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Gustavo Justino: 2020 pode ser o ‘novo 1968’?

Ainda é cedo para sustentar que 2020 poderá vir a ser o “novo 1968” da humanidade. Mas que temos eventos disruptivos e razões suficientes para acreditar que o mundo está em via de sofrer transformações profundas e reemergir com novíssimas configurações e gramáticas sócio-político-econômico-culturais, parece ser uma constatação bastante plausível e verossímil.

Arrisco dizer mais.

O “novo mundo” que se prenuncia não tem na pandemia da Covid-19 seu epicentro. Tudo leva a crer que a pandemia acelerou e desvelou um plexo de necessárias e justas atualizações que o processo civilizatório do mundo contemporâneo precisava urgentemente reconhecer e executar em escalas local, regional e globalizada.

Com raras exceções de países diversos que conseguiram manter seus níveis evolutivos de sociedades livres, justas e solidárias, a Covid-19 nada mais fez senão descortinar os altíssimos índices de pobreza, intolerância, desigualdade, autoritarismo, hipocrisia e iniquidades que lideranças políticas de países tão diferentes quanto Estados Unidos, Brasil, Inglaterra e Venezuela acabaram por estimular e impingir em suas populações, obviamente em proporções quantitativas e qualitativas tão distintas quanto são suas realidades nacionais subjacentes.

Embora o “maio de 1968” — iniciado por manifestações estudantis em Paris que contestavam de modo difuso a ordem e os modelos social, moral, econômica e político que vigoravam à época, que depois ampliou-se para o mundo — possa representar atualmente um embate mais geracional do que de fundo ideológico, não há dúvidas de que expressou também um clamor generalizado por mais liberdade de ser, pensar, viver e existir a partir de convenções outras que não aquelas impostas por visões de mundo anacrônicas e restritivas mantidas pelo status quo político, econômico e social então dominante.

E por que a aproximação de 2020 com 1968? Porque o modo como o poder político nacional e a ordem mundial vêm sendo mantidos e exercidos não mais dão conta da diversidade cultural, social e étnica que compõe a humanidade, e que exigem dos governos e líderes mundiais um nível de atenção, democracia, escuta, respeito e resolutividade que nem de longe conseguem atingir.

Exatamente por isso assistimos mundialmente ao acirramento de polarizações políticas e ideológicas perpetrados por tais líderes nacionalistas e autoritários, que coagem seus cidadãos e sociedades não por meio de armas — ainda não! —, mas por jogos de narrativas apoiadas em fake news e guerras culturais niilistas que desrespeitam e corroem instituições, liberdades públicas e controles considerados fundamentais à manutenção de um autêntico Estado de Direito, os quais representam em si conquistas democráticas e emancipatórias que sequer podemos cogitar que sejam possíveis de retroagir, retroceder ou desaparecer no atual contexto civilizatório em que vivemos.

É nesse sentido que a pandemia, embora represente em si uma infecção viral de escala global, pode ser encarada como um verdadeiro sintoma de uma ordem mundial que não mais se encontra alinhada ao que a humanidade espera de seus Estados, governos, organismos multilaterais (como OMS, OMC ou FMI) e, sobretudo, dos líderes políticos autoritários de esquerda ou de direita — significando esses matizes político-ideológicos o que possam ainda hoje significarem! — que nada mais fazem por meio de suas ações e omissões senão piorar os ânimos populacionais já enormemente exaltados, provocando caos político e social, quando em verdade deveriam aplacar e serenar possíveis tensões e convulsões sociais. E por que fazem isso? Porque ao que tudo indica agem originalmente mal-intencionados, desejando o caos para poderem impor sua vontade pessoal como sendo a vontade política, e não mais estarem limitados e condicionados por freios e contrapesos institucionais que encontram em uma dada ordem constitucional a sua legal e legítima justificativa a nortear o exercício do poder político. 

Os recentíssimos levantes sociais experimentados em inúmeras localidades dos Estados Unidos, contrários às demonstrações de racismo e de intolerância da polícia norte-americana que ocasionaram a morte do negro George Floyd em Minneapolis, bem como as manifestações contrárias às agressões contínuas que grupos bolsonaristas desferem contra as instituições democráticas brasileiras — que começam a surgir aqui e ali, a despeito de uma política de isolamento social fundada no enfrentamento da Covid-19 no país —, são emblemáticos de que grande parcela da população mundial é veementemente desfavorável a políticas racistas, discriminatórias e socialmente injustas.

