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Alessandro Leite: A procuradoria municipal na crise

Historicamente, o primeiro registro da advocacia pública no Brasil remonta ao 1º Foral de Olinda, datado de 1537, que trouxe a figura do procurador do Conselho da Villa de Olinda. Quase meio milênio depois, verifica-se que o déficit de procuradores municipais no cenário jurídico pátrio ainda é extremamente preocupante, o que não deixa de ser um grande paradoxo, tendo em vista que, apesar de sermos os primogênitos da advocacia pública brasileira, seremos, certamente, os últimos a ser instituídos na integralidade.

Indispensável pontuar nesse contexto o papel da Associação Nacional de Procuradores Municipais (ANPM), que vem há mais de duas décadas fomentando a instituição e o fortalecimento das Procuradorias Municipais no país, atendendo, desta forma, ao pórtico do artigo 132 da Carta Magna, que prevê a advocacia pública como função essencial à Justiça.

Há 17 anos, tramita no Congresso Nacional a PEC que constitucionaliza expressamente a carreira dos procuradores municipais. Aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados, atualmente a PEC encontra-se no Senado Federal, esperando pauta para votação. Nesse longo período de tempo, várias foram as tratativas e articulações no meio político. A aprovação ainda não veio, é bem verdade, mas ainda assim os avanços continuam e são inegáveis.

Em 2019, tivemos uma grande vitória no Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 663696. impetrado pelos destemidos colegas da Procuradoria de Belo Horizonte. Nos autos, discutia-se o teto remuneratório dos procuradores municipais. No mérito, obtivemos a confirmação, por meio da Egrégia Corte, em sede de repercussão geral, de que estávamos insertos no seleto rol das funções essenciais à Justiça previstas no Capítulo IV, Título IV, da Constituição Federal.

Com efeito, tem a ANPM buscado a criação de procuradorias nos 5.570 municípios brasileiros. São abnegados colegas, figurando ora como delegados, ora na diretoria, ou mesmo integrando o Conselho Deliberativo através da presidência das várias associações locais, além de contar com voluntários que se espalham pelo país em busca do fortalecimento das procuradorias e das carreiras de procurador municipal.

Na Paraíba, por exemplo, avançou-se muito nos últimos dois anos com a celebração de cerca de 185 termos de ajustamento de conduta pelo Ministério Público Estadual, fato que propiciará a realização de mais de cem concursos para procurador municipal no Estado. O caso foi tão exitoso e teve tamanha repercussão que foi apresentado no último Congresso Nacional de Procuradores Municipais, realizado em Brasília, em outubro de 2019, culminando com a promessa de que a experiência seria replicada pelos colegas em outras regiões do país.

Com a decretação da Pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde no mês de março do ano corrente, a situação jurídico- institucional dos entes federados e de seus respectivos servidores foi profundamente modificada. O advento do teletrabalho como regra, a edição quase que diária de atos normativos para disciplinar o período extraordinário, a intensa litigiosidade entre os entes… Além disso, outros grandes debates emergiram. Costuma-se dizer que o Direito está sendo literalmente reescrito nos dias atuais.

Nesse passo, entre as discussões acima mencionadas, destaca-se no contexto associativo da ANPM a que trata da viabilidade ou não da realização das eleições municipais neste ano. Há várias correntes de pensamento sobre o tema, bem como PECs tramitando no Congresso Nacional para tratar do assunto, dada a relevância e urgência da matéria.

Desta feita, em apertada síntese, três possibilidades surgiram:

I ) Realização do pleito em outubro, como normalmente ocorre;

II) Adiamento do pleito para dezembro;

III) Cancelamento do pleito e, consequentemente, a unificação dos mandatos e das eleições para todos os cargos eletivos em 2022.

Tem ganhado corpo no mundo político/jurídico e tem sido defendida, inclusive, pelo presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, a tese estabelecendo que as eleições municipais devem ser realizadas neste ano, sendo adiadas para o mês de dezembro. Segundo essa possibilidade, teríamos o chamado primeiro turno no primeiro domingo de dezembro e o segundo no terceiro domingo, às vésperas do Natal. No tocante aos novos mandatos, não teríamos mudanças, eles iniciariam em 1º janeiro de 2021.

