial do Poder Público. O negócio público-privado antecipa no tempo a satisfação do interesse público, descarrega a administração sancionadora e impositiva para lidar com questões em que a negociação se mostrar impossível ou inviável, minimiza a necessidade de judicialização, possui uma tendência a estimular o cumprimento pelo particular maior do que a continuidade da controvérsia e, ao menos em tese, possui menos custos de transação do que as alternativas. Adotar, por princípio ou viés de inércia, uma postura não-negocial pode se traduzir em ineficiência e prejuízo ao interesse público.

Vale destacar que o regramento criado pelo artigo 26 da LINDB é amplo o suficiente para autorizar os mais variados tipos de negociações e compromissos. Embora seja possível e até recomendável ao administrador olhar para práticas e modelos já consolidados de negociação público-privada, ele não está obrigado a segui-los. Há espaço para criatividade e modelagens de soluções ‘fora da caixa”. Em verdade, a situação de excepcionalidade que vivemos clama por soluções inovadoras.

Evidentemente que esse campo de criatividade deverá estar pautado não apenas pelos pressupostos e condições acima delineados, mas, também, pela ampla transparência, publicidade e adequada e específica motivação/fundamentação. A negociação público-privada é uma forma de agir administrativo, razão pela qual segue balizada pelos princípios que regem escolhas públicas.

Poder-se-ia arguir que a quantidade de situações conflituosas, de incerteza ou de irregularidade será tão grande que o ideal seria, ao invés da celebração de acordos público-privados, a elaboração de um regime especial estabelecido em lei. Embora um regime legal apresente relevantes aspectos positivos, estas alternativas não são e não podem ser excludentes. Isso porque, ainda que se institua regimes especiais ou de transição, haverá sempre a possibilidade de incerteza jurídica, situação contenciosa ou existência ou não de irregularidade a respeito da sua aplicação. Ou seja, a edição de lei não torna a atividade administrativa-negocial desnecessária.

Em um cenário de possíveis múltiplas negociações público-privadas, os órgãos de controle deverão atuar em uma linha tênue. Por um lado, devem estar atentos para que as negociações público-privado não se transformem em uma válvula de escape para o esvaziamento completo da legalidade ou para capturas particularistas. Os objetivos, mecanismos, pressupostos e condições deverão estar presentes e motivados. Por outro lado, devem: I) reconhecer a licitude e legitimidade abstrata da consensualidade administrativa e das negociações público-privadas; II) presumir a boa-fé do particular e do gestor; III) não pretender se substituírem aos gestores; e IV) considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (artigo 22 da LINDB).

As situações de excepcionalidade não precisam ser conduzidas apenas pelo “Direito Administrativo raiz” (autoridade, unilateralidade, imposição), como quis um meme que circulou nas redes sociais nas primeiras semanas da quarentena. Pode ser também um momento em que o convívio entre coerção (sempre limitada e condicionada) e negociação (sempre limitada e condicionada) seja não só possível, mas necessário. A manutenção desta convivência no médio e longo prazo pode ser um legado positivo do momento atípico que se vive.

 é advogado do Rego, Nolasco & Lins Advogados, professor de Direito Econômica da Faculdade Baiana de Direito, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/BA e mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).