Dificilmente será possível calar mundialmente essas vozes, já extremamente estressadas, não somente por extenso período de isolamento e perdas econômicas, sociais e emocionais agravadas pela pandemia da Covid-19, mas porque não estão sendo ouvidas pelos líderes mundiais cujas máscaras de estadistas preocupados com o bem comum despencaram de seus rostos.

E por isso podemos antever, sim, que 2020 pode vir a ser o “novo 19681” no mundo, com a diferença de que o lema original “seja realista, exija o impossível” pode ser substituído por “seja realista, exija o que é justo”. E “justo” no mundo de hoje é ser considerado, ouvido e respeitado como ser humano e cidadão, independentemente de cor, raça, estrato socioeconômico, gênero ou orientação sexual; nos seus direitos e sua liberdade, mas também nos seus deveres para com a coletividade; é poder participar ativamente da tomada das decisões fundamentais da vida do seu país, a partir de bases e diálogos democráticos que levem em conta os diferentes pontos de vista e opiniões dos mais diversos matizes; é ter o líder da nação ocupado e preocupado com o bem- estar da coletividade e do país, e não com um projeto pessoal autoritário e antidemocrático.

Por tudo isso, uma gramática política afastada desses fins, no mundo de hoje, é anacrônica e superada, e merece, sim, ser combatida e enfrentada com um “novo 1968”, a depender dos níveis de mobilização e engajamento da sociedade em nível global.  

 é professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo (USP), árbitro, consultor e advogado especializado em Direito Público.

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Guerra política desvenda primazia do patrimonialismo na pandemia

A falência da política como via de diálogo plural se revela na realidade brasileira, a partir do uso recorrente da analogia com a guerra em relação, sobretudo, à federação[1] e à separação de poderes[2].

A escalada recente da narrativa belicosa evidencia a fragilidade dos canais democráticos de pactuação, mesmo diante de um cenário dramático de aceleração de mortes e contaminações causadas pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

Não bastasse a pandemia, temos de sobreviver ao risco de uma guerra política que promove diuturna e paulatinamente a erosão do nosso pacto constitucional civilizatório e da qualidade da nossa democracia. Aliás, a própria comparação com o cenário da guerra no enfrentamento da pandemia parece estimular a pretensão de concentração de poder decisório, como bem alertado por João Paulo Charleaux[3]:

o discurso de guerra vem sendo usado por governantes em várias partes do mundo, seja para criar coesão dos cidadãos diante das privações, seja para justificar a aprovação de medidas que ampliam o poder do Executivo em situações de crise, como é o caso da pandemia em curso.

Em tempos de paz, cumprimos o ordenamento vigente e resguardamos que as tensões políticas sejam resolvidas pelos canais democráticos, sem aviltar qualquer dos pilares da Constituição de 1988. Em tempos de guerra semântica, contudo, a narrativa do inimigo a ser extirpado se instala temerariamente contra o sistema de freios e contrapesos, bem como contra os que, na federação, ousam divergir da solução imposta unilateralmente pelo ente central.

Estamos há quase três meses, no Brasil, paralisados pela disputa sobre a amplitude do isolamento social (horizontal ou vertical) que os diferentes níveis de governo indicam como medida de prevenção e controle das contaminações da Covid-19, sobretudo por causa dos impactos econômicos das medidas de contenção sanitária.

O isolamento horizontal é recomendado pela Organização Mundial de Saúde e tem sido adotado pela maioria[4] dos governadores e prefeitos, o que pressupõe paralisação das atividades econômicas que não sejam formalmente reconhecidas como essenciais.

Por outro lado, o governo federal defende o distanciamento apenas dos cidadãos supostamente identificados como grupos de risco (também chamado isolamento vertical), para fins de manutenção plena da atividade produtiva. Para lastrear tal proposta, tem sido enfaticamente defendida, em larga escala, a prescrição experimental de medicamentos (off label), cuja evidência científica não está comprovada.

A aparente dicotomia entre economia e saúde foi alçada à condição de contencioso federativo e deu causa a uma severa instabilidade gerencial no Ministério da Saúde, com a troca de dois titulares da pasta em menos de 30 dias.

Quando consultado[5] sobre a segunda mudança no Ministério da Saúde em menos de um mês, Michael Ryan, diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial de Saúde, deu-nos um duro alerta:

“Vimos um aumento no número de casos no Brasil e no restante da América do Sul e Central. Independente do sistema de saúde, é preciso haver coerência e coesão em todo o governo em relação à sociedade. As comunidades precisam ouvir mensagens coerentes de todas as autoridades”

Faltam-nos coerência e coesão em múltiplas frentes de atuação, exatamente porque somos lançados a uma aparente guerra de uns contra os outros. Mas a quem aproveita, em pleno ano eleitoral, negar cumprimento ao planejamento técnico-científico e esvaziar o controle de inúmeros balcões opacos de negócios e conflitos de interesses que a crise encerra?