Ressalte-se, por oportuno, que nos municípios brasileiros temos eleições bastante acirradas, com envolvimento direto dos munícipes nos pleitos. É preciso lembrar ao leitor, também, o caráter extremamente heterogêneo dos municípios brasileiros. Enquanto temos de um lado cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, com alguns milhões de habitantes, temos também Araguainha, Borá e Serra da Saudade, que não completam sequer o primeiro milhar de habitantes, de acordo com os dados oficiais.

É prática comum nos municípios brasileiros a não efetivação da chamada transição democrática entre antecessores e sucessores. Não obstante o aperfeiçoamento e o fortalecimento dos órgãos de controle, bem como das recomendações dos Tribunais de Contas e do monitoramento dos Ministérios Públicos Estaduais, o que se vê é a sonegação desenfreada de informações, a exclusão de dados em sistemas, o sumiço de materiais e equipamentos, entre outras atitudes capazes de inviabilizar a futura gestão.

Isso num cenário em que os “novos gestores” tinham 60 ou 80 dias para se inteirar da realidade que encontrariam no primeiro dia de mandato. Imagine em um cenário de 10 dias de transição, com as festividades de fim de ano entre eles.

Nessa difícil, mas provável, conjuntura que se avizinha, emerge a importância cada vez maior da figura do procurador municipal de carreira, nomeado após concurso público de provas e títulos. Detentor de parte da memória jurídica do município, ele certamente facilitará os primeiros dias da gestão, propiciando que esta possa ter conhecimento da realidade “intra muros”, permitindo o compartilhamento de informações e auxiliando o novo gestor nos primeiros passos do mandato.

É pelos procuradores municipais que o novo gestor saberá quais os programas estão sendo executados e não poderão sofrer interrupções, mormente em razão da sucessão do gestor. Além disso, a PGM vai instruir, juridicamente, os primeiros atos do governante, como elaboração de leis decretos, portarias, etc. Importante lembrar que o município poderá estar sujeito a alguma obrigação imposta pelo Judiciário e, neste caso, somente o procurador poderá informar como o novo prefeito deverá proceder diante de uma sentença judicial.

O escolhido nas eleições não pode ter ciência de todos esses fatores apenas depois do início do seu mandado. Esse conhecimento deve acontecer antes da sua posse, mesmo porque alguma informação poderá e deverá influir nos primeiros atos da nova gestão. Nesse ponto, ressalta-se a importância de uma transição de mandatários clara, amistosa e em sintonia com os melhores interesses dos administrados, o que resta prejudicado com a sensível diminuição do período desta passagem, mas o que se tornaria impraticável sem a iluminação jurídica emanada dos essenciais procuradores municipais, os quais preexistem a qualquer governante e permanecem na Administração após o término do mandato.

Não se sugere no presente que o procurador seja a panaceia para os tempos de tormenta a serem enfrentados pelo gestor, mas certamente dividir o fardo com uma procuradoria instituída e qualificada facilitará a travessia.

É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do Estado democrático de Direito e esse é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã.

 é procurador do município de Campina Grande (PB) e diretor da ANPM.

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Daier, Perregil e Pires: Relações humanas na pandemia da Covid-19

A pandemia causada pelo coronavírus colocou o mundo em isolamento social, obrigando-nos, enquanto sociedade, a repensar e reestruturar nossas relações. A diminuição do contato físico entre as pessoas e o aumento da necessidade do uso da inteligência artificial fortalecem a ideia de que os impactos da Covid-19 modificarão a forma como as pessoas interagem com o mundo ao redor.

Ao mesmo tempo em que isola as pessoas e paralisa grande parte dos setores da economia, a pandemia torna o diálogo e a tecnologia essenciais para a gestão da crise, na medida em que respostas e decisões devem ser apresentadas em tempo recorde.

Sabendo que a evolução das relações humanas, historicamente, inicia-se ou é acelerada por crises, ressurge uma inquietação já existente nas sociedades de consumo: como conservar a humanização dentro das relações?

O dicionário Aurélio define humanizar como “inspirar humanidade, tornar-se humano, tornar-se benevolente”. A solidariedade também está vinculada à humanização e tem como fundamento a dignidade humana.

