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Prevenção do endividamento deve reunir a sociedade

A dinâmica do mercado é complexa e pressupõe a articulação de vários atores, além do respaldo expresso em políticas legislativas para que estejam garantidas as condições essenciais no sentido do equilíbrio das relações contratuais e do paradigma da boa-fé objetiva.

Tanto as empresas como as pessoas físicas estão mergulhadas na economia de mercado. A prevenção e o tratamento do superendividamento em tempo de pandemia constituem processo que exige a união de todos os atores do processo produtivo.

Nessa conjuntura, empresas e trabalhadores, o duo da economia capitalista, não podem ser compreendidos de forma apartada, especialmente com a pandemia e a inerente aceleração da crise econômica.

Portanto, todos os consumidores e seus núcleos familiares devem receber políticas públicas equânimes, para que tenham a oportunidade de sair do endividamento em que estão mergulhados.

O Brasil conta com 60 milhões de pessoas físicas endividadas, número correspondente a 40% da população adulta. Segundo dados do Banco Central [1] e da Confederação Nacional do Comércio, os principais motivos para o superendividamento são a redução de renda (26,5%), o desemprego (24,3%) e a doença (18%). Estima-se que esse número aumente consideravelmente, tendo em vista a perda da renda e o desemprego que avançam velozmente em todas as regiões do país com a chegada da pandemia.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) afirma que a economia da América Latina cairá 5,3% e a da América do Sul, cerca de 5,2% neste ano, com quase 30 milhões de pessoas passando por desemprego e pobreza [2].

O fenômeno do endividamento das famílias não é um privilégio do Brasil [3].

As famílias argentinas vivenciam situação similar à das brasileiras endividadas com agravamento em plena pandemia, para fazer frente às suas despesas essenciais.

Registre-se uma grande diferença, o governo argentino já congelou os valores dos aluguéis; contudo, assim como no Brasil, a “moratória” não constitui solução para o futuro, pois apenas desloca por um tempo a espada da cabeça das famílias de consumidores.

A Acción del Consumidor (Adelco), junto com a Asociación de Defensa de los Consumidores y Usuarios de la Argentina y la Asociación Civil Cruzada Cívica, propõem um projeto de lei de insolvência familiar [4] visando, a exemplo do PL3515, a implementar um plano para regularizar as dívidas para as pessoas físicas que não estão protegidas, como as empresas, por dispositivo legal do concurso de credores ou declaração de falência.

A crise econômica em curso no Brasil, com empobrecimento, precarização do trabalho e crédito sem riscos para as instituições financeiras, é acelerada pela pandemia da Covid-19, com forte repercussão na realidade das famílias endividadas.

O reconhecimento da relevância da inclusão do consumidor no mercado é traduzido em países como os Estados Unidos, que estendem os benefícios da falência às pessoas físicas, concretizando o princípio do fresh start [5], ou seja, o direito de recomeçar dos devedores, que uma vez reabilitados financeiramente, tornam-se atores fundamentais no ciclo econômico, produzem renda e realizam gastos de consumo.

Muito se tem escrito e debatido nos campos acadêmico, legislativo e judiciário sobre a importância social e econômica da falência das empresas e sobre o quanto são importantes ferramentas mais efetivas das políticas públicas, não só para enfrentar o penoso processo de recuperação das empresas no caminho para superar a crise econômica quanto para garantir sua função social.

No Brasil, o marco legal que orienta os pedidos de recuperação judicial das empresas é a Lei 11.101/2005, que estabelece as etapas necessárias para a reorganização das finanças da empresa sob o espírito de preservação da atividade empresária, de proteção dos credores e, principalmente, de garantia do mercado de trabalho.

Todavia, não é só a recuperação judicial de empresas que viabiliza o equilíbrio do mercado e a recuperação da economia com superação de crises.

Micro e pequenas empresas e consumidores estão unidos em uma luta da sociedade para sobreviver com dignidade. Mas estes últimos não têm oportunidade de renegociar suas dívidas para serem reincluídos no mercado. Há um vácuo no ordenamento jurídico brasileiro que não contempla o tratamento do superendividamento das pessoas físicas [6].

A exclusão de milhares de brasileiros endividados do mercado de consumo prejudicará a retomada econômica, uma vez que o consumo das famílias totalizou R$ 4,7 trilhões em 2019, representando 64,9% do PIB. A pandemia já atingiu o principal pilar de sustentação da economia brasileira, que registrou queda inédita em março de 2020 [7].