Em meio ao caos político-administrativo, compras emergenciais vultuosas são feitas com fornecedores sem expertise nos respectivos objetos contratuais () e revisões/reajustes e benefícios salariais são concedidos aos servidores públicos, sem qualquer lastro no art. 17 da LRF (). Paradoxalmente, enquanto são concedidos auxílios-saúde a agentes públicos, a execução orçamentária do Ministério da Saúde segue profundamente lenta e insuficiente (como José Roberto Afonso e eu escrevemos aqui)

Enquanto milhares se mortes se avolumam, foi editada a Medida Provisória 966, no dia 14 de maio de 2020, em rota de fuga às hipóteses de responsabilização cabíveis, sobretudo com a inconstitucional redução de escopo dos §§ 4º e 6º do art. 37 da CF.

Aliás, é oportuno lembrar que o conceito do que seja “erro grosseiro” tem sido testado na realidade brasileira, haja vista o acúmulo de afrontas às recomendações da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde, bem como o desapreço às evidências científicas internacionais. Nesse sentido, a entrevista concedida à Folha de S.Paulo, pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alerta para a falta de lastro técnico-sanitário na pretensão de o Executivo federal retomar a atividade econômica, com o relaxamento do isolamento social e o uso da cloroquina:

O sr. foi demitido no meio da pandemia. Seu sucessor não durou um mês no cargo. Qual deve ser o impacto da queda de mais um ministro? Este último mês foi perdido, sem nenhuma ação positiva por parte do ministério. […] o que assistimos foi a demissão de todo o segundo e o terceiro escalão do ministério, sem colocar ninguém no lugar. Isso é o pior dos mundos. O Ministério da Saúde está hoje uma nau sem rumo. Foram 30 dias de um ministério ausente.

[…]

Divergências com o presidente levaram à sua saída. O que mais o incomodou? […] Uma discussão feita no sistema de saúde havia quase 60 dias. Quando começam essas medidas [de isolamento social horizontal] e o presidente começa a fazer uma leitura diametralmente contrária ao discutido no SUS, ficou difícil.

É difícil coordenar um sistema como ministro se o presidente dá outra mensagem.

[…]

O que leva à campanha pela cloroquina?  A ideia de dar a cloroquina, na cabeça da classe política do mundo, é que, se tiver um remédio, as pessoas voltam ao trabalho. É uma coisa para tranquilizar, para fazer voltar sem tanto peso na consciência. Se tivesse lógica de assistência, isso teria partido das sociedades de especialidades [não do presidente]. Por isso não tem gente séria que defenda um medicamento agora como panaceia.

O Donald Trump defendeu a cloroquina, mas voltou atrás e parou. Nos EUA, isso gera processo contra o Estado. Aqui no Brasil não, se morrer, morreu.

Para mim foi isso que fez com que o Teich falasse: ‘Não vou assinar isso. Vai morrer gente e ficar na minha nota’.”

Para conter o caos político, o STF reafirmou a plena capacidade decisória dos entes subnacionais nos autos da ADI 6.341 e da ADPF 672, de modo a fortalecer, em plena pandemia, a ampla descentralização federativa que é elemento constitutivo do nosso SUS.

A execução da política pública de saúde, no Brasil, não admite centralização unitária de comando, já que sua coordenação nacional tem de ser pactuada mediante diálogo respeitoso no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, a que se refere o art. 14-A da Lei 8080/1990.

Todavia, entre a teoria e a prática, um longo percurso de novas tensões superpostas se revela como verdadeiro campo de batalhas diárias. Em tese, é vedado à União constranger ou tentar impor aos governadores e aos prefeitos sua agenda unilateral de relaxamento do isolamento horizontal, sob pena de afronta ao art. 23, II e ao art. 30, II da CF/88.

Mas, infelizmente, o governo federal tem — direta ou indiretamente – promovido diversas extorsões fiscais para tentar sequestrar a capacidade de freios e contrapesos que a federação tem exercido na gestão da crise sanitária (como se pode ler aqui )

A Frente Nacional de Prefeitos denunciou essa “distopia federativa”, por meio de Nota Técnica publicada no dia 14 de maio (disponível aqui), da qual extraímos os seguintes excertos:

“Diante da flagrante falta de planejamento [federal] até o momento, os governantes dos entes subnacionais, além de suportarem, isolados, essa dramática situação, têm, ainda, insistido em buscar alternativas junto ao Governo Federal. […] No entanto, o Ministério da Saúde transferiu via Fundo Nacional de Saúde, somente cerca de R$ 7 bilhões em favor de municípios, estados e Distrito Federal. Mas, apenas R$ 2,3 bilhões de recursos são efetivamente novos para o SUS, o restante equivale ao remanejamento de dotações do Ministério da Saúde. Distribuiu somente 537 respiradores para os estados.