No cenário de pandemia global, a consciência da necessidade de cooperação e a solidariedade podem ser os divisores para a superação da crise, o que também implica dizer que o momento exige um pensamento de coletividade. Isso interfere diretamente nos conflitos surgidos dentro das relações contratuais, relações de trabalho e interpessoais, colocando-os em rota de colisão com valores sociais sedimentados e discutidos ao longo de anos.

Os contratos exercem um importante papel social, apesar de serem negócios jurídicos e fonte de obrigações, também possuem como um de seus objetivos o desenvolvimento econômico.

Legitimando a necessidade de um pensamento humanizado e coletivo, de modo a evitar desequilíbrio e onerosidade excessiva para qualquer das partes (artigos 478 e 480 do Código Civil), o CC e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) determinaram que fossem observados valores éticos também nas relações contratuais, trazendo para o rol dos seus princípios a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva.

A visão social, trazida pela legislação vigente, além de evidenciar a importância de o interesse individual estar equilibrado com o coletivo, confirma que o Direito, por regular a vida em sociedade, deve acompanhar o dinamismo dos acontecimentos e as mudanças das necessidades humanas. A mesma linha de pensamento é observada na pandemia da Covid-19, em que o interesse coletivo passa a ser mais importante que o individual na vida em sociedade e a humanização trazida para o ramo dos contratos fica ainda mais necessária.

Fato é que a crise da Covid-19 provocou desequilíbrios, prejuízos financeiros e a necessidade de as partes buscarem soluções dentro dos contratos já firmados. A dúvida que surge é se esse momento pode justificar a revisão de um contrato ou a arguição de excludente de responsabilidade, pelo descumprimento de uma obrigação (artigo 393 do CC).

Nesse contexto, o momento exige a humanização das relações contratuais com a renegociação e readequação de cláusulas, o que vem sendo chamado hardship clause, para que as partes cheguem a um consenso e possam adimplir com suas obrigações, mantendo a relação contratual durante e no pós-pandemia.

No mesmo sentido, o Estado, por meio do Judiciário, vem sendo obrigado a fornecer respostas rápidas para aquelas relações em que os acordos não foram possíveis, tornando, em algumas situações, indispensável a sua intervenção para preservar a harmonia contratual, a dignidade da pessoa humana, o equilíbrio contratual e a manutenção da ordem econômica.

O lockdown completo ou parcial das empresas, causado pela crise da Covid-19, também impactou as relações de trabalho, afetando o cotidiano de cerca de 2,7 bilhões de trabalhadores. Esse número, segundo os dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na segunda edição do “Monitor OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho”, representa quase 81% da força de trabalho do mundo.

Agora é importante que as organizações empresariais reconheçam a necessidade emergencial de conciliação entre lucratividade e humanização, além do reflexo que as decisões institucionais terão em seus valores e posicionamento de mercado. 

De acordo com a OIT, o enfrentamento da crise depende de políticas integradas e focadas em quatro pilares: apoio às empresas, ao emprego e à renda; estímulo à economia e ao emprego; proteção de trabalhadores no local de trabalho; e uso do diálogo social entre governos, trabalhadores e empregadores.

No mundo dos negócios, não é de hoje a importância de ações humanizadas no aspecto de sustentabilidade, meio ambiente e relações de trabalho. Existe uma preocupação com a “cidadania corporativa”, termo bastante utilizado na superação de desafios mercadológicos a serviço de um desenvolvimento efetivamente sustentável, revelando-se como um novo valor no mercado corporativo.

Para evitar o aumento de passivo trabalhista, seja pela falta de cumprimento de obrigações, seja por soluções equivocadas tomadas durante esse período da Covid-19, as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao tema demonstram que as alternativas de solução com base no diálogo social, valor social do trabalho e pensamento coletivo sempre serão sustentáveis a longo prazo. A ideia sempre será utilizar as medidas disponibilizadas pelo governo, mas sem se distanciar dos princípios do direito à vida, saúde e dignidade.

Apesar de afetar toda a sociedade, a proporção dos efeitos da pandemia varia de acordo com critérios econômicos, étnico-raciais, de gênero e diversidade sexual, geopolíticos e etários das vítimas.

