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Clark e Bagno: A conduta dos planos durante a Covid-19

Nos últimos anos no Brasil, as políticas neoliberais de regulação e de austeridade [1] ganhou vozes e ações realizando uma transformação no papel do Estado, via redução drástica do Estado Empresário e modificação da legislação em prol da setor privado,  “revivendo” um suposto e idealizado Estado Mínimo, de Adam Smith, do final do século  18 e do inicio da revolução industrial.

Assim, os questionamentos quantos aos limites dos poderes regulatórios públicos fomentam os debates, cujos argumentos devem ser colhidos e criticados, de modo a verificar a pertinência e veracidade dos modelos implementados.

Especificamente no campo da saúde, há quem argumente que a ação do Estado causou a diminuição da quantidade das operadoras privadas de planos de saúde no país, ou mesmo teria diminuído a flexibilização dos planos comercializados, com limitação à autonomia da vontade do consumidor e ao aumento da eficiência do setor.

Por outro lado, os defensores da presença regulatória do Estado indicam sua necessidade na defesa dos interesses da coletividade e para proteger/viabilizar o direito constitucional à saúde, enquanto serviço público executado pelo setor privado.

Nesse debate, interessante observar o comportamento dos agentes privados do segmento de saúde diante da pandemia do coronavírus (Covid-19), de modo a validar, ou invalidar, as visões apresentadas quanto a ação estatal na saúde ou não.

Assim, após a constatação de que a pandemia da Covid-19 havia chegado ao Brasil, observou-se um considerável movimento por parte da operadoras privadas de planos de saúde no sentido de negar cobertura à realização de exames clínicos para o diagnóstico e aos procedimentos terapêuticos necessários as enfermidades do Coronavírus, bem como impor limites ao período de internação hospitalar.

Nesse sentido, a Diretoria de Fiscalização da ANS elaborou material interativo, disponibilizado em seu sitio eletrônico [2], com a análise numérica dos efeitos da Covid-19 na saúde suplementar. Dentre os dados apresentados, verifica-se que no comparativo de março e abril de 2020, o número de reclamações por negativa de cobertura para exame mais que dobrou — aumento de 150% — e as reclamações por negativa de cobertura para tratamento ou internação aumentaram mais cerca de 600%.

A conduta dos planos privados de saúde chamou a atenção do Ministério Público Federal e em 19 de março de 2020 ele expediu ofício n.º 43/2020/AC/3CCR solicitando à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) providencias garantidoras da manutenção dos serviços médicos aos beneficiários [3].

Igualmente preocupada com postura das operadoras privadas de plano de saúde, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública [4] em desfavor das seis principais operadoras do Estado, com o objetivo de garantir judicialmente os direitos dos beneficiários de acesso aos exames para diagnóstico e procedimentos de tratamentos indispensáveis à Covid-19.

Quanto ao referido pleito ajuizado, o juízo competente proferiu decisão liminar determinando às operadoras rés a liberação imediata de cobertura para o atendimento e tratamento em favor dos beneficiários suspeitos ou portadores da Covid-19, sob pena de multa de R$ 50 mil por paciente.

Dito isso, de pronto o argumento de que a ausência da ação estatal no setor da saúde aumenta sua eficiência passa a se tornar mito, uma vez que diante da pandemia sanitária internacional, a postura dos principais agentes do dito setor privado foi de negar a prestação de serviço e não torná-la mais eficiente e disponível.

Ademais, é necessário apontar que as condutas adotadas acima, no caso da Covid-19, se tornam ainda mais grave, pois a saúde trata-se de um direito social previsto na Constituição de 1988, nos termos do art. 6º, reconhecendo-se, portanto, o seu caráter básico na própria existência humana [5].

Na nossa ordem constitucional, o Estado (art. 196 da CR) é o verdadeiro responsável por assegurar o acesso aos serviços e ações na promoção, proteção e recuperação da saúde de cada indivíduo, bem como da coletividade, estabelecendo uma atuação estatal imprescindível, inclusive quando o setor privado presta tal serviço público.

Paralelamente, o texto constitucional também abriu oportunidade para a participação do setor privado na área do serviço público de saúde, nos termos do art. 197 e seguintes, dando sustentáculo ao já formado segmento da saúde suplementar no Brasil, que se desenvolveu nos últimos vinte anos sob a regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), nos termos da Lei Federal de n. 9.656/98.

No caso da pandemia, os comandos constitucionais e outros dispositivos infraconstitucionais são essenciais para obrigar as operadoras privadas de plano de saúde a cumprirem os contratos anteriormente firmados e garantir a assistência médicas de seus beneficiários.

Especificamente a respeito das medidas observadas no cenário de pandemia, deve-se registrar que a cobertura dos exames de detecção e infecção da Covid-19 já integram os planos de saúde básicos, nos termos do art. 10 da Lei n.º 9.656/98 [6] não havendo de se falar em negativa por parte das operadoras privadas. Igualmente, a limitação do período de internação hospitalar também encontra-se expressamente vedada pelo art. 12 da referida lei [7].

Outro argumento utilizado pelas operadoras privadas para a negativa de cobertura foi em relação ao período de carência dos contratos, contudo, como também se sabe, inclusive nos casos das doenças motivadas pela pandemia, a carência dos planos deve se aplicar os termos da Resolução n.º 259/2011 da ANS [8], ou seja: três dias para exames laboratoriais e tratamento imediato nos casos urgentes ou emergentes.

Por fim, as operadoras privadas de saúde também argumentaram que a Covid-19 não estaria relacionado nas doenças de cobertura obrigatória dos seus planos, e por consequências elas não teriam o dever de oferecerem coberturas nos tratamentos das enfermidades causadas pelo vírus.

Em resposta, a ANS demonstrou que tais doenças estão cobertas no plano básico em vigor e, para sanar qualquer debate, editou a Resolução n.º 453/2020 [9], incluindo de forma expressa os procedimentos e exame de Covid-19 no rol de cobertura de procedimentos obrigatórios.

Assim, se considerada apenas a legislação vigente, não haveria dúvidas de que os beneficiários de planos de saúde privado estariam cobertos, tendo assistência medica e hospitalar garantidas, no cenário de pandemia.

Além disso, a ANS também propôs um termo de compromisso com as operadoras privadas de plano de saúde para que elas mantivessem o pagamento dos profissionais e de estabelecimentos de saúde; abrirem canais de renegociação para os planos individuais, familiares e coletivos com até 29 vidas, administrando inclusive as eventuais inadimplência. Em contrapartida, a ANS flexibilizaria as regras de resgate de cerca de R$ 15 bilhões do fundo de reserva [10]. Fundo esse mantido como garantidor das operações das próprias operadoras privadas, nos termos da Resolução n.º 392/2015 da ANS [11]. Contudo, apenas nove operadoras aderiu ao termo [12].

Ademais, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar, um de cada quatro brasileiros são beneficiários de planos de saúde, sendo que no terceiro trimestre de 2019, a saúde suplementar teria registrado um total de R$ 158,7 bilhões em receita de contraprestações [13]. A título de comparação dos valores, o orçamento federal para a saúde no exercício de 2019 foi de R$ 127,07 bilhões, segundo o portal da transparência [14].

Não obstante, mesmo com a clareza da legislação e as ações da ANS, verificou-se na pratica negativas e abusos cometidos pelas operadoras privadas de planos de saúde. Assim, se constata que, posto a prova, ao menos no segmento da saúde privada brasileira, ficou evidente que a ação estatal é crucial a fim de garantir o direito constitucional da população.

Afinal, tão logo instaurada a pandemia e a ampliação das demandas de assistência médica e laboratoriais da enfermidades da Covid-19 e, consequentemente, o “aumento” no custo da prestação de serviços supostamente não contabilizados nas projeções financeiras realizadas, a reação imediata das operadoras privadas de plano de saúde foi pela negativa de cobertura, haja vista o aumento das reclamações por recusa de cobertura de exame e tratamentos [2].

Desse modo, considerando-se a pandemia um cenário teste das políticas econômicas neoliberais [15] brasileiras, a partir dos anos 90 do século 20 (regulação e austeridade), constatou-se a evidente necessidade do planejamento de política pública de saúde, e nesse caso concreto, com ações coordenadas e democráticas no combate à pandemia, devendo envolver o setor de saúde suplementar, mas sob a coordenação, regulação e atuação dos poderes públicos nacionais.

REFERÊNCIAS:

[1] CLARK, Giovani. CORRÊA, Leonardo Alves. NASCIMENTO, Samuel Pontes do. A Constituição Econômica entre a Efetivação e os Bloqueios Institucionais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n, 71, p. 677-700, jul/dez 2017.

[2] Estudo disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTMzYjNmZDQtODczOC00ZTFmLWJhNzUtNjdlM2FkMjZjMGJmIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9. Acesso em 06/05/2020.

[3] Ofício n. 43/2020/AC/3CCR, expedido pelo Ministério Público Federal, em 19 de março de 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/3CCR_OficioANS.pdf. Acesso em 03/05/2020.

[4] Petição inicial dos autos de n.º 1029663-70.2020.8.26.0100, protocolada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S0018NBY0000&processo.foro=100&processo.numero=1029663-70.2020.8.26.0100&uuidCaptcha=sajcaptcha_2029764602c44b8e8ee31731dee07194. Acesso em 03/05/2020.

[5] SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

[6] Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:

§ 4o A amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS.

[7] Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: I – quando incluir atendimento ambulatorial: a) cobertura de consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina; (…)  I – quando incluir internação hospitalar: a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos;(…)

[8] Art. 3º A operadora deverá garantir o atendimento integral das coberturas referidas no art. 2º nos seguintes prazos: (…) IX – serviços de diagnóstico por laboratório de análises clínicas em regime ambulatorial: em até 3 (três) dias úteis; (…).

[9] [1] Resolução n.º453/2020 da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Art. 1º A presente Resolução altera a Resolução Normativa – RN nº 428, de 07 de novembro de 2017, que dispõe sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde no âmbito da Saúde Suplementar, para regulamentar a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo Coronavírus.

Art. 2º O Anexo I da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido do seguinte item, “SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – pesquisa por RT – PCR (com diretriz de utilização)”, conforme Anexo I desta Resolução.

Art. 3º O Anexo II da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido dos itens, SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – PESQUISA POR RT-PCR cobertura obrigatória quando o paciente se enquadrar na definição de caso suspeito ou provável de doença pelo Coronavírus 2019 (COVID-19) definido pelo Ministério da Saúde, conforme Anexo II desta Resolução.

[10] Informação disponível em: http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5481-ans-divulga-termo-de-compromisso-para-liberacao-de-recursos-as-operadoras. Acesso em 06/05/2020.

[11] Informação disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=MzE1M. Acesso em 06/05/2020.

[12]Informação disponível em: https://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5497-coronavirus-ans-divulga-operadoras-que-aderiram-ao-termo-de-compromisso. Acesso em 06/05/2020.

[13] Informação disponível em: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor/sala-de-situacao. Acesso em 05/05/2020.

[14] Dados do Portal da Transparência. Disponível em:http://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/10-saude?ano=2019. Acesso em 03/05/2020.

[15] SOUZA, Washignton Peluso Albino. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.