[…] À União caberia o planejamento para o enfrentamento da doença, o fornecimento dos insumos necessários aos Estados e Municípios para o cuidado da população, especialmente na hipótese de necessidade de importação de insumos. No entanto, a pandemia no Brasil, diferentemente de outros países, enfrenta crises políticas sucessivas e sinalizações contraditórias do governo nacional, ora apontando para o necessário isolamento social, ora incentivando a população a desrespeitar as medidas sanitárias adotadas pelos entes subnacionais. Tais atitudes têm contribuído para uma verdadeira distopia federativa. Prefeitas e prefeitos ressentem ainda de um documento norteador para a tomada de decisões com a pactuação federativa por uma estratégia de gestão de riscos, que leve em consideração a experiência de países que já passaram pelo pico da pandemia.” (grifos nossos)

Em igual medida, os Secretários de Fazenda publicaram carta no dia 15 em busca da imediata sanção do Projeto de Lei Complementar 39/2020, que trata do “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)”) e, por conseguinte, dispõe sobre repasse de recursos federais para sustentação fiscal dos serviços públicos essenciais prestados pelos municípios e estados.

O § 7º do art. 5º do PLP 39/2020 — que condiciona os repasses à inexistência ou à renúncia de demandas judiciais contra a União intentadas após 20 de março deste ano () — afronta o art. 5º, XXXV e o art. 160 da CF.

O governo federal também tem ameaçado os entes subnacionais com o veto à sua própria Medida Provisória nº 938/2020 porque, supostamente, os recursos prometidos no PLP 39/2020 seriam suficientes (?) para o enfrentamento nacional da pandemia. Ora, ainda que sejam somados os valores de ambas as proposições legislativas, as transferências federais aos estados, ao DF e aos municípios estão muito aquém do necessário para assegurar a continuidade dos serviços essenciais.

Por sinal, um consistente risco de descontinuidade pode ser antevisto na falta de renovação do Fundeb até os presentes dias, o que coloca em xeque as atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino, sobretudo em face da derrocada dramática da arrecadação dos impostos dos entes subnacionais que compõem as vinculações do setor (como bem alertado aqui).

Nosso rol de exemplos da extorsão fiscal feita pelo Governo Federal, mediante o sequestro da federação, não poderia chegar ao fim na coluna de hoje, sem mencionarmos a abusiva proposta de acordo de quitação, formulada pela AGU, com deságio de até 40% da dívida que a União tem com alguns Estados no âmbito do extinto Fundef.

Tal acordo de quitação cinicamente “antecipada” (de um debate que se arrasta há décadas no judiciário) pressupõe o indecoroso e inconstitucional desvio de 90% dos recursos vinculados à educação, conforme se depreende da tabela abaixo publicada pelo jornal Valor Econômico aqui.

Tudo o que expusemos acima atesta o quanto a realidade supera quaisquer figuras de linguagem, inclusive a do “orçamento de guerra”[6] que deu causa à edição da Emenda 106/2020. A precária pactuação federativa e a tensionada relação entre os poderes deste 2020 são evidências de uma guerra política real que coloca o patrimonialismo de curto prazo eleitoral à frente das medidas sanitárias, sociais e econômicas de gestão da pandemia.

Paradoxalmente no momento em que mais precisamos de coordenação de esforços nacionalmente, respostas fragmentadas e descontinuidades administrativas se acumulam, atrasando respostas urgentes e abrindo espaço para toda sorte de capturas.

Denunciarmos essa guerra política é uma primeira forma de a enfrentarmos e, paulatinamente, tentarmos vencê-la. Conter esse patrimonialismo é essencial para que possamos nos dedicar ao que, de fato, importa: preservar vidas com dignidade!

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.


LA SPINA, Antonio. MAJONE, GIANDOMENICO. “Lo Stato Regolatore” Bologna: IlMulino, 2000. p. 24 e ss.

Para aprofundamento, conferir: REZENDE, Flávio da Cunha. Razões da crise de implementação do estadogerencial: desempenho versus ajuste fiscal. In: Revista de Sociologia e Política n. 19: 111-121. Curitiba: Ufpr, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/viewFile/3622/2879 Acesso: 07maio2020.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).