Ante a incerteza gerada pela crise, para a garantia de direitos humanos, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos publicou orientações a respeito de medidas a serem tomadas pelos Estados, tais como: acesso à moradia, alimentação saudável, saneamento básico e tratamentos de saúde; defesa dos direitos de idosos, defesa dos direitos das pessoas com deficiência, mulheres e pessoas LGBTI; enfrentamento a estigmatização, xenofobia e racismo. 

Mesmo com as redes de solidariedade e suporte aos grupos de pessoas mais afetados pela pandemia, existem violações a direitos humanos que já acompanham a história do Brasil — genocídio negro e indígena, atraso na igualdade de gênero, péssima distribuição de renda, entre outras — e que ficam ainda mais expostos pela pandemia.

Isso torna necessário que o setor privado e os estados busquem alternativas para manter o cumprimento de obrigações na esfera de direitos humanos, atuando de forma eficaz, com ponderação e adequação, a fim de preservar o máximo de vidas possível.

Assim, o momento tem exigido escolhas e soluções rápidas de governo, Judiciário, Legislativo e das empresas, a fim de agirem em meio à crise que nos afeta como sociedade, mas que ameaça, principalmente, os direitos humanos básicos de pessoas em contextos mais vulneráveis. Levando em conta a necessidade de humanização no cuidado, no acolhimento dos vulneráveis, é preciso dar especial atenção aos grupos com menos capacidade de reagir de maneira isolada à paralisação das atividades.

Luanda Pires é advogada, especialista em Direto Contratual, coordenadora do Núcleo de Mulheres LBT’s e Gênero na Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e membro das comissões da Mulher Advogada e da Igualdade Racial da OAB-SP.

Felipe Daier é advogado do Centro de Cidadania LGBTI Edson Néris Sul, da Prefeitura de São Paulo, e coordenador do Núcleo de Acolhimento LGBTQIA+ da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

 é advogada, sócia no escritório Innocenti Advogados e membro da Comissão de Direito do Trabalho e da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.

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A Lei 13.988/20 e o fim do voto de qualidade no Carf

Em um passado historicamente não tão distante assim, reis, faraós, czares, imperadores, chefes de tribo, detinham a função de resolver conflitos surgidos entre seus súditos, os membros da coletividade por eles liderada. Essa função, aliás, nós humanos partilhamos com os “alfas” de outros grupos de mamíferos, como chimpanzés e lobos. Também entre eles o chefe, dentre outras coisas, tem a função de dirimir conflitos e pacificar o grupo, mantendo-o coeso.

Naturalmente que o tal soberano, em sociedades cada vez maiores, não tinha como resolver sozinho, por sua própria conta, todos os conflitos. A atribuição passou gradualmente a ser delegada a pessoas de sua confiança, seus subordinados. Só no caso de alguma insatisfação diante da solução encontrada por tais subordinados haveria recurso ao soberano, devolvendo-se a ele (daí o nome do “efeito” dos recursos, até hoje?) o papel de julgar o conflito.

Não é preciso muita imaginação para concluir que tais subordinados, conquanto preparados e muito bem intencionados, não teriam como julgar adequadamente questões nas quais os interesses do próprio soberano estivessem diretamente envolvidos. Na melhor das hipóteses, se as julgassem contra esses interesses, perderiam o posto. Deixariam de ser “de confiança”. Isso quando não perdiam a cabeça. Às vezes literalmente.

Nessa ordem de ideias, no lento processo de tentativa e erro seguido pela Vida na Terra, desde o seu surgimento, e que com a inteligência humana passou a ser aplicado também às instituições sociais, quando as sociedades humanas cansaram dos abusos de seus chefes, idealizaram, dentre outras coisas, figuras como a separação de poderes e a legalidade. Junto delas se criaram, também, as garantias da magistratura, como consequência necessária. Para que o juiz possa, se for o caso, julgar contra os interesses do chefe, se este ou outros subordinados seus não tiverem seguido o que a lei determina.

A leitora então pode estar pensando, agora, ter havido um erro no site do Conjur. Não tratava o título deste artigo de “voto de qualidade”? Sim, tratava. É do que trata o artigo. Fruto da conversão em lei da Medida Provisória 899/2019, a Lei 13.988/2020 disciplina, no plano federal, o instituto da transação tributária, previsto genericamente no art. 171 do Código Tributário Nacional.

