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Gamil Föpper: A última trincheira da cidadania

Muito já se falou sobre a pessoa Marco Aurélio, o homem nascido na cidade do Rio de Janeiro, flamenguista de coração. De fato, sobre ele, muitas são as histórias: da fina ironia (sem dúvidas, machadiana) às tragédias pelas quais um dia passou (como o acidente, ainda adolescente, envolvendo um profundo corte em seu braço).

Não me cumpre, aqui, portanto, fazer um inventário da vida pessoal do ministro [1]. Não somos, por assim dizer, amigos próximos ou pessoas que compartilham o dia a dia. O meu objetivo, aqui, é outro. Parto da visão do criminalista sobre o juiz. Do advogado sobre o julgador. E, nesse ponto, especificamente, tenho algumas considerações a fazer.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello representa, seguramente, um dos mais ferrenhos defensores das garantias penais que a Suprema Corte já teve. Da sua parte, nunca titubeou em contrariar; contrariou, e decidiu, muitas vezes sozinho, contra a maioria dos seus pares.

Por ocasiões (não poucas), ao agir dessa maneira, anteviu a própria jurisprudência do tribunal, como no emblemático HC 82.959-7, que tinha, por objeto, discussão sobre a impossibilidade de progressão de regime quando a condenação envolvesse crimes hediondos ou equiparados. O ministro já afirmava sua inconstitucionalidade desde os anos 1990, a qual somente veio a ser reconhecida pelo tribunal em 2006 [2]. O exemplo em questão é representativo daquilo que o ministro Celso de Mello disse, em 2013, sobre estar nos votos vencidos, algumas vezes, as sementes das transformações [3].

Certamente por isso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmou, na última sessão do dia 10 de junho, que o ministro Marco Aurélio é um dos maiores magistrados da história do Brasil e das cortes constitucionais.

Irresignado defensor do equilíbrio entre os poderes, foi fácil perceber que a sua coerência científica e intelectual jamais permitiria que o tribunal criasse figuras penalmente típicas sem que houvesse, no mínimo, um sermão da sua parte. Para alguns, enfant terrible, para outros (e especialmente para mim), uma referência de defensor das garantias fundamentais, sempre com destemor e bravura (ou, como aqui dizemos na Bahia, sempre com valentia).

Ao ministro, desejo, pelos seus 30 anos de Supremo Tribunal, um penúltimo ano iluminado. Ao pai e avô, as alegrias da vida.

 é advogado, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das comissões de Reforma do Código Penal e da Lei de Execução Penal, nomeado pelo Senado Federal.

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Alan Gallo: No longo prazo, estaremos todos mortos?

É bem provável que a frase título do presente artigo seja uma das mais famosas no mundo da economia. Escrita pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) em seu livro “Tratado sobre a Reforma Monetária” (A Treatise on Monetary Reform), de 1923, ela resume bem o coração da teoria econômica conhecida atualmente como keynesianismo.

Em termos técnicos, muito pode ser dito sobre a teoria econômica keynesiana, no entanto, para o propósito do presente artigo e também para fugirmos do economês, basta dizer que Keynes (ao contrário dos economistas neoclássicos) não acreditava no ajuste automático entre produção e procura, rendimento e demanda ao nível do pleno uso de recursos, sendo necessário, portanto, que o Estado intervenha na economia para sustentar e regularizar a atividade econômica sempre que houver um descompasso na economia que leve a um equilíbrio abaixo do pleno emprego dos recursos.

O Estado pode intervir na economia de diversas formas, mas uma das mais conhecidas se dá por meio da política de expansão monetária, ou seja, pela impressão de mais dinheiro.

Da perspectiva do governo, à primeira vista, pode parecer que em tempos de crise como a que estamos vivendo agora em decorrência da Covid-19, a impressão de mais dinheiro é a alternativa mais rápida e mais altruísta para lidar com os efeitos avassaladores da crise. No entanto, é preciso entender que como qualquer outro bem na economia, o dinheiro também está sujeito às leis da oferta e da demanda. Em termos mais práticos, quanto maior a oferta de determinado bem, menos ele valerá. Isso também se aplica ao dinheiro.