 é professor de Direito Econômico das faculdades de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da PUC Minas.

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O Estado de Direito em modo de operação de anormalidade

A partir da constatação de que a pandemia da Covid-19 encontra sua natureza jurídica no conceito de desastre, como tivemos oportunidade de demonstrar, seu sentido atua como um elemento jurídico comum capaz de promover a integração do Direito dos Desastres com as demais áreas jurídicas. Neste processo de integração, desencadeado pela configuração de um evento social como desastre, o Direito dos Desastres irradia aos demais ramos o cumprimento conjunto de diversas funções para a retomada da estabilidade. Para tanto, as demais áreas do Direito são “ativadas” para cumprir funções determinadas pelo Estado de Direito em modo de operação de anormalidade. Para tanto, a juridicidade neste “modo operacional” ganha a denominação de Direito dos Desastres, sendo este um ramo jurídico estruturado para o resgate da estabilidade social perdida por uma determinada comunidade atingida por um evento apto a retirar substancial ou parcialmente a capacidade de resposta de um ente público (União, Estado e Município).

Aos estados e municípios cabe a decretação de “Situação de Emergência” ou “Estado de Calamidade”, quando há a perda da capacidade de resposta é substancial ou parcial, respectivamente. Já para a União há a possibilidade desta fazer uso, excepcional, dos regimes constitucionais inerentes ao “Estado de Defesa” ou ao “Estado de Sítio.” Cumpre esclarecer que, apesar das diferenças significativas entre os requisitos e configurações destes institutos constitucionais com aqueles afetos aos estados e municípios, há uma singela identidade. As modulações do Estado Constitucional de Exceção também são estruturadas a partir da distinção entre a perda de estabilidade substancial e maior gravidade, para casos afetos ao “Estado de Sítio”, ou parcial e menor intensidade, no “Estado de Defesa.”

No caso da pandemia da Covid-19, o recurso ao Estado de Defesa, em razão da “calamidade de grandes proporções” decorrente da emergência de saúde pública, é uma medida extrema inerente ao próprio Estado Democrático de Direito para retomar a estabilidade, quando comprometida. Constitucionalmente, o Estado de Defesa se trata de um Estado de Emergência, conformado constitucionalmente em um “regime específico para situações de crise, compatível com os princípios estruturantes do Estado de direito democrático.” Não se trata jamais de um Estado de Não-Direito, muito pelo contrário. Se trata de um Estado de Direito em modo operacional em anormalidade, como acima dissemos. As restrições aos direitos fundamentais decorrentes desta conjectura constitucional se justificam apenas para a “salvaguarda de outros bens constitucionalmente protegidos” e que, no caso, se trata da saúde pública nacional. É exatamente aqui que se deve ter uma atenção redobrada para os perigos do autoritarismo, decorrentes de Estados de Exceção. Por este motivo, o Estado de Defesa apenas pode ser legítimo quando a própria lei fundamental fixar seus pressupostos, competências, instrumentos, procedimentos e consequências jurídicas, compatibilizando a legalidade extraordinária ao próprio Estado de Direito. Frise-se, o Estado de Exceção é uma previsão constitucional e, portanto, é face extrema do Estado de Direito para recuperar sua estabilidade e “voltar” a uma nova normalidade.

Diversas outras áreas do Direito também apresentam consequências imediatas à superveniência de um evento desta envergadura. Por de trás das diversas consequências imediatas trazidas pela pandemia da Covid-19 ao cotidiano dos mais diversos ramos jurídicos, há um processo de “ativação” de conceitos, padrões de decisão e racionalidades determinada pelo próprio Direito dos Desastres. O escopo é sistemicamente integrar a pluralidade de áreas do Direito para a retomada da estabilidade social e a, assim chamada, “colonização do caos.” Assim, o jurídico atua para a estabilização e não para o seu incremento, fragmentariedade, e aumento da conflituosidade.

A primeira função irradiada pelo Direito dos Desastres consiste em integrar todos os ramos para a adoção de decisões orientadas para a manutenção das operações jurídicas dentro de uma racionalidade própria do Direito, isto é, que cada ramo opere de acordo com os padrões de regras, procedimentos, rotinas e protocolos, sem a adoção de respostas extravagantes (tais como o apelo à moral, religião, crenças etc.) Para tanto, deverá haver uma constante luta contra a ausência de Direito, pois nos desastres há a necessidade de que seja assegurada uma rápida e eficiente atuação contra possíveis violações jurídicas nas comunidades atingidas por eventos graves. Na mesma direção, cabe aos diversos ramos do Direito, integrados no sentido jurídico como da pandemia como desastre, a garantir o devido socorro e atendimento humanitário às vítimas. Além disso, em cenários de riscos potencialmente catastróficos, mesmo que diante de incertezas significativas, as evidências científicas servem como parâmetros de convencimento, servindo como um importante limitador do âmbito da discricionariedade técnica. Contudo, os ensinamentos do Direito dos Desastres aos demais ramos para operarem em modo de anormalidade também chamam a atenção para o cuidado com o uso indevido da pandemia (possibilidade de contratações sem licitação, atos de discriminatórios a grupos já vulneráveis, autoritarismo institucional, apenas para citar alguns). Finalmente, o fio condutor a permear os mais diversos ramos jurídicos para lidar com situações de desastres é marcado por duas categorias centrais ao Direito dos Desastres, (i) o risco e (ii) a vulnerabilidade.

Portanto, a partir da configuração de um evento como desastre todas as demais áreas entram em uma imediata interação com o Direito dos Desastres, em razão da própria declaração de um Estado de Defesa Constitucional, justificado por “calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136 CF). Este processo se dá de forma que o Direito dos Desastres possa, a partir de seus conceitos, normas e princípios, fomentar instrumentos para estabilização das instabilidades inerentes a cada esfera jurídica (relações de consumo, matéria processual, questões do ordem constitucional, relações contratuais empresarias ou civis, relações trabalhistas, cobrança de tributos, administração de tribunais e assim por diante). O Direito dos Desastres exerce tais orientações sem uma relação excludente, mas sim integrativa, a partir da configuração do evento como desastre (pelas declarações de anormalidade). Esta dinâmica encontra-se representada na imagem abaixo.

Agora é hora de avançar a presente análise sobre a compreensão de quais são estes padrões de decisão (standards) que devem orientar o Direito, como um todo, em um momento de Emergência Constitucional. Sem exclusão dos demais ramos, o Direito dos Desastres presta uma orientação de um ramo centrado na colonização do caos, a partir e pelo Direito. A configuração de um evento como desastre, geralmente ocasiona uma hiperprodução de atos normativos e conflitos judiciais nas mais diversas áreas do Direito, porém, tais devem ser integrados por uma racionalidade comum, tendo duas consequências: i) de um lado, uma função jurídica de, a partir da assimilação da anormalidade, encaminhar as rotinas jurídicas e a própria Sociedade na direção de uma nova normalidade, operacionalmente estável; ii) de outro, cada ramo do Direito acaba assimilando e produzindo suas próprias reações específicas, seja no Direito Constitucional, no Direito Privado, Direito Processual Civil, Direito Ambiental, Direito do Trabalho, Direito Administrativo, Direito Tributário e assim por diante.

Portanto, todos estes ramos passarão a (i) ter que exercer sua contribuição para o ciclo de gestão circular do risco em cada uma das fases de um desastre (prevenção e mitigação; resposta emergencial; compensação; reconstrução), a fim de colaborar globalmente com a necessidade de mitigação dos impactos; (ii) enfrentar a necessidade de fornecer estabilidade à situações caóticas, trazendo seus respectivos âmbitos de atuação de um modelo operacional em colapso, para uma nova normalidade; (iii) ter que fornecer absoluta prioridade e adotar como premissa orientadora das decisões jurídicas a função do Direito para redução das vulnerabilidades sociais, físicas ou tecnológicas (informacionais); (iv) diante das incertezas postas em jogo, a maior sensibilidade do Direito às dimensões desta para graduações proporcionais nas medidas preventivas ou precaucionais emergenciais a serem impostas, com parcimônia e equilíbrio; (v) por se tratar de riscos e impactos de grande magnitude, o Direito deve orientar suas decisões a partir de informações cientificas, dotadas de credibilidade, mesmo que estas estejam em estágios iniciais de testes ou pesquisas, de incertezas ou mesmo ante a precariedade de dados.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Conforme texto escrito para a ConJur na coluna “Direito em Pós-Graduação”, publicado no dia 21.04.2020. https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/direito-pos-graduacao-natureza-juridica-pandemia-covid-19-desastre-biologico

Art. 2.º, III, do Dec. 7.257/10.

Art. 2.º, IV, do Dec. 7.257/10.

Art. 136 CF.

Art. 137 CF.

CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constitucional. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1.099.

Idem, ibidem. p. 1.104.

 é pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres, University of California, Berkeley, EUA (com bolsa CAPES); doutor e mestre em Direito Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, nível Mestrado e Doutorado.

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Desafios da consensualidade na administração em tempos de Covid

O avanço da pandemia do novo coronavírus tem aumentado os desafios para o administrador público. Respostas rápidas e eficientes são cada vez mais urgentes e estimulam a busca por soluções inovadoras, experimentais e compatíveis com a juridicidade.

Uma justificação para a busca por novos caminhos está em como a singularidade do evento tem evidenciado as limitações dos mecanismos tradicionais colocados à disposição do gestor público para tomar decisões no que já se chamou de Estado Administrativo de Emergência. A publicação da MP 961, que autoriza pagamentos antecipados, aumenta alguns limites de dispensa de licitação e amplia o uso do RDC durante o estado de calamidade pública, ao lado de críticas à aplicação da teoria da imprevisão aos contratos de concessão são apenas exemplos do reconhecimento de limites, respectivamente, legais e dogmáticos de ferramentas jurídicas rotineiramente invocadas até pouco tempo para lidar com excepcionalidades. Processos administrativos e ações judiciais mostram-se, na mesma linha, igualmente problemáticos por serem custosos, excessivamente rígidos e permeáveis a assimetrias de informações.

Um dos caminhos promissores para enfrentar os desafios impostos pela pandemia para a saúde pública e a economia tem sido o recurso a mecanismos consensuais de solução de problemas. A negociação administrativa e a criação de crisis dispute boards, como sugere Egon Bockmann Moreira, seriam exemplos nesse sentido. Se a consensualidade, na forma de acordos, já havia recebido impulso significativo com as alterações promovidas em 2018 pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente pela inclusão do seu artigo 26, o atual cenário só amplifica a sua importância.

Incentivar a busca pelo diálogo e a abertura à participação, no entanto, encontra desafios de pelo menos duas naturezas. O primeiro seria cultural. A opção pela via consensual nem sempre é priorizada – ou considerada possível – pelo administrador. Segundo Voronoff, (i) um ranço autoritário por parte da Administração, (ii) a insegurança sobre a validade e a definitividade dos acordos, (iii) o nível de capacitação da Administração, (iv) os impactos sobre o dever de motivação produzidos pela elevação dos ônus de argumentação para sustentação da preferência pela negociação e (v) a tradicional associação entre a imposição de soluções unilaterais e realização do interesse público seriam as principais causas dessas primeira dificuldade. Lidar com esses fatores exige repensar diversas premissas que moldam a compreensão e a atuação da Administração. A pandemia, ao que tudo indica, vem contribuindo para acelerar esse processo.