Quando de sua aprovação, contudo, um assunto rapidamente roubou a atenção até então dedicada apenas à transação: a extinção do “voto de qualidade”, levada a efeito pelo art. 28 da citada lei. A partir de agora, nos processos administrativos de controle interno da legalidade do crédito tributário, quando houver empate nos julgamentos levados a efeito por órgãos colegiados, a questão deverá ser decidida favoravelmente ao contribuinte.

Rapidamente surgiram vozes a protestar duramente contra a alteração. Mesmo o controle concentrado de constitucionalidade foi provocado, com a propositura de ADIs impugnando a validade do dispositivo. Apontam-se, basicamente, invalidades de cunho material e formal. Os vícios materiais decorreriam de uma suposta violação ao interesse público e à presunção de validade do ato administrativo. Suscita-se, ainda, uma quebra da igualdade, pois o contribuinte pode, perdedor no processo administrativo, provocar o Poder Judiciário, faculdade que não assiste à Fazenda Pública.

Quanto aos vícios formais, eles consistiriam, em suma, no fato de a extinção do voto de qualidade ser um “jabuti”, fruto de um contrabando legislativo. Diria respeito a matéria diversa da tratada originalmente na medida provisória. Isso supostamente levaria à invalidade formal da norma, havendo inclusive precedente do STF nesse sentido.

Tais argumentos já foram examinados por Igor Mauler Santiago, em primoroso artigo publicado aqui no Conjur há poucas semanas, cujas conclusões subscrevemos sem ressalvas (clique aqui). Talvez ainda haja espaço, contudo, para reflexões adicionais.

            Primeiro, vale lembrar que o voto de qualidade não é o mesmo que um mero “voto de desempate”, como existe em alguns Tribunais, e em órgãos administrativos fiscais de determinados Estados e Municípios. No voto de desempate, tem-se a atuação do Presidente do órgão, que até o empate não profere juízo algum quanto ao julgamento, limitando-se a conduzir a sessão. Se não houver empate, o Presidente simplesmente não vota. No caso do “voto de qualidade”, que a Lei 13.988/2020 aboliu, a situação é diferente: a composição do órgão é par, incluindo-se o Presidente. Na hipótese de, com o voto do Presidente, que o profere por último, verificar-se o empate, seu voto passa a ter “peso duplo”, o que leva ao desempate no sentido do entendimento por ele manifestado. Parece o mesmo que o voto de desempate, mas não é, pois há, no voto de qualidade, maltrato à regra da igualdade entre os julgadores, diante de alguém que preside, conduz, sempre vota, e ainda pode fazê-lo duas vezes, em notória influência sobre os demais. É evidente, ainda, que o “segundo” voto do Presidente terá sempre e necessariamente o mesmo teor do primeiro. Isso não ocorre no caso de autêntico voto de desempate, quando o Presidente só vota uma vez e só se houver empate, situação que torna possível tanto o desempate dar-se em um sentido, como em outro, pelo menos em tese.

            Mas o fato é que todas essas inconveniências do voto de qualidade nunca haviam levado à decretação de sua inconstitucionalidade. Ou mesmo a tanto inconformismo como agora se verifica. Dizia-se situada a questão dentro da zona de liberdade ou de conformação do legislador infraconstitucional. A questão, porém, é que o mesmo pode ser dito agora: por igual motivo, não há qualquer inconstitucionalidade no fim do voto de qualidade.

            Nem toda norma que nos desagrada, ou que adota solução que não nos parece a mais acertada, é, só por isso, inconstitucional. Os argumentos invocados pelos críticos da Lei 13.988/2020, de que o Fisco não pode ir ao Judiciário, enquanto o contribuinte sim, e de que o ato administrativo presume-se válido, presunção que no empate deveria militar pela sua manutenção, e não pelo seu afastamento, são pontos que podem ser colocados em um debate legislativo sobre a conveniência da alteração. Não em um debate judicial sobre sua constitucionalidade.