Quando o Estado resolve intervir na economia por meio de uma política de expansão da base monetária (impressão de dinheiro), a consequência a médio-longo prazo é invariavelmente a inflação. Como existe mais dinheiro circulando no sistema, os preços da maior parte dos bens disponíveis na economia também sobem. Essa é a chamada inflação.

De modo geral, os economistas costumam medir a inflação pelo Índice de Preços ao Consumidor, o que é o mesmo que dizer que por meio da variação dos preços experimentada pelo consumidor ao longo do tempo é possível auferir qual é a inflação.

Apenas para se ter uma ideia, já é algo bem documentado nos livros-texto de economia que nos Estados Unidos nos últimos 70 anos os preços subiram em média 4% ao ano. Somente naquele país essa inflação de 4% ao ano levou a um aumento de 16 vezes no nível geral de preços. No Brasil, por sua vez, com sua tradição de governos interventores na economia, somente nos anos de 1999 a 2019 a inflação oficial acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) somou 240%.

As consequências de médio-longo prazo da impressão de mais dinheiro são bem conhecidas hoje e já eram conhecidas também na época de Keynes. Prova disso é a frase citada logo no início do texto, onde o economista inglês afirma que “no longo prazo estaremos todos mortos”. A verdade é que, devido à sua abordagem de curto prazo e em termos de circuito, Keynes nunca se preocupou com o longo prazo, mas somente com os mecanismos que estão na origem do subemprego e com as políticas suscetíveis de evitar o desemprego no âmbito de uma sociedade capitalista.

Trazendo o problema para o contexto brasileiro mais próximo, no último dia 8 de abril o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, em entrevista para a britânica BBC, defendeu a impressão de moeda ao dizer: “O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”.

A competência técnica do atual secretário da Fazenda e do Planejamento de São Paulo é indiscutível, no entanto, uma variável importante não foi levada em conta por ele em sua proposição. É, sim, verdade que, no curto prazo, a expansão da base monetária não trará inflação, especialmente em se tratando de um período de contração da economia. No entanto, tão logo a economia retome suas atividades e o dinheiro volte a ter seu fluxo normal dentro do sistema, as consequências serão inevitáveis: aumento da inflação, perda do poder de compra e diminuição real do valor dos salários (ainda que não nominalmente).

Num contexto de crise, Meirelles parece ceder aos encantos da teoria keynesiana, muito embora seja classificado como um liberal por muitos. É inegável que o clamor por respostas imediatas e de curto prazo do Estado é muito forte, sendo necessário certo sacrifício de reputação para não ceder a elas. Por vezes é preciso ficar do “lado mal” da história temporariamente para não ceder ao populismo, um preço que nem todos estão dispostos a pagar.

Se por um lado a opção keynesiana é, sim, uma das políticas econômicas disponíveis na mesa, é preciso que a população entenda os efeitos não apenas de curto, mas também de longo prazo. Injetar dinheiro hoje na economia trará consequência nefastas daqui a um tempo, principalmente para a população mais carente — última a receber o dinheiro injetado.

Tal qual tudo na vida, escolhas de políticas econômicas têm consequências e não é possível escapar delas. Por isso, é fundamental que o cidadão compreenda as causas e consequências do jogo político e econômico para que se emancipe e possa participar conscientemente do momento social em que vivemos.

Ainda que no longo prazo todos estejamos mortos, como afirmou Keynes, ainda sim somos responsáveis pelo tipo de sociedade que construímos e por aquilo que legamos à próxima geração. Em tempos de pandemia, valores como fraternidade, altruísmo e empatia também deveriam se estender aos que virão depois de nós.

Allan Gallo Antonio é formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrando em Economia e Mercados pela mesma instituição e pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.