O segundo desafio seria de natureza propriamente operacional. Se o artigo 26 da LINDB é uma das principais bases no direito positivo para a celebração de compromisso entre a Administração e interessados, como aplicá-lo adequadamente? A pergunta se justifica tanto pelo recurso legislativo a termos e expressões vagas como pela necessidade de compatibilização do dispositivo com a segurança jurídica, indicada como central na aplicação de qualquer norma pelo artigo 30 da própria LINDB.

A busca pela operacionalização do dispositivo, que se predestina a “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, pode se dar a partir do investimento em soluções procedimentais capazes de contribuir, incrementalmente, para a justificação da necessidade do acordo e da adequação dos seus termos. Nesse sentido, antes da estipulação (i) das obrigações das partes (que não poderão desonerar permanentemente dever legal), (ii) do prazo para cumprimento, (iii) das sanções (art. 26, §1º, III e IV) e (iv) da publicação do ato (art. 26, caput), há de se definir uma trajetória a ser percorrida, com propensão para a identificação, por exemplo, da relação entre o objeto do acordo e a pandemia, do nível de impacto, do nível de esforço a ser atribuído às partes e da possibilidade de replicação automática do resultado para agentes privados em situação paritária. A boa notícia é que parte do percurso já se encontra definido em lei.

É certo que há muita indeterminação a ser superada. O inciso I, do § 1º, do artigo 26 investe numa exigente justificação focada na otimização de transações específicas pelo aproveitamento máximo de informações e habilidades do gestor que, na prática, tem pouca propensão de ser cumprida. A aplicação de critérios como interesses gerais, solução equânime, proporcionalidade e eficiência recomenda que o órgão jurídico da autoridade administrativa intervenha não somente na qualidade de parecerista (art. 26, caput), mas, sempre que possível, como agente estruturante da vontade administrativa em formação, conjuntamente com a área técnica de competência (inc. III, § 4º, art. 10º, do Decreto Federal nº 9.830/2019). Pela associação das razões de ambas as áreas, inclusive, é que também poderá ser dirimida a necessidade (ou não) de audiência pública para a salvaguarda de eventuais interesses outros não vinculados imediatamente às vontades dos acordantes.

Outra peça de valor disponível no direito positivo para a construção de um acordo é a instituição de câmaras de mediação e conciliação no órgão competente para transigir, conforme art. 174 do CPC e art. 32, II, da Lei n. 13.140/2015. Embora facultativa, a criação dessas câmaras soa altamente recomendável, tanto para afastar eventual viés decorrente da combinação de persecução com a função de transigir, como para tentar elevar a qualidade do acordo e dificultar a captura. Neste esforço dogmático já fora dos lindes da LINDB, não poderia faltar, em complementação, a referência à Lei n. 9.784/99. Em específico, dela podem ser extraídos (i) os critérios de condução procedimental consignados em seus arts. 2º e 3º, dentre os quais se destacam a objetividade, a publicidade e a indicação de pressupostos de fato e de direito, assim como (ii) a imposição de especial ônus de argumentação ao administrado, na forma do seu art. 4º, com força para ensejar a necessidade de que o agente particular especifique de antemão a compatibilidade entre aquilo que propõe para o acordo e as determinações do art. 26 da LINDB.

Para além dessas diretrizes, ainda é possível vislumbrar outras medidas que poderão ser (re)modeláveis à luz das contingências de cada órgão ou mesmo de cada caso em que esses sejam chamado a decidir. São elas: (i) a indicação de manutenção do mundo “como está”, em casos de incerteza radical sobre os efeitos futuros do acordo (ou de custos excessivos para a sua superação); (ii) a obrigatoriedade de análise, pela Administração Pública, do histórico comportamental do(s) proponente(s), como forma de identificar a verdadeira excepcionalidade da medida; (iii) a criação de mecanismos de vinculação para a solução de casos futuros à luz dos precedentes criados; (iv) o estabelecimento de patamar limite de valor, sendo que, acima do limite fixado, a autorização para transacionar — por dever ser ainda mais excepcional — demandaria uma intervenção de agente público com competências que o coloquem em posição “superior” (e.g.: procurador geral); (v) a verificação da existência de um programa efetivo de compliance pelo agente privado; e (vi) a criação de sistemas de monitoramento de resultados dos acordos administrativos já celebrados.

A impressão é a de que, por meio da identificação e observância de parâmetros procedimentais, como os delineados ao longo deste texto ou outros que podem ser a eles agregados, há potencial para aumentar a racionalidade decisória da atuação administrativa (inclusive para fundamentar que a via negocial ou alguma forma de acordo não deve, em determinado caso, ser privilegiada) e facilitar o monitoramento das ações de todos os envolvidos em tempos tão difíceis. Pensando em como se concretiza um instrumento de consensualidade, acaba-se moldando o que será feito.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Para aprofundamento dos próximos argumentos v. MACHADO, Gabriel. Acordos Administrativos a partir do artigo 26 da LINDB: Consensualidade, Tensões, Sentidos e Processo. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Regulação da FGV Direito Rio. Rio de Janeiro, 143f., 2020.

Gabriel Machado é mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio e advogado.

Fernando Leal é professor da FGV Direito Rio.

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Quebra da justa expectativa do consumidor gera indenização

A quebra da confiança e da justa expectativa do consumidor-investidor, vítima direta de fraude ou golpe, gera o dever de indenizar. O entendimento é do juiz Guilherme Ferreira da Cruz, da 45ª Vara Cível Central de São Paulo. 

Ação envolve investimento em criptomoedas
123RF

O autor investiu em uma empresa que atua no ramo das criptomoedas. Segundo nota emitida pela Comissão de Valores Mobiliários, no entanto, a companhia não tem licença perante o órgão regulador. Além disso, houve quebra unilateral do contrato, alargando o prazo para saque, e prática de publicidade enganosa por parte da empresa. 

“Verificada a inexecução obrigacional que ultrapassa o limite do aceitável, caracteriza-se o ato ilícito diante da ofensa danosa à esfera da dignidade e aos direitos básicos do consumidor, a quem o Estado deve defender, reprimindo todos os abusos praticados no mercado, tanto que, a partir da consagração do direito constitucional à dignidade, o dano moral deve ser entendido como sua mera violação”, afirma o magistrado. 

Ainda segundo ele, “analisando-se a matéria com olhos voltados à defesa da consumidora, mais fácil será o entendimento e a compreensão acerca do dever de indenizar pela simples falha do produto ou do serviço fornecido”. 

O juiz considerou, também, que frente aos transtornos impostos ao autor, é possível aplicar a teoria do desvio produtivo do consumidor. Isso porque o reclamante tentou resolver o problema inúmeras vezes por via extrajudicial. 

Com base em tudo isso, o magistrado condenou as rés (a empresa, sua intermediadora e subsidiárias), ao pagamento de R$ 39 mil por danos extrapatrimoniais. 

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Responsabilidade civil dos profissionais de saúde ante a Covid-19

A bioética é desde seus inícios uma ética da responsabilidade. Esta é a razão pela qual tem utilizado tanto, desde as próprias origens, o trabalho deliberativo conjunto, na forma de comitês e comissões. E isso também explica por que seus quatro princípios canônicos definem deveres prima facie, que somente se transformam em reais e efetivos após a ponderação de todos os fatores concorrentes, circunstâncias e consequências incluídas. Esta avaliação é inevitavelmente situacional, individual, social e histórica. Não há aqui possibilidade de adotar uma perspectiva absoluta e onicompreensiva, pois esta é tão somente atributo divino.

A Ordem Executiva 202.10, do Estado de Nova York
Em 7 de março de 2020 foi publicada a Ordem Executiva 202.10, do Estado de Nova York, que suspendeu, até 22 de abril, os efeitos de algumas normas referentes às responsabilidades civil e penal dos profissionais de saúde, em razão da pandemia do coronavírus, causador da Covid-19.

Esse texto tem por objetivo analisar a referida Ordem Executiva frente à Bioética e ao Biodireito.

Destacam-se duas questões inseridas na Ordem Executiva:

1. Profissionais de saúde terão imunidade à responsabilidade civil por lesão ou morte, advinda de ação ou omissão, no curso do tratamento da Covid-19. A norma, todavia, excetua da isenção de responsabilidade a lesão ou a morte causada por negligência grave desse profissional.

2. No regime de pandemia, o profissional que atuar de maneira razoável e de boa-fé terá imunidade absoluta quanto a qualquer responsabilidade por falha na manutenção dos registros, inclusive prontuários de pacientes.

Fundamentando nos princípios da Bioética e no ordenamento jurídico brasileiro, avaliar-se-á a conveniência de se editar normas desse tipo no Brasil.

Bioética e Responsabilidade Jurídica
Do ponto de vista histórico, a Bioética surge por absoluta necessidade, eis que os cientistas, com o saber biotecnológico, detiveram o poder de investigação e de intervenção na vida humana e extra-humana. O cientista era o novo sacerdote da religião positivista, detentor da chave do verdadeiro e do falso. Aliás, essa foi a origem do paternalismo médico, em que os profissionais se enxergavam como salvadores de pessoas, descobridores de doenças e capazes de proporcionar uma vida distante de intempéries.

O desenvolvimento da Medicina passou a aliar a formação técnica com a formação axiológica, diante de um conteúdo moral de decisões sobre a vida. Mas para a sólida formação axiológica, atribuir limites era mais do que necessário, era o próprio elemento legitimador da intervenção médica. Daí o surgimento da Bioética.

Em seus princípios, a Bioética incluiu a responsabilidade como guia para a qualificação moral da ação do interventor na vida, que dele exige uma consciência prévia, não apenas individual, mas formada dialogicamente no espaço público. Nesse espaço público, destaca-se o papel preventivo e de fomento à reflexão, que deve ser promovido pelos conselhos profissionais e comitês de ética de hospitais e clínicas.

Na Ordem Executiva 202.10, a preocupação do Governador de Nova York foi viabilizar, na maior medida possível, o melhor atendimento às pessoas contaminadas pelo coronavírus, conferindo certa segurança aos profissionais de saúde. A intenção é louvável, pois reconhecemos que a situação é excepcional e a teoria não consegue acompanhar as exigências de difíceis situações práticas – e, portanto, a elas não pode se sobrepor.

Não raro a mídia vem noticiando a saturação dos sistemas de saúde, próprios do ambiente de pandemia. Neles, os profissionais de saúde estão constantemente submetidos a condições estressantes de iminente contágio e de dramas pessoais dos pacientes, devendo decidir por uma alternativa que, por vezes, não é propriamente boa, já que não proporciona ganho a todos, mas é a que menos desgaste e sofrimento causarão na balança entre o caos e o trágico. Essas são as chamadas escolhas trágicas.

Por outro lado, retomando a essência da Bioética, não é possível desvinculá-la do princípio da responsabilidade, mormente quando o que se busca é a aplicação da beneficência e da não maleficência.

