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Gustavo Justino: 2020 pode ser o ‘novo 1968’?

Ainda é cedo para sustentar que 2020 poderá vir a ser o “novo 1968” da humanidade. Mas que temos eventos disruptivos e razões suficientes para acreditar que o mundo está em via de sofrer transformações profundas e reemergir com novíssimas configurações e gramáticas sócio-político-econômico-culturais, parece ser uma constatação bastante plausível e verossímil.

Arrisco dizer mais.

O “novo mundo” que se prenuncia não tem na pandemia da Covid-19 seu epicentro. Tudo leva a crer que a pandemia acelerou e desvelou um plexo de necessárias e justas atualizações que o processo civilizatório do mundo contemporâneo precisava urgentemente reconhecer e executar em escalas local, regional e globalizada.

Com raras exceções de países diversos que conseguiram manter seus níveis evolutivos de sociedades livres, justas e solidárias, a Covid-19 nada mais fez senão descortinar os altíssimos índices de pobreza, intolerância, desigualdade, autoritarismo, hipocrisia e iniquidades que lideranças políticas de países tão diferentes quanto Estados Unidos, Brasil, Inglaterra e Venezuela acabaram por estimular e impingir em suas populações, obviamente em proporções quantitativas e qualitativas tão distintas quanto são suas realidades nacionais subjacentes.

Embora o “maio de 1968” — iniciado por manifestações estudantis em Paris que contestavam de modo difuso a ordem e os modelos social, moral, econômica e político que vigoravam à época, que depois ampliou-se para o mundo — possa representar atualmente um embate mais geracional do que de fundo ideológico, não há dúvidas de que expressou também um clamor generalizado por mais liberdade de ser, pensar, viver e existir a partir de convenções outras que não aquelas impostas por visões de mundo anacrônicas e restritivas mantidas pelo status quo político, econômico e social então dominante.

E por que a aproximação de 2020 com 1968? Porque o modo como o poder político nacional e a ordem mundial vêm sendo mantidos e exercidos não mais dão conta da diversidade cultural, social e étnica que compõe a humanidade, e que exigem dos governos e líderes mundiais um nível de atenção, democracia, escuta, respeito e resolutividade que nem de longe conseguem atingir.

Exatamente por isso assistimos mundialmente ao acirramento de polarizações políticas e ideológicas perpetrados por tais líderes nacionalistas e autoritários, que coagem seus cidadãos e sociedades não por meio de armas — ainda não! —, mas por jogos de narrativas apoiadas em fake news e guerras culturais niilistas que desrespeitam e corroem instituições, liberdades públicas e controles considerados fundamentais à manutenção de um autêntico Estado de Direito, os quais representam em si conquistas democráticas e emancipatórias que sequer podemos cogitar que sejam possíveis de retroagir, retroceder ou desaparecer no atual contexto civilizatório em que vivemos.

É nesse sentido que a pandemia, embora represente em si uma infecção viral de escala global, pode ser encarada como um verdadeiro sintoma de uma ordem mundial que não mais se encontra alinhada ao que a humanidade espera de seus Estados, governos, organismos multilaterais (como OMS, OMC ou FMI) e, sobretudo, dos líderes políticos autoritários de esquerda ou de direita — significando esses matizes político-ideológicos o que possam ainda hoje significarem! — que nada mais fazem por meio de suas ações e omissões senão piorar os ânimos populacionais já enormemente exaltados, provocando caos político e social, quando em verdade deveriam aplacar e serenar possíveis tensões e convulsões sociais. E por que fazem isso? Porque ao que tudo indica agem originalmente mal-intencionados, desejando o caos para poderem impor sua vontade pessoal como sendo a vontade política, e não mais estarem limitados e condicionados por freios e contrapesos institucionais que encontram em uma dada ordem constitucional a sua legal e legítima justificativa a nortear o exercício do poder político. 

Os recentíssimos levantes sociais experimentados em inúmeras localidades dos Estados Unidos, contrários às demonstrações de racismo e de intolerância da polícia norte-americana que ocasionaram a morte do negro George Floyd em Minneapolis, bem como as manifestações contrárias às agressões contínuas que grupos bolsonaristas desferem contra as instituições democráticas brasileiras — que começam a surgir aqui e ali, a despeito de uma política de isolamento social fundada no enfrentamento da Covid-19 no país —, são emblemáticos de que grande parcela da população mundial é veementemente desfavorável a políticas racistas, discriminatórias e socialmente injustas.