Para enfrentar a grave crise econômica, a legislação brasileira precisa refletir com precisão na prioridade das pessoas no mercado, na proteção dos consumidores, estejam eles reunidos em famílias constituídas em micro e pequenas empresas ou individualmente, e na necessidade de sua inclusão no mercado de consumo.

As possibilidades para o enfrentamento dessas questões concretizadas na segurança alimentar e no mínimo existencial não podem ser encontradas prontas ou de forma casuística. Exigem uma construção sólida e precedidas do diagnóstico comprometido com a preservação e qualidade da vida.

O PL 3515 muda isso!
O PL 3515/15, que trata da atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de prevenção e tratamento do superendividamento, foi aprovado por unanimidade no Senado e está pronto para ser votado na Câmara de Deputados. É fruto de denso estudo empírico, longa reflexão da sociedade, além de anos de debates e mudanças/aperfeiçoamentos, e constitui uma solução completa para o presente e o futuro.

O projeto de lei inaugura práticas de crédito responsável e combate de assédio ao consumo de idosos e analfabetos há muito existentes em outras sociedades democratizadas de crédito, além de prever um procedimento que permite a recuperação dos consumidores e a sua reinclusão no mercado de consumo mediante a conciliação e a estruturação de um plano de pagamento em bloco das dívidas com todos os credores por meio da preservação do mínimo existencial para os devedores de boa-fé.

A realidade antes da pandemia mostrava a possibilidade de realização dessas conciliações em bloco entre o consumidor e todos os credores, pois já eram realizadas extrajudicialmente em algumas Defensorias Públicas e Procons e pré-processualmente no Judiciário, a exemplo de TJ-RS, TJ-PR, TJ-BA, TJ-PE, TJ-SP e TJ-DFT, com êxito [8]. O sucesso dessas iniciativas permitiu a incorporação de uma fase conciliatória no tratamento do superendividamento, reforçando a cultura do pagamento das dívidas e da educação financeira. A intervenção judicial com plano de pagamento compulsório somente ocorrerá quando inexitosa a tentativa de conciliação.

Logo, a aprovação do PL 3515 permitirá o resgate de milhares de brasileiros superendividados que tiveram a renda reduzida ou que perderam o emprego durante a pandemia, com impacto muito positivo na economia.

Nessa perspectiva, o Banco Mundial, desde 2012, já recomendava em seu relatório [9] a adoção de regimes de insolvência para pessoas físicas visando a um futuro produtivo e destacava que o ser humano por trás das empresas precisa ser protegido.

Uma vida a ser vivida, uma vida garantida, com o direito de recomeçar!

 é juíza de Direito do TJ-RS, ex-presidente do Brasilcon, diretora adjunta da “Revista de Direito do Consumidor” e doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da PUC-Rio, cientista do Estado (Faperj). membro do Conselho Consultivo do IDEC e diretora do Brasilcon.

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Um legado à professora Fabiana D’Andrea Ramos

Este é o texto que não se planeja escrever. O sentimento que antecede o toque a cada letra do teclado se materializa na saudade já presente diante da recente e prematura passagem da Professora Fabiana D’Andrea Ramos. Está na lição de vida que fortemente sustentou o motivo pulsante para escrever algo que a fará viva no registro acadêmico, que sempre estará conosco, além, é claro, do sorriso largo, do temperamento agridoce e do carinho dado aos que tiveram a alegria de um convívio mais próximo.

A jovem Fabiana, com os sonhos que nos são próprios da idade, iniciou sua vida profissional como egressa do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ano de 1997; ingressou, no ano seguinte, em uma das escolas jurídicas mais renomadas do mundo, ao cursar Mestrado em Direito, na Universidade de Heidelberg, na Alemanha; e concluído o doutorado, em 2005, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A carreira docente teve início na Universidade Federal Fluminense, em Niterói-RS, sendo que atualmente era professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atuava ainda como Secretária Executiva da Rede Brasileira de Pesquisadores em Direito Internacional, era Diretora de Assuntos Internacionais do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), tendo sido vice-presidente do instituto.