Ao trazer tais isenções de responsabilidade, sob o manto da razoabilidade e da boa-fé, questionamos: Como aferir tal razoabilidade e boa-fé do prestador de serviços de saúde? Será que o caos do contexto da pandemia já é suficiente para o eximir da responsabilidade?

A medicina, mais que uma ciência ou um saber puro, é uma prática social, a do cuidado da saúde dos indivíduos e dos grupos sociais. Ocorre que enquanto prática social necessita e depende de muitos fatores – econômicos, políticos, culturais, científicos e técnicos. É impossível entender o desenvolvimento da medicina em qualquer período histórico – e também, claro, no século XX – sem situá-la em relação a todo esse complexo contexto.

A escassez de recursos financeiros e humanos, a necessidade de escolhas trágicas e a constituição de hospitais de campanha formam um universo peculiar, extraordinário e hipersensível, que deve ser considerado quando do contato do profissional com o paciente. Todavia, tais circunstâncias não têm o condão de, por si mesmas e aprioristicamente, eximir os profissionais de responsabilidade ética ou jurídica.

Nesse panorama, a norma do Estado de Nova York permite afastar a imunidade jurídica diante de negligência grave que ocasione lesão ou morte. Mas como provar a gravidade do ato de negligência se a própria norma afasta a necessidade de completos registros do paciente?

Torna-se até mesmo difícil identificar o profissional responsável pelo tratamento ou intervenção de saúde ante a inexigibilidade de preenchimento de prontuários.

As discussões concretas sobre razoabilidade e boa-fé e sobre negligência grave parecem fadadas à inefetividade, pois afastam o principal instrumento comprobatório do nexo causal ou de sua ruptura: o prontuário do paciente.

É certo que a celeridade do atendimento não pode ser razão para diminuição do cuidado com o paciente. O correto preenchimento do prontuário é a segurança para o próximo profissional, que conhecerá o caso do paciente e as medidas tomadas até ali por meio de seus registros.

O adequado registro do paciente é meio de limitação de responsabilidade do próprio profissional da saúde. O princípio bioético da responsabilidade faz derivar a responsabilidade jurídica, que “revela o dever jurídico em que se coloca a pessoa, a fim de satisfazer as obrigações convencionadas ou suportar as sanções legais impostas por seu descumprimento” e “sobreleva-se o aspecto da causalidade, da proporcionalidade e da imputabilidade das consequências atribuíveis à conduta”.

Em busca do caminho para um novo modelo de responsabilidade civil em tempos de pandemia
Historicamente, a responsabilidade civil atravessou um processo de flexibilização de seus requisitos, no sentido de proporcionar uma maior facilidade para a vítima rumo à reparabilidade do dano, seja na facilitação da prova seja na dispensa da culpa do pretenso ofensor, tornando a responsabilidade objetiva.

Esse mesmo percurso pode ser aventado em sentido contrário, a fim de se enrijecer a responsabilidade civil ou flexibilizar suas excludentes diante de situações extremas.

Em se tratando de pandemia, muitas são as variáveis enfrentadas pelos profissionais. A tensão das circunstâncias – com a alta demanda, a incerteza com as técnicas e até o excesso de informações disponíveis, mas por vezes contraditórias e ainda sem comprovação científica – vai produzir um quadro em que a responsabilidade civil do profissional de saúde, já considerada subjetiva no Direito brasileiro, deve ser mais criteriosa para sua configuração. Dito de outra forma, em virtude da concorrência de vários fatores desfavoráveis ao profissional de saúde, é normal que o operador do Direito não entenda pela responsabilização daquele por pequenas falhas. Há que se levar em conta o que dele era exigível diante do caso concreto.

Na relação médico-paciente, os dados de saúde da pessoa natural, como dados sensíveis, são importantes instrumentos de comprovação de prognósticos, diagnósticos, expressão de consentimento e dissentimento; contêm informações sobre comorbidades, exames laboratoriais e outros, que servem para resguardo dos direitos da personalidade do titular e, também, para resguardo dos profissionais de saúde, na medida em que documentam os substratos para sua intervenção.

Isentar o profissional de saúde, mesmo que em momento de pandemia, de responsabilidades inerentes às suas funções, é um descompasso com os princípios bioéticos que fundamentam essas profissões.

Embora o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) seja comumente concretizado por meio de um documento escrito, pelo qual o paciente manifesta o acordo com a intervenção, na turbulência da pandemia, é provável que não haja possibilidade de se intensificar a liberdade e o esclarecimento para a expressão do consentimento.

No entanto, ainda que ele não se formalize de maneira ideal, a sua manutenção é exigência para a proteção de direitos do paciente e como meio limitador da responsabilidade civil do profissional da saúde. Mas qual a medida da exigência?

O consentimento livre e esclarecido deve ser expresso, mas não necessariamente escrito. A situação concreta vai dizer o tempo a ser despendido pela equipe de saúde na sua obtenção. Além do mais, é possível que a inconsciência do paciente leve a uma manifestação da família, presencialmente ou por quaisquer outros meios viáveis.

Carlos María Romeo Casabona indica situações excepcionais em que o consentimento pode ser dispensado, como nos casos em que há grave urgência e que não é possível aguardar a obtenção do consentimento, em casos de inconsciência e também nas hipóteses em que a não intervenção do médico importe risco para a saúde pública. Logo, “o médico poderá agir, sem que haja consentimento do paciente, ante a ideia de prevalência […] do interesse público, por exemplo, no caso de uma epidemia ou uma doença infectocontagiosa”.

A excepcionalidade da situação permite a não obtenção do consentimento em alguma medida, mas não a admite por completo e, muito menos, afasta a necessidade de que as informações das práticas realizadas com o paciente sejam registradas.

Em conclusão, podemos afirmar que o sistema jurídico brasileiro não acata a isenção de responsabilidade civil de profissionais de saúde, mesmo diante da pandemia de Covid-19, por corolário advindo da Bioética e da impossibilidade do agir profissional, em qualquer circunstância, sem sua observância. Ainda que haja a dispensa pontual do TCLE, não há como aceitar a total falta dos registros do paciente, de um lado, para a garantia dos direitos da personalidade dele, de outro, para fins de imputação ou limitação da própria responsabilidade civil do profissional de saúde.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 522-523.

GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010.

GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2010, p. 49.

SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 43.

ROMEO-CASABONA, Carlos María. O consentimento informado na relação entre médico e paciente: aspectos jurídicos. In: ROMEO-CASABONA, Carlos Maria; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coords.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 128-172.

SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e esclarecido e responsabilidade civil do médico e do hospital. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana; ROSENVALD, Nelson (Coords.). Responsabilidade civil e medicina. 9ª ed. Indaiatuba, SP: Foco, 2020, p. 70.

Iara Antunes de Souza é doutora e mestre em Direito; professora na graduação e no Programa de Pós-graduação em Direito da UFOP; pesquisadora do CEBID; e membro do IBERC.

Bruno Torquato de Oliveira Naves é doutor e mestre em Direito; professor da PUC Minas e no Programa de Pós-graduação em Direito da Dom Helder Câmara; pesquisador do CEBID; e membro do IBERC.

Maria de Fátima Freire de Sá é doutora e mestre em Direito; professora na graduação e no Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas; pesquisadora do CEBID; e membro do IBERC.

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Equilíbrio das prestações: recuperação da base objetiva dos contratos

O contrato não é estático, mas dinâmico, assim como a relação obrigacional (na asserção memorável de Clóvis do Couto e Silva, a obrigação como processo).

A ideia de base objetiva tem forte significado diante de um quadro de alteração radical de circunstâncias. Se já não se apresentam mais os mesmos fatos econômicos e sociais, em contraste com os que existiam quando do ajuste, abre-se a perspectiva de recomposição da base do negócio, em busca do retorno a uma posição saudável de equilíbrio contratual.

Em larga escala, a pandemia do novo coronavírus, declarada pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020, pressiona as relações contratuais, sem que se possa, por ora, estimar com nitidez o seu alcance, que pode ser devastador.

A teoria da base objetiva do negócio, desenvolvida por Oertmann, logo após a primeira guerra mundial, e aprimorada por Larenz, depois da segunda grande guerra, enriqueceu o quadro doutrinário que contava com construções jurídicas anteriores, como a cláusula rebus sic stantibus, a teoria da pressuposição e a teoria da imprevisão.

Ao longo da história da civilização, não tem sido tão raro que “um fato incomum torne impossível a manutenção daquilo que se estabeleceu”, levando as partes à “contingência de adequar regras já definidas às exigências de eventos supervenientes”.

A humanidade experimentou guerras, revoluções, catástrofes naturais, inúmeras epidemias e pandemias. As teorias mencionadas são soluções imaginadas pelos juristas, e por vezes incorporadas à legislação, para lidar com fenômenos de monstruosa envergadura.

Os contratos supõem uma certa estabilidade, sem a qual se descaracterizam e podem ter esvaziada ou exaurida a respectiva força obrigatória. Por base do negócio entende-se, de tal maneira, o estado geral de coisas cuja existência ou persistência é objetivamente necessária para que o sinalagma subsista, como regulação dotada de sentido.

A teoria da base objetiva influenciou, de forma decisiva, a norma do § 313 do BGB (com a redação dada pela Lei de Modernização do Direito das Obrigações alemão, de 2001) e o art. 437 do Código Civil português, impulsionando ademais a doutrina e a legislação brasileiras.

O caráter vinculante dos contratos não é mitigado porque lhes falte a moralidade ínsita às promessas que reciprocamente são feitas pelos sujeitos que os celebraram: se é verdade que a palavra dada tem um valor moral respeitável e um peso jurídico relevante, não é menos correto que a vontade das partes tenha, há muito tempo, deixado de ser a exclusiva chave hermenêutica para a compreensão do contrato.

O princípio do equilíbrio contratual anima, por um lado, a sempre preferível renegociação, pelas próprias partes, dos termos avençados. Por outro lado, abre a via judicial, conducente à revisão do negócio ou à sua extinção.

A resolução, como modalidade de extinção do vínculo, é evidenciada pelo art. 478 do Código Civil brasileiro, diante de fatos supervenientes que tenham colaborado com feição marcante para a quebra do equilíbrio das prestações das partes. Por isso, tem-se que a comutatividade é a regra, conquanto qualquer álea anormal não seria presumível.

Para evitar a resolução, a lei prevê, como remédio, que o credor ofereça a modificação equitativa das condições do contrato (Código Civil, art. 479).

A resolução, contudo, é medida extremada, tornando mais sensato, mesmo quando o credor não aquiesça, promover-se a revisão do que fora pactuado. Bem antes do Código Civil de 2002, os princípios da boa-fé e da conservação dos negócios já iluminavam a orientação colhida pelo Código de Defesa do Consumidor e de bom grado aceita pela jurisprudência também para os contratos civis e empresariais, ao estipular “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V).

Note-se que a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019) não eliminou a possibilidade de revisão, a despeito de ter coarctado sua incidência, no contexto de ingerência estatal mínima sobre os negócios. O art. 421 do Código Civil recebeu o acréscimo de um parágrafo único, com a seguinte redação: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.

