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Sebastião Reis Júnior: Um juiz incomum

“Conheci” o Ministro Marco Aurélio Mello muito antes de nos encontrarmos pessoalmente. No meu dia a dia, era comum ouvir da minha mãe, à época estudante de Direito na Universidade de Brasília (UnB), elogios àquele jovem professor de Direito do Trabalho. Preparado e dinâmico… Esses eram alguns dos adjetivos corriqueiros usados para se referir ao então Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Mais tarde, estudante de direito na mesma UnB, tive eu o prazer de ser seu aluno e verificar de perto que os elogios eram mais do que justos. Suas aulas eram atrativas, nas quais o Professor Marco Aurélio demonstrava um raro e especial domínio da matéria lecionada. Ali, já era possível perceber traços de um juiz extraordinário, de vanguarda, que, desde então, já despontava na liderança da evolução da doutrina jurídica brasileira. Notava-se em suas aulas ousadia, coragem, destemor, raciocínio rápido, o gosto pelo debate e o amor à Justiça.

Neste dia 13 de junho, o Ministro Marco Aurélio completa 30 anos de Supremo Tribunal Federal sem ter se afastado de seu espírito de contemporaneidade, que lhe era próprio ainda em 1978, quando iniciou sua carreira como juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

Nascido em 12 de julho de 1946, o Ministro Marco Aurélio é formado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Antes de juiz no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, foi advogado e membro do Ministério Público do Rio de Janeiro. E, depois, foi Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, onde permaneceu por nove anos até passar a integrar a nossa Suprema Corte.

Foi, por três vezes, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, onde, em continuidade ao processo de informatização das eleições iniciado pelo Ministro Carlos Velloso, presidiu a primeira eleição pelo sistema eletrônico de votação.

Trata-se de um juiz incomum. Não tem compromisso com seus erros. Reconhece sua humanidade e volta atrás quando percebe que outra solução é mais adequada e mais justa que a anterior. Também não tem medo de expor suas convicções mesmo que fique solitário. A semente etá plantada e não raro o futuro fez ou fará justiça ao caminho escolhido.

Não são poucas as teses que hoje prevalecem e que tiveram como nascedouro seus votos vencidos: a declaração de inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos; a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel; a inconstitucionalidade da cláusula de barreira; o reconhecimento do instituto da infidelidade partidária; e a constitucionalidade da prisão apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Seu modo de agir como juiz mostra a razão de ser do colegiado. A corte se impõe não pelas decisões unânimes, mas pelos seus debates, pela força das divergências bem construídas, pelas ideias conflitantes típicas do Estado democrático de Direito. Como ele mesmo diz, o juiz que integra um colegiado não está ali para dizer amém como se fosse “vaquinha de presépio” quanto ao relator.

No entanto, é preciso dizer que sempre que diverge o faz com profundo embasamento jurídico (e também com elegância e respeito e, em certas ocasiões, com algumas pitadas de humor e ironia).

Ao vê-lo no colegiado, fico imaginando a dificuldade de enfrentá-lo em um debate, tendo em vista o seu raciocínio rápido, o seu conhecimento jurídico amplo e rara coragem. Ele não se intimida nem pela complexidade da causa nem pela situação de defender de forma isolada determinado entendimento e, muito menos, por contrariar pressão pública ou publicada. Sua convicção e sua confiança em suas ideias o impulsionam sempre a ir em frente.

Um juiz de visão. Teve a ousadia de implantar a TV Justiça, instrumento que tornou mais transparente o Poder Judiciário, mesmo quando boa parte da magistratura era contrária. Superou incompreensões dentro da própria casa e hoje não se imagina a sua extinção.

Tem um defeito, já que ninguém é perfeito: é torcedor fanático do Flamengo. Essa é uma maioria a que ele se alia com prazer.

E não há como falar do Ministro Marco Aurélio sem falar de Sandra, sua esposa, de Letícia, Renata, Cristiana e Eduardo, seus filhos, e de João Pedro, Rafaela, Luisa e Laura, seus netos. Tenho prazer de conhecê-los todos e posso arriscar dizer que, certamente por trás do grande juiz que é, o Ministro Marco Aurélio tem uma grande família.

Sei que sou suspeito para falar. Fui seu aluno, advoguei tendo ele como juiz e hoje somos colegas de magistratura, mas não há como não reconhecer que o Ministro Marco Aurélio é um magistrado que se entrega de corpo e alma ao que faz, empenhado na entrega da efetiva prestação jurisdicional. Para ele, como não se cansa de dizer, o processo não tem capa, tem conteúdo. Ele é um amante incondicional do Direito, da magistratura e, principalmente, da Justiça, sendo um exemplo para todos nós, juízes.