Dificilmente será possível calar mundialmente essas vozes, já extremamente estressadas, não somente por extenso período de isolamento e perdas econômicas, sociais e emocionais agravadas pela pandemia da Covid-19, mas porque não estão sendo ouvidas pelos líderes mundiais cujas máscaras de estadistas preocupados com o bem comum despencaram de seus rostos.

E por isso podemos antever, sim, que 2020 pode vir a ser o “novo 19681” no mundo, com a diferença de que o lema original “seja realista, exija o impossível” pode ser substituído por “seja realista, exija o que é justo”. E “justo” no mundo de hoje é ser considerado, ouvido e respeitado como ser humano e cidadão, independentemente de cor, raça, estrato socioeconômico, gênero ou orientação sexual; nos seus direitos e sua liberdade, mas também nos seus deveres para com a coletividade; é poder participar ativamente da tomada das decisões fundamentais da vida do seu país, a partir de bases e diálogos democráticos que levem em conta os diferentes pontos de vista e opiniões dos mais diversos matizes; é ter o líder da nação ocupado e preocupado com o bem- estar da coletividade e do país, e não com um projeto pessoal autoritário e antidemocrático.

Por tudo isso, uma gramática política afastada desses fins, no mundo de hoje, é anacrônica e superada, e merece, sim, ser combatida e enfrentada com um “novo 1968”, a depender dos níveis de mobilização e engajamento da sociedade em nível global.  

 é professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo (USP), árbitro, consultor e advogado especializado em Direito Público.

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Só União pode obrigar elétrica a investir em proteção ambiental

É inconstitucional lei estadual que impõe a concessionária de geração de energia elétrica o investimento em proteção ambiental. Tal conduta configura intervenção indevida do estado em matéria que compete à União. 

Cabe à União impor a concessionária de geração de energia elétrica investimentos em proteção ambiental, firma Supremo
CREA-RO

O entendimento foi firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, em julgamento virtual finalizado nesta sexta-feira (8/5). O caso tem repercussão geral.

Prevaleceu a divergência do ministro Luiz Fux, que apontou que ao inserir exigência decorrente do contrato de exploração dos recursos naturais que não foi estabelecida inicialmente pelo ente competente, “o Estado membro incrementa o custo do contrato administrativo”. De acordo com o ministro, isso configura interferência na relação contratual previamente firmada.

Fux sugeriu a seguinte tese: “A norma estadual que impõe à concessionária de geração de energia elétrica a promoção de investimentos, com recursos identificados como parcela da receita que aufere, voltados à proteção e à preservação de mananciais hídricos é inconstitucional por configurar intervenção indevida do Estado no contrato de concessão da exploração do aproveitamento energético dos cursos de água, atividade de competência da União, conforme art. 21, XII, ‘b’, da Constituição Federal”.

O voto do ministro foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes.

O ministro Alexandre de Moraes abriu corrente divergente. Para ele, somente seria possível ao Estado legislar sobre proteção ambiental, concorrentemente com a União, “respeitadas as normas gerais estabelecidas pelo ente Federal, caso utilizasse como fonte de custeio para os investimentos valores referentes à receita do próprio Estado ou verbas federais repassadas pela União”.

No caso analisado, disse Moraes, a lei estadual apenas cria “ônus direto sobre o faturamento das empresas concessionárias a ser investido na proteção ao meio ambiente local”.

Histórico do caso

A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) ajuizou Ação Cautelar  para suspender efeito suspensivo a um Recurso Extraordinário, já admitido na instância de origem, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Ao julgar apelação contra sentença de primeiro grau, o TJ mineiro manteve decisão que obrigou a Cemig a investir, no mínimo, 0,5% de sua receita operacional na proteção e preservação ambiental de mananciais hídricos em diversas cidades. A previsão consta da Lei 12.503/97 de Minas Gerais.

Em 2014, o ministro Marco Aurélio deferiu liminar em Ação Cautelar para suspender decisão que obrigava tal investimento. Na inicial, a Cemig alegava que as leis estaduais que geram obrigações tributárias ou tributárias ambientais contra as concessionárias federais de energia são inconstitucionais, pois a competência para legislar sobre o assunto é da União.

Em plenário virtual, o ministro negou o recurso, por entender que há competência concorrente no caso. Ele sugeriu a tese: “Surge constitucional, considerada a competência concorrente, norma estadual em que prevista obrigação, por parte de concessionária de energia elétrica, de promover investimentos com recursos de parcela da receita operacional auferida, voltados à proteção e à preservação ambiental de bacia hidrográfica em que ocorrer a exploração.”

Seguiram o relator os ministros Luiz Edson Fachin, Celso de Mello e Rosa Weber.

Clique aqui para ler o voto do relator

RE 827.538