Fabiana desenvolveu uma carreira acadêmica louvável, foi bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/Brasil) com a pesquisa que resultou na tese A Eficácia Vinculativa das Cartas de Intenções. Na Alemanha foi orientanda do Prof. Dr. Dr. h.c. Erik Jayme, e bolsista da Fundação Konrad Adenauer. Recentemente dedicava estudos à mediação e instrumentos de composição de conflitos, realizou o curso Mediação de Conflitos: Novo Paradigma à Construção da Paz, da Clínica de Psicoterapia e Instituto de Mediação, CLIP, Brasil. Foi pesquisadora do Centro de Estudos Europeus e Alemães, CDEA/Brasil e membro do Grupo de Pesquisa Mercosul, Direito do Consumidor e Globalização, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em importante contribuição ao direito, a professora Fabiana, é autora do artigo Métodos Autocompositivos e respeito à vulnerabilidade do consumidor, publicado na Revista de Direito do Consumidor (v. 109, p. 333-348, 2017); também no livro Diálogos entre o Direito do Consumidor e o Novo CPC, da Editora Revista dos Tribunais; escreveu sobre o transporte aéreo, em texto intitulado Transporte aéreo e cancelamento de voos: comentários ao REsp 1.469.087/AC, publicado na Revista de Direito do Consumidor (v. 110, p. 566-594, 2017); tratou dos contratos bancários no artigo Contratos bancários, hipervulnerabilidade por deficiência física e obrigação de informar: comentários ao REsp 1.315.822/RJ, com publicação na Revista de Direito do Consumidor (v. 99, p. 463-496, 2015); ainda sobre a proteção dos consumidores é autora do artigo Aspectos da Aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor aos Contratos de Licença de Uso de Software, na Revista de Direito do Consumidor (v. 46, p. 165-192, 2003); junto à professora Fabiana Barletta, publicou na obra Mediação e Relação de Consumo, o artigo Relações de Consumo e Métodos autocompositivos: reflexões sobre a questão da vulnerabilidade.

Ao lado das professoras Claudia Lima Marques e Gail Person foi organizadora da obra Consumer Protection: Current Challenges and Perspectives, publicada em 2017; junto aos professores Thierry Bourgoignie e Patrícia Galindo da Fonseca organizou o livro A Proteção do Consumidor no Brasil e no Quebec: Diálogos de Direito Comparado, em 2013; com os mesmos colegas foi organizadora, no ano de 2010, do livro Legislação Comparada sobre Direito do Consumidor.

A minha alegria na amizade com a Fabi, também fez, da professora Fabiana, uma das minhas melhores parceiras acadêmicas, dividimos a coautoria nos textos: Common Law and International Consumer Protection in the Global Orbit of Consumption, publicado em livro de organização das professoras Claudia Lima Marques e Wei Dan, intitulado Consumer Law and Socioeconomic Development: National and International Dimensions, publicado em Berlin, pela editora Springer, no ano de 2017; Consumer Protection and ADR: Comments about Vulnerability, no livro Consumer Protection: Current Challenges and Perspectives, publicado em Porto Alegre-RS; Common Law and International Consumer Protection in the Global Orbit of Consumption, na obra Consumer Law and Socioeconomic Development: National and International Dimensions; For a Common Consumer Right: The Global Consumption Orbit and the International Protection, publicado em The Future of International Protection of Consumers; e no jubileu de prata do Código de Defesa do Consumidor publicamos o artigo Por um Direito Comum ao Consumidor: a órbita global de consumo e a proteção internacional, editado para o livro 25 anos do Código de Defesa do Consumidor: trajetória e perspectiva, da Revista dos Tribunais, em 2016, que também foi publicado na obra Sociedade de Consumo: pesquisas em direito do consumidor III.

Como articulista na coluna Garantias de Consumo, no site Consultor Jurídico, tem quatro brilhantes participações, com os textos Superendividamento maior é problema do mercado de crédito, não do consumidor; Meios autocompositivos podem reduzir vulnerabilidade do consumidor; Por uma adequada resolução dos conflitos de consumo; e A desjudicialização favorece a proteção do consumidor?

Membro da Associação de Juristas Luso-Alemães, com sede em Heidelberg/Alemanha. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, com sede em Brasilia/DF. Pesquisadora internacional associada ao Groupe de Recherche en Droit International et Comparé de la Consommation (GREDICC), com sede em Montreal/Canadá. Eis a professora, que os estudos deixados irão eternizá-la.