Ao indesejável risco da resolução, como expediente que, não obstante, permanece em vigor, acrescente-se o apego, de parte da literatura jurídica brasileira, a uma concepção de imprevisão de perfil subjetivista, que não é a melhor construção a que se pode chegar sob a égide do princípio do equilíbrio entre as partes. O que sustenta a revisão do contrato não é o caráter imprevisível dos fatos supervenientes que venham a atingir a base do negócio, mas a necessidade elementar de se manter a paridade entre os contratantes.

Essa vertente da teoria da imprevisão se revela insuficiente, dado o voluntarismo psicológico de que é infiltrada, e resulta inapta a fornecer respostas para problemas como a excessiva dificuldade da prestação e a frustração dos fins do contrato.

O critério da anormalidade da alteração de circunstâncias se afigura mais apropriado que o da imprevisibilidade, permitindo, razoavelmente, conjugado com a boa-fé, fundamentar a resolução ou a revisão do contrato.

Dado que o equilíbrio contratual remete à igualdade, a resolução ou a revisão do contrato em razão da alteração grave de circunstâncias são expressões de uma exigência fundamental do ordenamento. A paridade é a ratio que enseja a proporcionalidade nas relações contratuais privadas.

É imperativo ter em conta, todavia, que a atuação judicial sobre os contratos, quando açodada, em vez de reequilibrar os sujeitos envolvidos, pode gerar ainda maior desequilíbrio, além de romper a segurança jurídica. Têm-se visto, desde a eclosão da pandemia, algumas decisões judiciais que, embora a pretexto de salvaguardar valores caros ao ordenamento, como a dignidade da pessoa humana, suscitam intercorrências potencialmente desastrosas, em curto, médio e longo prazos, ao tutelar uma das partes, mas à custa do aniquilamento da outra.

A pandemia não é sectária, não se atendo a prejudicar apenas uma das partes, de tal modo que a atuação estatal não há de perder de vista a habitual bilateralidade do contrato, a dependência recíproca das prestações.

As relações jurídicas em que haja um sujeito protegido em especial, como o consumidor, ostentam um perfil diferenciado, fazendo sentido que a lei nacional estabeleça, por ora, alguma espécie de mecanismo transitório, como, por exemplo, uma exceção dilatória em vista de eventual mora do devedor.

Entretanto, no campo dos contratos do direito comum, de natureza civil e empresarial, a pressa legislativa, politicamente oportunista, no calor dos acontecimentos, pode ser ruinosa. Na esfera federal, ressalve-se, tramita o Projeto de Lei nº 1.179, de 2020, com alicerces doutrinários idôneos. Por sua vez, nos níveis estadual e municipal da federação brasileira, têm sido editadas deletérias leis de ocasião que, com frequência, nascem inconstitucionais.

Posto que a base do negócio, como qualquer outra teoria, não seja isenta de críticas, representa uma fórmula maleável e adaptável a uma variedade incontável de situações práticas, que o legislador não teria como esgotar.

A atuação judicial precisa ser bastante prudente, de preferência a posteriori da pandemia, para resguardar e oportunamente restaurar, com o imperioso amadurecimento dos fatos, a comutatividade contratual.

Enquanto não é sequer possível medir a intensidade e a duração da crise sanitária, que pode se prolongar por vários meses, havendo tantas indefinições e grandes desafios, não parece aconselhável redesenhar relações obrigacionais, sobretudo para afastar o cumprimento de prestações que não tenham objetivamente deixado de ser exequíveis, sem embargo de seu exame percuciente no porvir.

Assim como os seres humanos, os contratos não são imortais. Como escreveu Carnelutti, “a experiência de sua mortalidade é o valor da crise”. Que as pessoas sobrevivam e que os contratos subsistam, é o que se espera.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


“Com a expressão ‘obrigação como processo’, tenciona-se sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência”. COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 20.

OERTMANN, Paul. Die Geschäftsgrundlage: ein neuer Rechtsbegriff. Leipzig: Deichert, 1921. Para esse autor, a base do negócio denota a representação de uma das partes, reconhecida e não contestada pela outra, ou a representação comum às partes, sobre a presença de certas circunstâncias tidas como fundamentais para a formação da vontade.

LARENZ, Karl. Geschäftsgrundlage und Vertragserfüllung: die Bedeutung “veränderter Umstände” im Zivilrecht. München: Beck, 1951. O jurista difere a base subjetiva e a base objetiva do negócio. Enquanto a primeira abrange as representações mentais sobre as quais as partes concluíram o acordo, a segunda traduz as circunstâncias pressupostas, mesmo sem que delas tenham as partes consciência, tais como a manutenção da legislação ou de determinado sistema econômico. Dissipa-se a base objetiva do negócio quando há uma perturbação na equivalência das prestações ou uma frustração do escopo do contrato.

ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations: roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 579 e seguintes.

A pressuposição corresponderia a uma condição não desenvolvida, isto é, não expressa, mas da qual os contratantes fariam depender a validade da sua estipulação. WINDSCHEID, Bernhard. Die Lehre des römischen Rechts von der Voraussetzung. Düsseldorf: Julius Buddeus, 1850, p. 3.

Para um bem construído estudo histórico, veja-se: RODRIGUES Junior, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 32 e seguintes.

BORGES, Nelson. A teoria da imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 70.

“No sentido de base objetiva do negócio (isto é, de que o negócio jurídico, segundo o conceito imanente de justiça comutativa, supõe a coexistência de uma série de circunstâncias econômicas, sem as quais ele se descaracteriza), sem dúvida alguma vige e é utilizável em nosso direito. Nesse sentido, escreve Siebert, desaparece a base do negócio jurídico, quando a relação de equiponderância entre prestação e contraprestação se deteriora em tão grande medida, que de todo modo compreensível não se pode mais falar de ‘contraprestação’ (teoria da equivalência)”. COUTO E SILVA, Clóvis. Op. cit., p. 108.

KHAYAT, Gabriel; SAAD, Gustavo. O necessário estudo do art. 437 do Código Civil português. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 99, p. 240, mar./abr. 2019.

ATIYAH, Patrick. The Rise and Fall of Freedom of Contract. Oxford: Clarendon, 2000, p. 731.

Em corajoso sentido minoritário, a defender, à luz do art. 479 do Código Civil, que é somente do credor a legitimidade para postular a modificação do contrato afetado pela excessiva onerosidade superveniente, vide: MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Revisão contratual: onerosidade excessiva e modificação contratual equitativa. São Paulo: Almedina, 2020, p. 71 e seguintes.

“Portanto, dispensa-se a imprevisibilidade nos casos em que a boa-fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente da manutenção da circunstância alterada”. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 9. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 304.

Nos dois sentidos de “princípio da igualdade perante a lei contratual” e de “princípio de equivalência na economia geral do contrato”. BERTHIAU, Denis. Le principe d’egalité et le droit civil des contrats. Paris: LGDJ, 1999, p. 13.

A dignidade da pessoa humana deixou, lastimosamente, de expressar a essência do ser (na acepção em que a filosofia kantiana distingue as pessoas das coisas), como fundamento para a proteção das situações subjetivas existenciais, para se tornar, em vez disso, um elemento do discurso legitimador das decisões judiciais, quaisquer que sejam elas. Constituiu-se, assim, uma caricatura inigualável, engendrada a suprir debilidades argumentativas. Seja consentido remeter a: MATTIETTO, Leonardo. Estado de direito, jurisdição e dignidade humana. Lex humana, Petrópolis, v. 11, n. 1, p. 97-109, jan./jun. 2019.

A providência seria inspirada na lei alemã de mitigação das consequências da pandemia (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), de 27 de março de 2020. Para a defesa de sua implantação no direito brasileiro, vide: MARQUES, Claudia Lima; BERTONCELLO, Karen; LIMA, Clarissa Costa. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de covid-19. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 129, p. 1-23, maio/jun. 2020.

CORDEIRO, António Menezes. Da alteração das circunstâncias. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1987, p. 30.

CARNELUTTI, Francesco. La morte del diritto. In: La crisi del diritto. Padova: CEDAM, 1953, p. 183.

 é professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), onde coordena o Curso de Mestrado em Direito, professor na UCAM, mestre e doutor em Direito pela UERJ, e procurador do Estado do Rio de Janeiro

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Banco terá que indenizar estudante que perdeu o Enem

Prestadores devem zelar pela perfeita qualidade do serviço oferecido ofertado, estando incluído o dever de informar, proteger e ter boa-fé objetiva para com o consumidor. 

Segundo corte, pagamento não foi efetuado por culpa do banco

Com esse entendimento, a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou que o Banco do Brasil indenize uma estudante que não pôde fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por erro da instituição. A decisão foi proferida em 10 de março.

Segundo os autos, a estudante agendou o pagamento da inscrição, mas, por falha do banco, o processamento da operação acabou não sendo concretizado, o que a impossibilitou de participar da edição do exame em 2015. 

O banco alegou que o erro ocorreu por culpa exclusiva da vestibulanda, que inseriu a data de vencimento errada. Disse, ainda, que a operação só ocorre quando todos os dados são preenchidos de maneira exata. 

No entanto, segundo o desembargador Pedro Bernardes, relator do caso, “o agendamento de pagamento de título é um serviço disponibilizado apenas pelas instituições bancárias, sendo público e notório, que o cliente pode informar a data de pagamento do título desde que respectiva data se limite à data de vencimento, podendo ser o pagamento realizado para data anterior ao vencimento”. 

Assim, afirma, o pagamento deveria, sim, ter sido efetuado apenas com os dados disponibilizados durante o agendamento. “Havendo saldo na conta e agendado o pagamento para um dia antes do vencimento, resta patente o defeito na prestação do serviço, que culminou no indeferimento da inscrição do Enem”, prossegue. 

Em primeiro grau, foi fixado o valor de R$ 6 mil por danos morais. O TJ-MG majorou a indenização para R$ 12 mil, com juros de 1% ao mês, a partir de maio de 2015, além de correção monetária, que deve ser seguida de acordo com a Tabela da Corregedoria. 

Clique aqui para ler a decisão

1.0000.19.122150-6/001

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A responsabilidade do Poder Judiciário ante a crise da Covid-19

Introdução

Direito e Medicina sempre foram áreas do conhecimento que aparentam autonomia e independência entre si. No entanto, vários fatores vêm aproximando essas duas áreas cada vez mais: dificuldade de atendimento no sistema público de saúde; interferência do Judiciário em políticas públicas; obtenção de medicamentos e tratamentos; ética médica e erros médicos, para citar alguns. Agora, em um cenário de pandemia de escala global, definitivamente já não há como abraçar a tese da autonomia entre as áreas. A crise sanitária nos mostra uma zona de superposição, na qual os interesses — e as soluções oferecidas — são conflitantes.

No Brasil, há um crescente apelo para a efetivação do direito à saúde. Pesquisa elaborada pelo Insper a pedido do Conselho Nacional de Justiça [1] revelou que, entre 2009 e 2017, o incremento percentual das demandas de saúde no Judiciário foi maior do que o aumento percentual do total de demandas ajuizadas: ou seja, em matéria de saúde, há um crescimento acima da média da litigância nacional. E tudo indica que, em cenário de pandemia, essa porcentagem aumentará.

Tal quadro de judicialização, combinado com a iminência de colapso do sistema de saúde por força da Covid-19, é uma bomba-relógio para as instituições e para os próprios profissionais de saúde, que já enfrentam inúmeras dificuldades em condições normais de funcionamento.