            Não há, com efeito, no texto constitucional, uma imposição de que o empate em órgãos administrativos seja resolvido em prol da Fazenda Pública. Tampouco de que, no caso de dúvida (e o empate objetivamente indica essa dúvida, senão na mente de cada julgador, claramente no órgão formado pelo conjunto), os lançamentos devam ser mantidos, cabendo ao contribuinte, se quiser, levar a disputa ao Judiciário. Na dúvida sobre se um ato é ilegal, deve-se praticá-lo e quem achar ruim que “judicialize”? Isso não se nos afigura correto, sendo de resto o motivo pelo qual o Poder Judiciário está praticamente inviabilizado com uma quantidade absurda de processos, a maioria deles tendo a Fazenda Pública como parte. É preciso mudar essa cultura, em vez de apenas se defender genericamente o uso de “métodos alternativos” de solução de conflitos.

O fato é que a Constituição não obriga a que a dúvida objetiva, verificada no órgão cuja composição está dividida ao meio quanto à legalidade de uma cobrança, seja resolvida em favor da manutenção da exigência. Não há, pois, invalidade material alguma.

            Quanto a esse ponto, adicione-se que nem sempre conselheiros oriundos dos quadros do Fisco votam contra o Fisco, e vice-versa, não sendo raro conselheiros indicados por entidades representativas de classes de contribuintes votarem em favor da Fazenda. Todos estão sujeitos aos humores do chefe, e o que muda, entre conselheiros indicados pelo Fisco, e por contribuintes, além do background, que lhes confere horizontes hermenêuticos diferentes, enriquecendo as discussões tanto fáticas quanto jurídicas, é o regime jurídico que lhes é aplicável. Em suma, as garantias que eles têm para julgar conforme considerem correto, mesmo desagradando o Fisco.

Agora ficou claro o motivo de se ter acrescido uma pitada de História ao início deste texto. Conselheiros de ambas as origens, se decidirem contra o Fisco em questões relevantes, correm o risco de não serem reconduzidos. E, no caso dos oriundos dos quadros do Fisco, há sempre a possibilidade de, encerrado o período no CARF, passarem a exercer função talvez menos interessante, em uma fronteira distante ou em um aeroporto movimentado, abrindo malas de passageiros cansados, até como forma de castigo pela excessiva independência revelada durante sua passagem pelo órgão julgador.

Some-se a isso o fato de que os Conselheiros que são servidores fazendários efetivos recebem um adicional de produtividade que de algum modo é reflexo dos autos que mantêm, ao passo que os indicados por contribuintes devem dedicar-se exclusivamente ao ofício, sendo-lhes vedadas outras atividades, mas se adoecerem, ou se, Conselheiras, ficarem grávidas, e em virtude disso deixarem de comparecer às sessões, simplesmente deixam de receber, não havendo nenhuma segurança no âmbito trabalhista ou remuneratório.

Essa fragilização da posição de ambos, cada uma à sua maneira, faz com que posicionamentos em favor do contribuinte não sejam tomados de maneira confortável, a indicar que, em uma questão, se se verificar o empate, a probabilidade de que a exigência seja de fato indevida é incrivelmente maior do que o contrário. Ou seja: se o subordinado do chefe, mesmo com todos os riscos, ousa dizer que ele não tem razão, ou se o órgão chega pelo menos a um empate em torno disso, a possibilidade de isso ser verdade é enorme. Gigantesca. Tão grande ou talvez maior que a de uma decisão unânime do STJ envolvendo apenas interesses de dois particulares, sem o mais remoto impacto ou reflexo na vida ou nas carreiras dos Ministros.

Isso põe por terra o argumento relacionado à presunção de validade do ato administrativo, que, aliás, no caso do lançamento, ocorre apenas quando da inscrição em dívida ativa (CTN, art. 204), algo que somente ocorre depois do julgamento pelo CARF, convém lembrar.

Em suma, tudo o que se diz contra o fim do voto de qualidade poderia, quando muito, embasar discussão política em torno de uma reforma no processo administrativo tributário. Não a inconstitucionalidade material do art. 28 da Lei 13.988/2020.

Quanto aos alegados vícios formais, tampouco há inconstitucionalidade.

Como registra o já referido artigo de Mauler Santiago, o precedente invocado pelo STF cuidava de alteração jabuti em medida provisória relacionada ao Programa Minha Casa Minha Vida, na qual se inseriram disposições destinadas a extinguir a profissão do técnico em contabilidade. Além de os assuntos serem totalmente diversos, o grupo afetado, os técnicos em contabilidade, e seus representantes legislativos, não tiveram qualquer oportunidade de participar ou influir no processo, pois nem sabiam que aquela disposição estava a ser votada no meio de uma norma dedicada ao programa social referido.