Quero, contudo, nesta, já alegre – assim ela levava a vida e assim será justo lembrar – homenagem póstuma, em que o toque triste no teclado, ao início do texto, abre espaço contagiante para falar um pouco da minha amiga Fabi. Tudo que for dito, não poderá trazer a essência do lindo ser humano que ela é. Aos que até aqui acompanham, deixo-os em A sala de espera da vida, por Fabiana D’Andrea Ramos.

Na primeira vez que tive câncer, meu primeiro pensamento foi na morte. O segundo, foi na vida. E o terceiro e o quarto e o quinto e o sexto… Ok, no sétimo, pensei na morte de novo, mas nunca me permiti acreditar que ela viria com o câncer e sobretudo não tão cedo, não aos 41 anos. Porque há mais pelo que viver do que pelo que morrer. Mas ao receber a notícia, em nenhum momento pensei nos cabelos. Foram minhas médicas que logo me alertaram: os cabelos vão cair! E eu ali, com milhões de outras preocupações e pensamentos. Uma revolução dentro da minha cabeça e nem me ocorreu pensar nos cabelos.

A careca, no entanto, era um estigma. Um sinal ostensivo. Alguns veem como sinal da doença. Para mim, era sinal da cura! As pessoas se incomodam muito com a aparência. Eu até achei que ficou exótico. Enfim, não era um problema. Só um detalhe. Sinceramente, nesse processo todo havia coisas MUITO mais importantes, para as quais ninguém nem ligava muito.

Mais importante era lidar com os milhões de pensamentos e emoções zunindo de um lado para o outro na minha cabeça, colocando-me no meio de um turbilhão. Era difícil controlar essa avalanche para se concentrar no tratamento e permanecer tranquila para o seu sucesso. Quando terminei o tratamento, estava certa de ter sido bem-sucedida nessa parte, porque não me deixei dragar para dentro da tormenta. Não dei muito espaço para isso. Mas, claro, fiz minhas reflexões. Não me fiz a famosa pergunta do “porque eu”? Meu questionamento foi mais no sentido de “para que propósito”? Era claro para mim que o câncer tinha o propósito de demandar de mim mudanças importantes para continuar vivendo. E tive que dar uma vasculhada na vida para entender quais mudanças eram necessárias. O câncer era como um alerta: se você continuar nesse caminho, vai morrer. Sim, morrer vamos todos, mas no meu caso a morte teve a generosidade de dar um aviso prévio. Nem todos têm essa sorte. Considero uma benção! Era como um tapa na cara dizendo “chega! Te sacode e segue a vida”. À época eu sofria com o fim de uma relação. E tenho certeza que meu sofrimento virou um tumor. Eu criei essa teoria para minha doença e isso me ajudou. Deus foi bom para mim, condensando nessa bola dura de mais de três centímetros na minha mama direita tudo de ruim que havia em mim e me fazia sofrer. Exatos 3,3 centímetros de sofrimento. Parece pouco, mas fez um baita estrago. Minhas reflexões iniciais então eram: se eu não romper isso que me faz mal, a doença vai tomar conta. Ela até pode ir embora agora, mas voltaria. Se eu não mudar, ela vai voltar. Foram quatro sessões de quimioterapia com esse pensamento. Eu não tinha muita segurança a respeito do que exatamente em mim eu precisava mudar. Parecia-me que a única coisa concreta que eu poderia fazer era romper aquele relacionamento. Eu sabia que me fazia mal. E sabia que para ficar bem deveria cortar tudo que me fazia mal. A medicação não ia funcionar se eu não ajudasse. Então, tratei de começar a cortar os vínculos. Timidamente ainda, porque é difícil mudar. É difícil romper condicionamentos. Mas fui me convencendo.

Depois da quarta sessão de quimio, mais ou menos três meses depois do início do tratamento fiz um exame para verificar se o tumor havia reagido à medicação e, surpresa, ele não estava mais lá! Regressão total do nódulo, dizia o laudo. Alívio! Alívio e certeza de que tudo que ele representava tinha ido embora também. E ali dei adeus ao sofrimento e me voltei para uma vida repleta de possibilidades e expectativa. Mas era preciso esperar. De repente, eu queria fazer tudo, viver tudo, experimentar tudo. No entanto, o tratamento continuava. E assim também a fadiga, o mal-estar, as limitações. Então minha segunda reflexão foi: paciência. Tudo tem seu tempo. Era difícil esperar. E passei a viver na sala de espera. Vivia a espera de poder abraçar a vida. Olhava pela janela e aguardava o dia em que poderia sair livremente, dançando e sorrindo. Enquanto isso, valorizava outras pequenas coisas do dia a dia. Aprendendo a ver luz e graça em todas as coisas.