Judicialização da saúde em tempos de crise

A deficitária infraestrutura da saúde brasileira, as desigualdades regionais e sociais e mesmo a vulnerabilidade de grande parcela da população maximizam as chances de acionamento do Judiciário para dirimir conflitos que surjam em decorrência da pandemia.

Dentre eles, especificamente na área da saúde, destacam-se: (i) a judicialização da ocupação de leitos hospitalares, sobretudo de unidades de terapia intensiva, em um cenário no qual não há vagas para todos, mesmo para casos que não envolvam a Covid-19; (ii) pedidos de adoção de tratamentos que não possuam eficácia cientificamente comprovada, ainda que também não haja evidência do contrário; e (iii) pedidos para fornecimento de medicamentos que se encontram em falta no mercado.

Esses conflitos presumidamente majoritários possuem ao menos dois pontos em comum: (i) todos visam a tutela judicial tão somente para o atendimento de demandas individualizadas, o que acaba por comprometer o Estado em detrimento do coletivo; e (ii) em todos corre-se o risco do Judiciário se sobrepor ao Executivo em matéria de políticas públicas de saúde, principalmente se os magistrados não possuírem meios adequados de informação e suporte técnico para decisão. E serão justamente essas questões as fiéis da balança entre a concessão da tutela judicial individualizada ou sua negativa.

O primeiro dos conflitos versa sobre a judicialização de leitos hospitalares. O que está em jogo é a capacidade de atendimento do sistema de saúde ante suas diversas limitações, afinal, o elevado crescimento da curva de contaminação pode levá-lo ao colapso.

Sob esta perspectiva, faltariam leitos em UTIs, respiradores artificiais e recursos humanos para lidar com a quantidade de pacientes. Haveria aqueles que, mesmo atingido o limite da capacidade de internação hospitalar, recorreriam ao Judiciário para conseguir sua vaga.

Não há receita certa para solucionar a questão, tampouco a retirada de leitos da cartola dos entes federados da noite para o dia. A adoção de medidas de restrição de circulação de pessoas e de isolamento social pretende achatar a curva de contágio, atrasar seu pico e dar alguns dias de fôlego ao sistema. Enquanto isso, gestores públicos buscam providenciar a estrutura necessária para receber os pacientes, por meio da criação de novos leitos, da construção de hospitais de campanha e da aquisição de insumos — que necessitam de tempo para serem providenciados.

A progressiva concessão de tutelas jurisdicionais, ainda que sirva para atender a demandas de pacientes específicos, tem o potencial de trazer grave problema a esses gestores, que se veriam forçados ao cumprimento das ordens judiciais em detrimento da observância de protocolos clínicos — e é natural que uma família pense mais no atendimento de seu ente do que na concretização de uma política pública geral.

Quanto ao segundo conflito, acerca da obrigação de adoção de protocolos clínicos com eficácia não comprovada, vale trazer uma retrospectiva de um marcante episódio que, embora muito menor em escala se comparado à Covid-19, deixou algumas lições que podem ser aproveitadas: trata-se do caso da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer”, ocorrido entre 2015 e 2016.

Naquela ocasião, alegava-se que a substância, sintetizada artificialmente e em caráter experimental por um docente da USP, teria propriedades miraculosas que poderiam curar o câncer.

A repercussão e pressão popular foram tamanhas que milhares de ações foram propostas para ordenar ao Estado o fornecimento da pílula a pacientes com câncer. Até mesmo uma lei chegou a ser editada autorizando o uso terapêutico e sua produção farmacêutica (Lei n° 13.269/16, de autoria, dentre outros, do então deputado Jair Bolsonaro). Cerca de um mês após a entrada em vigor, a norma foi suspensa por decisão do STF em sede de medida cautelar no âmbito da ADI 5.501.

Mesmo hoje, passados quase quatro anos dessa decisão, o Judiciário continua processando essa enxurrada de demandas, sendo ainda inúmeros os pedidos para fornecimento da substância. [2]

No terceiro e último conflito, relativo ao fornecimento de medicamentos em falta no mercado ou que não foram adquiridos pelo Estado, há o problema adicional de falta de efetividade da tutela jurisdicional, ocasionado, por exemplo, pela logística de aquisição e distribuição dos mesmos. Muitas vezes os magistrados, por falta de apoio técnico e conhecimento específico, não sabem a real situação do fármaco no mercado ou a existência de tratamento alternativo, dentre outros aspectos.

Nestes casos, obter ou não a tutela não tem efeito algum para a saúde do paciente, uma vez que este não receberá o fármaco de imediato. Novamente, há um problema sistêmico, pois seu deferimento, neste caso, obrigaria o Estado a buscá-lo no exterior — o que demanda tempo e elevados gastos — ou deixar de atender à decisão judicial.

Problemas complexos, soluções conjuntas

Se são inevitáveis as ações judiciais — e ninguém deseja impedir os jurisdicionados de exercerem seu direito de ação —, os tribunais precisarão de lastro técnico e informações completas para decidir com racionalidade e serenidade. Nesse momento, é preciso que haja forte articulação interinstitucional e atuação conjunta de diversos órgãos para evitar que as decisões judiciais sirvam de força motriz do colapso do sistema. A palavra-chave, aqui, é “cooperação”.

A cooperação interna já é conhecida no meio jurídico. Há casos bem sucedidos, como o projeto do NAT-JUS Nacional, desenvolvido pelo CNJ em 2019. [3] Derivado do Fórum Nacional do Judiciário para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde, iniciado em 2010, programas como o NAT-JUS Nacional devem ser vistos como o paradigma colaborativo ideal para o momento atual, na medida em que a plataforma permite ao Magistrado requisitar subsídio científico para ampará-lo na tomada de decisões. Este conhecimento é fundamental em matéria de saúde, na qual o julgador tem, diante de si, situação pouco conhecida e que enseja rápida resposta.

Em março de 2020 surgiu outro interessante exemplo: a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), vinculada ao STJ, criou plataforma para dar suporte a magistrados em casos relacionados à pandemia. [4] Seu intuito é disponibilizar um repositório de legislação, artigos, estatísticas, pareceres, notas técnicas, decisões e cursos à distância para auxiliar na tomada de decisão com visão sistêmica e interdisciplinar.

Nessa linha, o CNJ também divulgou estudo realizado pelo Hospital Sírio-Libanês acerca da hidroxicloroquina para tratamento ao Covid-19, para orientar magistrados no julgamento de demandas que visam a sua concessão. A pesquisa concluiu pela incerteza quanto aos seus efeitos clínicos e de segurança, não recomendando seu uso indiscriminado até que novos estudos a avaliem apropriadamente.

E isso pode revelar outro complicador: mesmo para casos de fármacos com eficácia comprovada já há uma dificuldade natural no julgamento de processos. Nos casos envolvendo a Covid-19, a questão ganha contornos dramáticos. Mesmo com plataformas como o NAT-JUS, a incerteza científica sobre a Covid-19 é latente.

Nestes termos, poderia ser cogitado o descarte da colaboração recíproca, já que não há certeza científica suficiente para amparar com segurança absoluta as decisões judiciais. Entretanto, a situação atual enseja medida diametralmente oposta: a articulação interinstitucional deve ser observada no maior grau possível de intensidade – e não apenas na tomada de decisões judiciais, mas na construção de políticas públicas que possam atenuar essa excessiva judicialização.

Entram em cena, aqui, os Comitês Estaduais de Saúde, órgãos derivados da Resolução 238/2016 do CNJ, que vêm a desempenhar essa função de cooperação interinstitucional. Em São Paulo, o Comitê foi implantado no TJSP, tendo como parceiros o TRF da 3ª Região, o MPF, o MPSP, a AGU, a PGE, a PGM de São Paulo, a DPU, a DPE, as Secretarias de Saúde, o Conselho dos Secretários Municipais de Saúde, e os Conselhos Profissionais de Medicina, Farmácia e Administração. A interação entre esses diferentes segmentos possibilita visão sistêmica dos problemas e soluções conjuntas.

Outro instrumento de que o Judiciário pode lançar mão são as câmaras de conciliação. A partir da identificação de pontos de contato entre demandas, é possível montar estruturas para estimular a autocomposição, garantindo-se efetividade às decisões e desafogando os gabinetes de parte das demandas.

Durante a eclosão da Covid-19, o Gabinete de Conciliação do TRF da 3ª Região estruturou fluxo específico para analisar a possibilidade de conciliação de demandas pertinentes à saúde ou a reflexos das medidas de combate à pandemia. Em parceria com o TJSP, o MPF, o MPSP, a DPU, a DPE, a AGU, a PGE e a PGM de São Paulo, além de Secretarias de Saúde, possibilita-se aos juízes que, ao receber uma demanda, possam consultar os GABCONCI e CECONs da Justiça Federal, o CEJUSC do TJSP, os órgãos de saúde e os responsáveis pelo cumprimento de eventuais liminares, no intuito de se buscar, em até 48 horas, uma resposta — e eventualmente, uma proposta — sobre conciliação.

Naturalmente, tal fluxo — também válido em fase pré-processual — não resolverá todas as ações judiciais, mas tem a vantagem de reunir de forma rápida e informal diversos órgãos — e possivelmente evitar longos conflitos. Sua utilização está em fase de expansão para outras localidades e matérias.

Essa colaboração é vantajosa em uma pandemia na qual o conhecimento científico ainda é incipiente e a parca infraestrutura de saúde pública aumenta a chance de escolhas difíceis e complexas pelo Judiciário. Pela conciliação podem também ser trabalhados conflitos entre entes federativos, a exemplo dos já acontecidos pelo direito de comprar e usar medicamentos e equipamentos hospitalares.

Considerações finais

Com os exemplos citados, vislumbra-se um lado positivo da atuação do Judiciário nessa zona superposta entre as áreas de Direito e Medicina: o de atuar como mediador de conflitos externos entre Poderes, agentes públicos, entes privados e especialistas, como o recente apelo feito ao STF. [5]

Este momento, tal qual nas grandes crises, é propício para promover reflexões sobre como analisamos as situações e sobre os modelos e paradigmas tradicionais. Uma dessas reflexões toca o mito da incompatibilidade entre Direito e Medicina, que deve ser deixado de lado, para que estas áreas, convivendo harmoniosamente, amparem os seres humanos em suas esferas social e clínica.

Muitos dos conflitos gerados são inevitáveis, principalmente em tempos de crise sanitária, e podem ser agravados se faltarem informações e suporte técnico ao responsável pela tomada de decisões. Cabe ao Judiciário fomentar mecanismos de cooperação institucional e articulação entre os demais órgãos para reduzir as arestas entre eles, possibilitando a criação de políticas públicas articuladas e sistêmicas, bem como a racionalização no processo de tomada de decisões.