Sorte de um tribunal que pode tê-lo como membro e mais sorte ainda do povo brasileiro que tem um juiz como o Ministro Marco Aurélio.

Sebastião Reis Júnior é ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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Feferbaum e Klafke: Ensino jurídico na quarentena — parte IV

Temos pensado muito sobre a ressignificação do espaço da sala de aula no ambiente presencial e, agora, o impacto do confinamento na educação. Esse é apenas mais um motivo para que as pessoas envolvidas reflitam sobre o papel do(a) professor(a) e do quanto é urgente revalorizar o espaço da sala de aula e o papel que os discentes desempenham nele durante o processo de ensino-aprendizagem.

Enxergar docentes como facilitadores do aprendizado, e não como centro do ensino, pode ser a chave. Reduzir o papel do professor a um orador, educador ou portador do saber não dá mais conta da realidade que precisamos enfrentar. Encarar a função de ensinar como sustentação de espaços de construção de conhecimento e pensar na docência também como exercício de empatia torna factível a ressignificação. Passar conteúdo não é complicado; difícil mesmo é educar. Por isso, docentes devem continuar aprendendo a aprender.

É importante ressaltar: uma boa aula é uma boa aula em qualquer ambiente, seja virtual, seja presencial. Cada um desses espaços possui suas particularidades, que podem ser potencializadas para o bem ou para o mal. Contudo, o mais importante é saber aonde se quer chegar, isto é, que tipo de egresso se quer formar. A partir dessa meta, é possível estabelecer um plano de ensino com objetivos de aprendizagem claros. Quando o encontro é bem planejado, fruto de uma profunda reflexão e com um propósito definido, extrai-se o melhor desses dois mundos.

Se os(as) alunos(as) puderem decidir frequentar o espaço de ensino que quiserem, eles(as) só irão investir tempo naquilo que fizer sentido, virtual ou presencialmente. O confinamento evidenciou que muitas atividades podem ser feitas remotamente. Consequentemente, a sala de aula terá que valer muito a pena para manter sua importância, e isso tanto para professores(as) quanto para alunos(as). É necessário estabelecer um novo sentido para manter 30, 40, 60 ou 80 pessoas juntas e compensar os riscos sanitários de sair de casa, com o trânsito das grandes cidades e todas as dificuldades, cada vez maiores, de se deslocar fisicamente e estar num horário pré-determinado em um local, no qual deverão ficar por horas seguidas.

Se for para oferecermos aulas sumariamente expositivas, não precisamos ter o desgaste de nos reunirmos fisicamente; mas, se formos trocar vivências, aprender com o outro, nos relacionar e construir juntos, aí valerá realmente a pena o esforço, especialmente em um momento em que todos precisam falar e ser ouvidos. Tudo indica que o ensino híbrido será o grande debate para o presente e futuro. Portanto, precisamos aprender a ocupar o espaço da sala de aula com experiências que só podem acontecer no encontro com o outro.

Habilidades e competências do futuro que chegou
Ao lado da discussão humana, relacionada, por exemplo, com questões de saúde física e mental de docentes e discentes, queremos ressaltar a dimensão instrucional sobre o que a sala de aula precisa desenvolver. De uma hora para outra, as pessoas tiveram que lidar com mudanças de rotina, uso de tecnologia, novos trabalhos e, o principal, a crise social e econômica. No ensino, as habilidades exigidas de professores e alunos só evidenciaram a importância do discurso sobre as competências do futuro: capacidade de adaptação e de resiliência.

Diante de novas situações, radicalmente distintas do que poderíamos imaginar em exercícios de novos cenários, precisamos nos reinventar — e vários o fizeram — para enfrentar os desafios. Essa será uma marca do nosso futuro. Ações previsíveis e repetitivas serão realizadas por algoritmos, que farão esse trabalho muito melhor do que seres humanos, sem erros e a um custo menor. Sim, um algoritmo será mais eficiente do que um profissional mediano. O que não será substituído é justamente a capacidade de se engajar em relações sociais significativas, reconhecer a alteridade, pensar em soluções criativas e enfrentar dificuldades e situações inéditas.

Há professores(as) e alunos(as) insatisfeitos(as) com o ensino a distância. Sempre haverá resistências diversas. Contudo, assim será o futuro, cada vez mais incerto e tecnológico. E as resistências precisam levadas a sério — a discussão sobre desigualdade social e ensino a distância, por exemplo, não deveria ter sido ignorada nos últimos anos e não pode ser esquecida. Mas elas também devem ser trabalhadas. Não apenas pelo fato de as condições do retorno ao ensino presencial estarem incertas, mas também porque devemos nos reinventar em um mundo pautado pela transformação e rapidez.