Mas na segunda vez que tive câncer… na segunda vez, meu mundo desabou. Fazia pouco mais de seis meses só que eu tinha saído da minha sala de espera imaginária. Minha ainda frágil autoconfiança se foi. Minha estrutura ruiu. Minha teoria tão minuciosamente construída se voltou contra mim como um tsunami. Era como se uma voz gritasse na minha mente: você não fez o suficiente! Você não fez o suficiente! Parecia que a minha viagem interior teria que ser mais profunda do que eu imaginava. O que eu andava fazendo de tão errado para o câncer voltar e voltar com mais força? Poucos meses antes, meus exames não acusavam nada e de repente aquele nódulo. E poucas semanas depois, outro nódulo. E depois, infiltração na pele. O que essas células doentes, que se reproduzem enlouquecidamente queriam me dizer? Que significado tinha aquilo tudo?

Não tive muito tempo para pensar nisso antes de me despedir definitivamente da mama. E logo depois os cabelos se foram de novo. Tudo tem sido mais difícil dessa vez. A careca agora incomoda mais. Não por causa dela mesma, continuo achando exótico. O que incomoda é o olhar dos outros para ela. Não tenho mais aquela força para explicar, comentar e ouvir chavões do tipo: “cabelo cresce de novo”! A recuperação da cirurgia foi mais dolorosa também e com mais sequelas. Mas tenho aprendido nesse caminho, que ainda não terminou. Eu ainda acredito que o câncer, nas pessoas adultas, vem com um propósito. Ainda acredito que ele vem como uma oportunidade de autorreflexão, de mudança, de melhoria, de renascimento.

Tenho tentado ser mais generosa comigo mesma, sobretudo, tenho tentado afastar minha teoria maluca de que tenho algum tipo de responsabilidade no desenvolvimento da doença. Claro que um comportamento positivo, uma visão otimista e uma atitude confiante ajudam no tratamento. Não tenho dúvida disso. Mas eu não sou responsável pelo câncer. Ele não vem e vai por causa das minhas atitudes, das minhas limitações, dos meus erros, das minhas carências. Ele vem porque tem que vir. E para cada pessoa é diferente. É uma doença, que, embora tenha seus padrões, se revela distintamente em cada pessoa que é afetada por ela. E isso vale tanto para os doentes, como para aqueles que sofrem junto com eles. Eu posso falar do meu câncer, mas cada um tem o seu, diferente do outro.

E do meu câncer eu posso dizer que, ao invés de lutar contra ele, estou aprendendo a abraça-lo como parte da minha vida. Ele não é morte, mas parte de uma vida exuberante! Ele me faz ser generosa e gentil comigo mesma, está me ensinando a perdoar a mim mesma e me faz sentir a força imensa da gratidão. Eu ainda estou aprendendo. Ele está me ensinando que não existe sala de espera na vida. Nunca! Eu vivo hoje a minha vida plenamente e a aceito com gratidão, exatamente como ela é. Com toda sua beleza, com toda sua dificuldade, com toda sua graça.

Não, eu não sou uma paciente. Ser paciente oncológica não me define. Eu sou Fabiana, filha teimosa, impaciente e carinhosa, mãe feliz e realizada de uma explosão de alegria chamada Julia, professora amante do conhecimento, amiga leal, mulher curiosa da vida, vibrante de amor e encantada com a beleza da existência. Um grupo de células teimosas diz pouco sobre mim, porque a parte não define o todo, e eu sou tudo e nada, sou muito e pouco, sou inteira e sou metade. Muito prazer, eu sou Fabiana, aprendendo a viver!

Ao retomar a escrita, “fica sempre, um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas”. Querida Fabiana, fica vida em cada um de nós.

 é doutorando em Direito da UFRGS; mestre em integração latino-americana pela UFSM; docente do curso de Direito da Universidade Franciscana (UFN); professor convidado de cursos de pós-graduação, em especial da especialização em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais, da UFRGS, da especialização O novo Direito Internacional, da UFRGS; coordenador do Projeto de Prevenção e Tratamento do Superendividamento do Consumidor no Município de Santa Maria (RS); secretário-geral do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon); e conselheiro do Fundo Gestor de Direitos Difusos do Ministério da Justiça.