O triste período vivido pelo Brasil — e, de forma geral, por todo o mundo — não é o primeiro em que Direito e Medicina são instados simultaneamente a dirimir problema de ordem prática, e tampouco será o último. Contudo, a razoabilidade deve prevalecer: é tempo de deixar o protagonismo individual de lado e medir esforços contra um inimigo comum, sob risco de perecimento da própria sociedade.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


[1] https://www.cnj.jus.br/demandas-judiciais-relativas-a-saude-crescem-130-em-dez-anos/

[2] Vide AI n° 2033560-98.2020.8.26.0000 (Rel. Des. Viana Cotrim, j. 26/03/20) e AI n° 2247968-47.2019.8.26.0000 (Rel. Des. Marcos Tamassia, j. 18/12/19)

[3] https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude-3/nat-jus-nacional/

[4] https://www.enfam.jus.br/portal-covid19/

[5] https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/saude-privada-chama-stf-mediar-requisicoesdos-governos

Paulo Sergio Domingues é desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Mestre em Direito pela Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e professor de Processo Civil da Faculdade de Direito de Sorocaba.

Arthur Balbani é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Michel Lutaif é mestrando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado.

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Televisitas em presídios: encarceramento e convivência familiar

São diversas as repercussões causadas pela pandemia do coronavírus nos estabelecimentos penais. Nesta gama de tópicos potentes — superlotação de presídios, precariedade das questões de higiene, entre tantos outros temas-, aborda-se, nesta construção, os reflexos que a pandemia do coronavírus gera nas visitas de familiares a pessoas presas em instituições prisionais no Rio Grande do Sul.

Entende-se relevante a temática em razão do reflexo que a experiência do aprisionamento gera na vida daqueles e daquelas selecionadas pelo sistema penal, mas também das famílias e das redes de afetos a eles relacionadas. As visitas, nesse sentido, possuem caráter excepcional na manutenção dos vínculos intra e extramuros e de convivência familiar. Mas não só. A possibilidade de trânsito de familiares e amigos no interior dos estabelecimentos penais também reforça aspectos materiais do aprisionamento. São estas as pessoas que, nas visitas, levam os “jambos” aos presos, como forma de complementação de alimentação e materiais de higiene e necessidades básicas muitas vezes não fornecidos pelo ente público.

Em termos legislativos, o direito da pessoa presa de receber visitas é assegurado pelo art. 41, X, da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/1.984), que garante a “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”. Também as Regras de Bangkok — Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres presas e Medidas não Privativas de liberdade para Mulheres Infratoras, nas regras 26,27 e 28, em complementação às Regras Mínimas de Tratamento de Reclusos, aborda a temática as visitas. Da perspectiva dos familiares, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), garante, no art. 19, que seja assegurado o direito à convivência familiar e comunitária à criança e ao adolescente, especificando que será garantida a convivência por meio de visitas periódicas a pais e mães presos. A pesquisa “Dar à Luz na Sombra” sintetiza o aporte legislativo relacionado às visitas nos diplomas legais supracitados.

A situação que se coloca hoje, porém, exige que a convivência familiar assegurada à pessoa presa a partir das visitas seja repensada. Em verdade, até a eclosão da pandemia do coronavírus as visitas eram realizadas presencialmente, sendo que, no Rio Grande do Sul, é possível que duas pessoas, parentes ou amigos, visitem o preso ou a presa por duas vezes na semana, momento esse que também é utilizado para repasse de suprimentos, como itens de alimentação e higiene. Ou seja, a visita não apenas contribui para a manutenção dos laços afetivos entre a família e/ou amigos e a pessoa presa, o que em última análise representa elemento fundamental no processo de ressocialização, como também contribui para a sobrevivência dessa pessoa enquanto ainda integrante do sistema prisional.

Como alternativa às visitas presenciais, buscando o não rompimento total do relacionamento afetivo do apenado ou apenada com o mundo exterior, foi instituído no Estado projeto de televisitas. Reguladas pela SUSEPE, as televisitas são realizadas pelo aplicativo privado Skype, com duração de aproximadamente dez minutos, e são supervisionadas por um agente prisional.

As televisivas são uma inovação no contexto prisional, e, em meio aos entraves causados pela pandemia, evidenciam-se como possibilidades de manutenção dos vínculos familiares. Os potentes questionamentos diante desse novo panorama centram-se nas capacidades de que as medidas sejam implementadas para todas as pessoas presas, considerando dificuldades estruturais já enfrentadas pelas instituições — antes mesmo da pandemia.

A convivência familiar é direito fundamental de crianças e adolescentes, assegurado pelo artigo 227 da Constituição Federal, direito este que somente pode ser obstado através de decisão judicial, quando houver alguma das hipóteses de destituição do poder familiar, ou quando a convivência representar algum risco para a criança e seja necessária a aplicação de medida protetiva. Ausentes tais situações, a criança tem o direito de conviver com seus pais, ainda que um deles esteja recolhido junto ao sistema prisional, conforme expressamente previsto pelo artigo 19, § 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ainda nesta linha, aponta-se que a garantia dos direitos de crianças e adolescentes é um dever conjunto da família, da sociedade, e do Estado. Todavia, em que pese seja conjunto, deve o Estado garantir o suporte necessário para a concretização de tais direitos, por meio de políticas públicas que visem a superação de eventuais barreiras que possam impedir que a família consiga propiciar à criança um local adequado ao seu desenvolvimento. Tal é a situação da convivência familiar com pais privados de liberdade, em que se demanda que haja por parte do Estado a criação de uma sistemática de visitação nos estabelecimentos prisionais capaz de garantir o contato familiar. O atual estado de pandemia mundial do novo coronavírus, que demanda isolamento social para evitar sua propagação, requer reflexões e inovações sobre a manutenção do direito de visitas às pessoas presas, sem que seja colocada em risco a saúde pública, para o qual as televisitas se apresentam como alternativa possível.

Em que pese, à primeira vista, as televisitas se mostrem como uma adequada forma de garantia do direito de convivência neste período de suspensão das visitas presenciais, é preciso que se olhe a questão a partir das implicâncias práticas e fatores que podem interferir em sua efetividade.

Em primeiro lugar, necessário que se atente à população carcerária no estado, que supera os 40 mil. Dado este contingente, parece pouco provável que as visitas virtuais sejam disponibilizadas a todas as pessoas presas, de modo que parte – se não a maioria delas – não poderá exercer seu direito à visitação, ponto ainda mais sensível quando pensarmos naquelas que tenham filhos menores de idade, os quais, consequentemente, também estarão tendo violado o seu direito à convivência familiar com os pais.

O segundo ponto a ser destacado é o do curto tempo de duração das televisitas, que, conforme a regulamentação, deverão ser de, no máximo, dez minutos. Este período de tempo se mostra ínfimo e incapaz de caracterizar efetiva convivência familiar, especialmente se comparado com o tempo normal das visitas presenciais, que geralmente superam uma hora de duração. A convivência familiar com pais que estejam presos, em razão da especificidade desta situação, não pode ser tão intensa quanto seria se estivessem em liberdade, e certamente a determinação de isolamento social impõe certas barreiras ao exercício deste direito. A convivência por meio de chamadas virtuais se mostra uma excelente alternativa, contudo, estando limitada ao máximo de dez minutos, não demonstra uma atitude do Estado em garantir que esse direito seja efetivamente exercido – mas apenas garantido em seu patamar mínimo o suficiente para que o ente estatal se exima de eventual responsabilidade por obstar a convivência familiar.

Terceiro, as visitas virtuais exigem que o visitante tenha acesso à internet em sua residência, com aparelho e conexão que tenham capacidade de suportar o aplicativo Skype. Deve ter-se em mente a realidade da parcela da população brasileira que, em geral, é selecionada pelo sistema penal – ou seja, as camadas sociais mais baixas.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2017, há um crescimento no acesso à internet pela população brasileira. De acordo com os dados da referida pesquisa, 79% dos domicílios da zona urbana da Região Sul possuem banda larga, dos quais 20,1% possuem somente banda larga fixa, e 19,4 % somente banda larga móvel, sendo o celular o principal meio de acesso à internet, utilizado por 97% dos usuários. Porém, esses dados variam de acordo com a localidade, tendo em vista que, na zona rural, o percentual de domicílios permanentes na Região Sul com acesso à internet somente por banda larga fixa é de 61,1%, e somente por banda larga móvel de 37,4%. Os dados também são diferentes quando isoladas as classes sociais, verificando-se na camada mais pobre, as classes D e E, que o acesso à internet está presente em 48% dos domicílios.

Para além disso, considerando que os familiares e amigos não mais se farão presentes fisicamente no estabelecimento prisional, há de se considerar a possibilidade de que a pessoa presa se veja estruturalmente desassistida, dado que não poderá contar com os suprimentos que lhe são entregues durante as visitas.

Assim, ainda que se pudesse garantir a todos os aprisionados acesso ao sistema de televisitas, não é possível garantir que suas famílias teriam a mesma oportunidade, haja vista que o acesso à internet não está presente em todas as residências – e, nas que estão, considerável parcela usa somente a rede móvel, mais instável para a realização de chamadas virtuais. E, novamente trazendo o Estatuto da Criança e do Adolescente, não é possível que os filhos sejam obstados do convívio familiar em razão da sua pobreza, sendo dever do Estado garantir as condições para o exercício deste direito.

Se não é possível garantir que todos os familiares terão acesso à ferramenta utilizada para as televisitas, pelo menos que seja disponibilizado às famílias o equipamento à disposição nos órgãos estatais para esta finalidade. Uma possível solução a isto seria a regionalização dos atendimentos, com agendamento conjunto entre o estabelecimento prisional e os serviços de atendimento à população, como os CRAS, Conselhos Tutelares, e até mesmo escolas e universidades que se disponibilizem e contem com os equipamentos necessários para a realização das televisitas, para garantir que aqueles familiares que não possam acessar o Skype de suas residências ainda assim tenham acesso a essa modalidade de visitação.

Por certo, a pandemia do coronavírus é a maior crise sanitária e de saúde vivida nos últimos tempos. De forma ainda embrionária, e trazendo mais perguntas do que respostas, pretende-se dar eco a questões urgentes e graves que, dentre tantos atravessamentos, são (in)visíveis para muitos. Em um sistema de justiça criminal seletivo, mais uma vez, serão famílias vulnerabilizadas as mais afetadas, o que exige atenção e complexidade de análise. Os tempos atuais são nebulosos, incertos e desconhecidos; os problemas já existentes, contudo, se potencializam e se reinventam. Este artigo, pois, junta-se ao coro de escritos que pretendem abrir caminhos para potenciais debates acerca do sistema de justiça criminal em tempos de pandemia: diálogo urgente e necessário.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras. Brasília, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf. Acesso em: 14 abr 2020.

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. § 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Brasília, 2015. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/201clugar-de-crianca-nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf. Acesso em: 15 de abr de 2020.

SUSEPE. Portaria nº 160/2014, de 29 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1461590367_Portaria%20de%20Visitas%20SUSEPE%202014%20V13.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

SEAPEN E SUSEPE. Portaria Conjunta nº 002/2020, de 8 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.intrasusepe.rs.gov.br/upload/1586368502_Portaria%20visitas-2.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

DEPEN. Levantamento Nacional 2019. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/infopen>. Acesso em: 20 abr. 2020.

SUSEPE. Horário das visitas. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1577458130_Horários,%20regulamentação%20e%20%20confecção%20de%20carteiras.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2017. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 20 abr. 2020.