Não foi o que se deu com a Lei 13.988/2020: primeiro porque a lei trata de transação, forma não apenas de extinção do crédito tributário, mas de terminação de litígios. Tal como as decisões do CARF, que também encerram litígios. Estimular o uso da transação e evitar de levar ao Judiciário questões de legalidade duvidosa, que passam a ser resolvidas em prol do contribuinte ainda na via administrativa, são medidas convergentes com um mesmo objetivo: reduzir a litigiosidade tributária e a carga de processos levados ao Judiciário.

Em outros termos, nada mais razoável, nesse âmbito, que tratar na lei oriunda da MP também da regra que dispõe a respeito dos efeitos do empate no processo de controle da legalidade do crédito, que também é uma forma de resolução de litígio e de extinção do crédito tributário. Como se isso não bastasse, diversamente do caso dos técnicos em contabilidade, no caso da MP 899/2019, a lei oriunda da sua conversão, onde supostamente se inseriu o jabuti, foi posteriormente examinada, e sancionada (poderia ter sido vetada!) pelo Presidente da República, Chefe do Executivo, do qual fazem parte o Ministério da Economia, e o CARF. Situação muito, muito diferente, a tornar inaplicável o precedente.

Por outro lado, se a Constituição tem algumas regras expressas “anti-jabuti”, como a constante do art. 150, § 6º, da CF/88, não faz sentido considerar que tais práticas estariam vedadas de maneira ampla e irrestrita. Não pudesse, nunca, uma lei tratar de um assunto e ver-se inserido em seu corpo disposição para tratar de outro, qual o sentido da proibição constante do já citado art. 150, § 6º, da CF/88? Afinal, não seriam só as regras concessivas de isenção, anistia ou remissão, mas quaisquer outras.

Em verdade, além de chamar a atenção para a necessidade de aprimoramentos no processo tributário, notadamente no administrativo, a extinção do voto de qualidade suscita uma discussão da maior importância: qual o efeito da dúvida, da hesitação, da incerteza, da indefinição, presente objetivamente em órgãos da Administração Tributária relativamente à própria procedência da cobrança que se pretende levar a efeito? Na dúvida, empurra para a frente e o contribuinte que se vire, levando ao Judiciário o problema? Ou, na dúvida, não se exige, pois a diminuição do patrimônio do sujeito passivo, como fruto de uma exação tributária, demanda uma certeza razoável a respeito da validade da exigência?

É preciso mudar essa cultura, de manter exigências de validade duvidosa e transferir sempre ao Judiciário a tarefa de as invalidar. Além de desigual, pois nem todos têm fôlego para prosseguir na discussão, e de assoberbar desnecessariamente juízes e tribunais, a medida é covarde: não se assumem responsabilidades, as quais são sempre dos juízes. “Para se preservar”, autoridades chegam mesmo a cometer os maiores absurdos, e até aconselham suas vítimas a procurar a tutela jurisdicional para resolvê-los. Nesse contexto, o in dubio pro contribuinte da Lei 13.988 é um pequeno mas importante passo rumo à correção dessa visão, que, embora equivocada, permeia toda a sociedade brasileira.

 é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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Lilian Maciel: “One man, one vote?”

Há décadas, observa-se uma incessante busca por parte das mulheres pelo reconhecimento de sua capacidade para assumir cargos e funções historicamente ocupados por homens. Não se pode negar a existência de muitos avanços e conquistas nesse sentido, seja na esfera pública, seja na privada.

Efetivamente, aquelas mulheres que se revelam destaque por suas excepcionais qualidades naquela área específica de saber são aprovadas em concursos públicos para cargos até então ocupados por homens. Da mesma forma, setores particulares, com a aguçada visão empresarial, buscam tais talentos para integrá-los a seu time.

Constituição Federal trouxe a igualdade como direito fundamental em seu art. 5º, inciso I. Por óbvio que, para não ser somente um mero escrito numa “folha de papel”, na clássica lição de Lassale, deve ser concretizado no plano material junto à sociedade e às instituições públicas e privadas.