Falando em velocidade, a temporalidade é uma outra questão importante que surge ao falarmos de competências e habilidades profissionais. Toda essa circunstância provoca uma mudança na nossa sensação do tempo. Esta crise evidenciou que o tempo da aula virtual, o tempo disponível para o desempenho dos vários papéis sociais, a influência das novas tecnologias e o período para a aprendizagem seguem lógicas diferentes. Como preparar futuros profissionais e nos prepararmos enquanto profissionais da educação para um futuro incerto? Desenvolvendo novas habilidades e sendo resilientes.

Sair desta pandemia tendo desenvolvido competências como responsabilidade, empatia, criatividade, autonomia, ética, paciência e resiliência será um enorme ganho.

Conclusões
Há uma anedota sobre o grande problema que se tornaram as fezes de cavalos no início do século XX nas grandes cidades industriais. Como resolver o problema? O advento dos automóveis, por fim, simplesmente eliminou a discussão. Pode ser que o debate sobre ensino online e ensino presencial em tempos de Covid-19 siga pelo mesmo caminho. O surgimento de uma vacina, acompanhado de produção e distribuição em massa, pode afastar várias das questões levantadas nesta série de artigos.

Ainda assim, podemos e devemos levar alguns aprendizados conosco. Primeiro, ganhamos em pouco tempo um grande conhecimento sobre ferramentas tecnológicas e organização de tempo e dos espaços pessoal e de trabalho. Utilizá-lo para aprimorar a educação é o próximo passo. Segundo, devemos atuar com planejamento e colocar em perspectiva o que será exigido de nós daqui a dois, três, cinco anos. Terceiro, um ensino de qualidade pode acontecer tanto no ambiente presencial como no ambiente virtual. Não podemos cair na tentação de achar que qualquer ensino presencial é melhor do que as aulas remotas. Finalmente, como agentes que contribuem para a reflexão social, devemos incutir nos(as) estudantes a sensibilidade para as questões humanas e sociais do nosso tempo. A crise deixou exposta a face mais cruel da desigualdade social. É nossa responsabilidade passar adiante a mensagem de que uma sociedade democrática não tolera essa realidade.

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 é professora e coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito São Paulo (FGV-CEPI).

Guilherme Klafke é professor da pós-graduação lato sensu da FGV Direito São Paulo e líder de pesquisa no FGV-CEPI.

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Gamil Föpper: A última trincheira da cidadania

Muito já se falou sobre a pessoa Marco Aurélio, o homem nascido na cidade do Rio de Janeiro, flamenguista de coração. De fato, sobre ele, muitas são as histórias: da fina ironia (sem dúvidas, machadiana) às tragédias pelas quais um dia passou (como o acidente, ainda adolescente, envolvendo um profundo corte em seu braço).

Não me cumpre, aqui, portanto, fazer um inventário da vida pessoal do ministro [1]. Não somos, por assim dizer, amigos próximos ou pessoas que compartilham o dia a dia. O meu objetivo, aqui, é outro. Parto da visão do criminalista sobre o juiz. Do advogado sobre o julgador. E, nesse ponto, especificamente, tenho algumas considerações a fazer.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello representa, seguramente, um dos mais ferrenhos defensores das garantias penais que a Suprema Corte já teve. Da sua parte, nunca titubeou em contrariar; contrariou, e decidiu, muitas vezes sozinho, contra a maioria dos seus pares.

Por ocasiões (não poucas), ao agir dessa maneira, anteviu a própria jurisprudência do tribunal, como no emblemático HC 82.959-7, que tinha, por objeto, discussão sobre a impossibilidade de progressão de regime quando a condenação envolvesse crimes hediondos ou equiparados. O ministro já afirmava sua inconstitucionalidade desde os anos 1990, a qual somente veio a ser reconhecida pelo tribunal em 2006 [2]. O exemplo em questão é representativo daquilo que o ministro Celso de Mello disse, em 2013, sobre estar nos votos vencidos, algumas vezes, as sementes das transformações [3].

Certamente por isso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmou, na última sessão do dia 10 de junho, que o ministro Marco Aurélio é um dos maiores magistrados da história do Brasil e das cortes constitucionais.

Irresignado defensor do equilíbrio entre os poderes, foi fácil perceber que a sua coerência científica e intelectual jamais permitiria que o tribunal criasse figuras penalmente típicas sem que houvesse, no mínimo, um sermão da sua parte. Para alguns, enfant terrible, para outros (e especialmente para mim), uma referência de defensor das garantias fundamentais, sempre com destemor e bravura (ou, como aqui dizemos na Bahia, sempre com valentia).

Ao ministro, desejo, pelos seus 30 anos de Supremo Tribunal, um penúltimo ano iluminado. Ao pai e avô, as alegrias da vida.

 é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.