 é mestranda bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 é advogada e economista. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 é mestranda bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Antonio Ruiz Filho: Nova disciplina da prisão preventiva

No final de 2019 entrou em vigor a Lei nº 13.964/19 que, alterando o Código Penal, e o seu processo, também impôs nova disciplina às medidas cautelares, especialmente no que se refere à prisão preventiva.

Ao Direito Penal incumbe estabelecer condutas proibidas e as sanções a serem atribuídas aos infratores. A finalidade do Direito Processual Penal é a tutela das liberdades individuais contra os poderes persecutórios do Estado.

Por isso, o processo penal, com apoio constitucional, consagra a paridade de armas, a proibição de utilizar provas ilícitas, o contraditório, a ampla defesa, estabelecendo um complexo de normas que visam a assegurar ao cidadão a oportunidade de se opor à imputação da culpa criminal; trata-se do devido processo legal, que são garantias processuais a serviço da inocência.

Essas balizas, a que todos devem submeter-se, estão atreladas ao conceito de Estado Democrático de Direito, assim reconhecido no preâmbulo da nossa Constituição Federal.

Nesse contexto, já tardava que se fizesse uma reforma relativa às prisões provisórias, hoje estimadas em torno de 40% da população carcerária. Apenas esse dado já era indicativo de que o sistema clamava por urgente reformulação.

A nova redação do art. 282, § 2º, do CPP, deixa claro que a prisão por decisão de ofício deixou de existir, pois o juiz passa a depender de iniciativa das partes ou de representação da autoridade policial.

O art. 311 do CPP também veda a prisão decretada ex officio.

Regra legal nº 1: os juízes, em qualquer hipótese, estão impedidos de mandar prender sem provocação das partes que lhes outorgue essa faculdade.

O § 3º, do art. 282, do CPP, refere que a decretação de medidas cautelares em geral, ressalvados “os casos de urgência e perigo”, “deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional”.

Isto já deveria ser assim, mas, agora, tais exigências estão positivadas na lei, de sorte a inviabilizar decreto prisional que não as adote.

No caso de descumprimento de outras imposições, o § 4º, do art. 282 do CPP, possibilita a prisão preventiva a pedido, apenas “em último caso”.

Regra legal nº 2: as decisões pela prisão preventiva devem conter elementos do caso concreto que justifiquem a aplicação de medida considerada excepcional e, portanto, a ser decretada apenas em último caso.

O § 5º, do artigo 282, do CPP, permite ao juiz que revogue a prisão de ofício ou a substitua por medidas cautelares mais brandas, quando “verificar a falta de motivo para que subsista”. O mesmo dispositivo parece admitir que o juiz volte a decretá-la “se sobrevierem razões que a justifiquem”. Contudo a regra geral das cautelares impõe que haja provação das partes nesse sentido. Caso contrário, o juiz terá de permanecer inerte.

Regra legal nº 3: a prisão deve ser revogada de ofício ou substituída por medidas cautelares mais brandas se deixarem de existir razões que justifiquem a conduta excepcional.

Na sequência, o § 6º, do art. 282, do CPP, condiciona a prisão preventiva, que “somente será determinada” quando não for possível a substituição por outra medida cautelar do art. 319, o que “deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.  

O citado dispositivo já trazia essa recomendação, que foi, no entanto, sistematicamente ignorada, sendo necessário tornar expressa a exigência.

Regra legal nº 4: a prisão preventiva será cabível apenas quando não for possível a aplicação de medida diversa, entre aquelas previstas pelo artigo 319 do CPP, fundada em elementos concretos e que possam ser atribuídas por circunstâncias individualmente reconhecidas, de modo a tornar evidente que nada além da prisão é suficiente para acautelar o processo ou a sociedade.

O artigo 283 do CPP, objeto de muita discussão, foi encurtado, mas mantido na essência. Sobre a impossibilidade de prisão para cumprimento de pena, o artigo 313, § 2º, do CPP, afirma: “Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia”.

Neste ponto, inclua-se a prisão decorrente de pronúncia, de modo que a Súmula 21 do STJ[1] tornou-se sem aplicação.

Regra legal nº 5: não existe prisão provisória possível para o cumprimento de pena, real ou disfarçado, nem pode ser decretada como decorrência natural da evolução das fases processuais.

Os artigos 287 e 310 do CPP incluem a audiência de custódia no direito positivo, até aqui prevista apenas por meio de resolução do CNJ[2]. A rápida avaliação do juiz sobre manter o investigado ou acusado preso vem ocasionando a libertação imediata de inúmeras pessoas, que ficariam encarceradas por meses sem necessidade.

Regra legal nº 6: todo preso será apresentado ao juiz competente, em 24 horas, para a realização da audiência de custódia, com o objetivo de verificar a necessidade de manutenção da prisão provisória.

Incluiu-se, no art. 312 do CPP, um novo pressuposto para a prisão preventiva, o “perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O conceito é vago, o que vai dificultar a sua aplicação.

Criou-se o § 2º para o artigo 312 do CPP, cuja redação estabelece que: “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos e contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”.

Fato contemporâneo é aquele que se relaciona com o momento da prisão ou subsiste no tempo desde a sua decretação. Assim, acontecimentos pretéritos ou os fatos primitivos que geraram o decreto inicial não são válidos para admitir a prisão cautelar ou a sua manutenção, se os efeitos tiverem cessado ou se esvaído, perdendo a característica de contemporaneidade.

O § 1º, do art. 315, do CPP, repete o binômio “fatos novos ou contemporâneos”.

Regra legal nº 7: o possível infrator, contra quem cabe prisão preventiva, deve oferecer perigo concreto e atual, de maneira que sua liberdade importe em risco provado, para os fins do processo ou para a proteção da paz social.

O caput do art. 315 do CPP impõe que “A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada”, com elementos concretos, os motivos, mediante adequada fundamentação legal.

O novo § 2º, do art. 315, do CPP, reprodução do art. 489 do CPC, traz um rol de obviedades, mas que são frequentemente desatendidas. Os erros ali descritos, se cometidos, invalidam a decisão.

Regra legal nº 8: a decisão que promova mudança do status libertatis deverá ser suficientemente motivada e fundamentada, sob pena de nulidade.

Pelo art. 316 do CPP, permite-se a revogação da prisão preventiva de ofício pelo juiz ao “verificar a falta de motivo para que subsista” (ausência de contemporaneidade). Entretanto, não poderá agir sem provocação das partes para decretar nova prisão, conforme os artigos 282, § 2º, e 311, do CPP.

Regra legal nº 9: o juiz deve revogar a prisão cujos motivos se mostrem insubsistentes, mas não pode tornar a decretá-la de ofício, e nem deixar de expor os motivos concretos e contemporâneos de validação, além de afastar a suficiência de medidas cautelares diversas da prisão.

O parágrafo único do art. 316 do CPP criou regra com a seguinte redação: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”.

A revisão do despacho que deu origem à prisão, como se observa, deve ser promovida de ofício, e o descumprimento dessa obrigatória revisão gera a ilegalidade do decreto prisional. 

Cumpre enfatizar que o estabelecimento desse prazo de 90 dias, pela leitura sistemática dos novos dispositivos processuais, impõe “revisão de necessidade” cujo despacho não pode ser fruto do frequente “copia e cola”, novamente observadas todas as orientações do art. 315 do CPP. Decisão assim mantida haverá de ser considerada absolutamente ilegal.

Revisar significa passar em revista, rever, reexaminar todos os elementos antes considerados para o decreto inicial de prisão preventiva.

A partir da excepcionalidade, expressa de forma abundante nos dispositivos da Lei nº 13.963/19, as prisões cautelares finalmente devem ser reduzidas ao mínimo, para que, de uma vez por todas, cessem os abusos, não apenas quanto à utilização, mas também quanto à duração por prazo excessivo.

Diante de tantas exigências legais para justificar um decreto prisional de índole cautelar, não faria o menor sentido permitir que a prorrogação da prisão preventiva para além dos 90 dias — cuja provisoriedade impõe que seja rápida, breve, efêmera, precária —, fosse derivada de simples renovação ou mera ratificação da decisão cautelar anterior.

Nesse ambiente de expressa excepcionalidade, depois de afastada a possibilidade da aplicação do rol de todas as outras medidas cautelares previstas pelo artigo 319 do CPP, a prisão preventiva poderá perdurar por 90 dias; ao final desse prazo deverá ser criteriosamente avaliada ainda de forma mais exigente por se tratar de ato revisional obrigatório.

Essas prisões provisórias que se eternizam no tempo e em tudo se assemelham a cumprimento antecipado de pena sem julgamento definitivo de mérito, agora expressamente proibidos na lei, devem deixar de existir.

É evidente que, depois de tantos anteparos para a decretação da medida de força de especial excepcionalidade, o parágrafo único do art. 316 do CPP remete a 90 dias, naturalmente, o prazo máximo da prisão preventiva a partir de agora. Aliás, durante muito tempo a duração da prisão provisória foi de 81 dias[3]. Ao final desse período, mesmo sem força de lei, a soltura era praticamente imediata.

Com o passar dos anos esse limite temporal foi sendo abandonado e se permitindo prisões provisórias de muitos meses e até de vários anos, o que não se pode mais admitir.

Se a decisão original de prisão preventiva, ante a nova sistemática, há de ser extremamente bem motivada e fundamentada, com o apontamento de fatos concretos de urgência, perigo e contemporaneidade (art. 282, º 3º, 312 e 315, § 1º, do CPP), e, ainda, com os rigores estabelecidos por vários dispositivos de contenção (art. 315, § 2º, I a IV, do CPP), o que se dirá em relação ao despacho que decide pela sua revalidação depois de três meses de duração?

Regra legal nº 10: a prisão preventiva tem prazo certo de 90 dias, devendo sua prorrogação, de caráter excepcionalíssimo, ser obrigatoriamente revisada após esse período e ser mantida apenas diante de circunstâncias ainda mais especiais, mediante o apontamento de motivos concretos e contemporâneos, uma vez mais afastando-se a possibilidade e suficiência de outras cautelas.

Eis o decálogo das novas diretrizes para a prisão preventiva. 

Ainda, o descumprimento dessas novas regras legais, mediante a comprovação do exigido dolo específico, deverão ser enquadradas como crimes de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19), sendo responsabilizado penalmente o juiz que decretar privação da liberdade em manifesto desacordo com as hipóteses legais (art. 9º, caput), ou que, dentro de prazo razoável, deixe de relaxar prisão manifestamente ilegal (art. 9º, I), de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível (art. 9º, II).

Tudo isso elevará a qualidade da nossa Justiça criminal, que se tornará mais célere e eficiente, em prol da proteção social e do respeito aos direitos individuais.

 


[1] Súmula 21 do STJ: “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução”.

[2] Resolução nº 213/2015, do Conselho Nacional de Justiça: “Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas”.

[3] “(…) A demora na formação de culpa, excedendo os 81 dias, sem motivo dado pela defesa, caracteriza constrangimento ilegal. Habeas deferido.” – STF, HC 78978/PI, Rel. Min. NELSON JOBIM: 09/05/2000.

 é advogado criminalista, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), foi conselheiro e diretor da seccional paulista da OAB e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas. Também foi diretor-adjunto do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) por duas gestões.