Por isso que, a partir de concepções de um Estado voltado para prestações positivas, garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, foi que surgiram as festejadas ações afirmativas, como forma de minimizar as desigualdades entre os indivíduos.

Com relação às mulheres, pode-se citar a legislação eleitoral que estabelece o percentual de cargos eletivos que devem ser destinados a elas e que traz à tona a polêmica na adequação das políticas de cotas nas democracias, em que os cidadãos devem eleger, livremente, os seus representantes.

O senso comum também representa um excelente paradigma para se entender o quanto as pessoas reconhecem a capacidade, o valor, o denodo das mulheres ocupantes de cargos destacados no ambiente de trabalho e liderança.

Todavia, entre a vontade feminina, a lei, o senso comum e a realidade há um imenso vácuo quando se foca na efetiva participação da mulher em órgãos diretivos das instituições públicas, onde a composição numérica masculina é sobejamente superior à representatividade feminina. Nesta situação, se esvazia sobremaneira a chance de uma mulher, que se disponha a se candidatar, ocupar alguma função ou cargo nessas organizações públicas.

Cite-se como exemplo o Poder Judiciário nas eleições aos cargos diretivos e funções administrativas da instituição, que passa por um processo de escolha dentre os membros do órgão colegiado, composto por desembargadores. Traz-se de modo mais particular, a eleição recentemente ocorrida no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais composto por 140 desembargadores. Os votantes masculinos eram em número de 116 e as mulheres em 24. Havia 17 vagas dentre cargos diretivos e funções. O total geral de candidatos era de 35, sendo 31 homens e quatro mulheres.

Nesse contexto, vem a primeira indagação: alguma mulher foi eleita? Infelizmente não. Ainda que todas as mulheres votantes concentrassem seus votos em uma única candidata, nem assim ela teria chance de se eleger já que, relembrando, no tribunal mineiro o número de desembargadoras não atinge sequer o quantitativo de 30 membros.

O segundo questionamento que emerge é o seguinte: diante desse cenário, o que fazer? Será que as mulheres devem se recolher, se abster de colocar seus nomes na disputa a tais cargos majoritariamente ocupados pelo contingente masculino?

Acredita-se que não. Se assim o fizerem, estarão referendando o status quo, assumindo a atitude cômoda e omissa do não enfrentamento. Por certo que, se houver vontade política em realmente colocar as mulheres em uma disputa justa, o voto proporcional é a solução. Assim cada voto feminino deve ter um peso maior que o masculino. Não se pode institucionalizar, neste caso, a antiga regra “one man one vote” se, de fato, há uma busca pela efetiva participação da mulher nos órgãos colegiados e diretivos.

Cumpre destacar que, o que se pretende não são privilégios atrelados ao fato de ser mulher. Não se objetiva colocar a mulher na posição de pedir favores, benesses, concessões ou tantos outros substantivos que, na verdade, a diminuem como ser humano e a desqualificam profissionalmente.

O que se propõe está claramente postulado por John Rawls quando aprofunda a reflexão sobre a justiça distributiva. O filósofo traz o conceito de reciprocidade social, por meio da qual se expõe a ideia de igualitarismo democrático. Para ele, as instituições sociais devem ser estruturadas de modo que produzam um benefício maior aos menos favorecidos a longo prazo. Para isso, devem-se empregar arranjos institucionais alternativos.

Uma instituição política, para cumprir este papel, deve prover a liberdade a todos igualitariamente, a partir de promover justos termos de cooperação entre seus membros. Daí porque, a proposta é a de que se tragam soluções concretas, afirmativas, fundadas na equidade, para que se efetive a participação das mulheres e, em particular, no Poder Judiciário que, por ser a casa da justiça, deve ser o primeiro a tomar a frente.

Por que então, como primeira iniciativa, no âmbito dos Tribunais de Justiça, não se pensar na criação da seguinte ação afirmativa: “one man one vote, one woman more than one vote”? Fica a reflexão!

Lilian Maciel Santos é desembargadora do TJ-MG, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduada em processo civil pela Universidade Gama Filho e em gestão em Poder Judiciário pela UnB e professora de direito constitucional na Uni-BH.