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Processo administrativo tributário em perspectiva

A Justiça Tributária, no ambiente econômico nacional, pressupõe, de um lado, a elaboração de sistema intrinsecamente justo, que onere cada sujeito compativelmente à sua respectiva capacidade contributiva; e, de outro, a simplificação dos procedimentos e obrigações acessórias, a serem cumpridos pelos contribuintes. A redução da litigiosidade tributária junto ao Poder Judiciário, que se vê às voltas com milhões de ações tributárias e execuções fiscais, relaciona-se com ambas as perspectivas; e impõe o desenvolvimento e utilização de meios não judiciários, também conhecidos como alternativos, de resolução das questões tributárias. Esse caminho foi trilhado pela Lei 13.988/2020, que fixou requisitos e condições para a realização de transações no âmbito da cobrança de créditos tributários e não tributários da União e suas autarquias e fundações.

Inobstante, a relevância dessa possibilidade, o contencioso administrativo continua a ser o principal método não judiciário de resolução de conflitos tributários no Brasil. Impugnações e recursos apresentados pelos contribuintes e julgados por colegiados no âmbito da administração dos entes tributantes, dentre os quais se destaca o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável pelos julgamentos administrativos na esfera federal.

Várias são as vantagens dos tribunais administrativos: (i) composição formada por julgadores com elevada capacidade técnica na área tributária, garantindo profundidade na análise dos casos; (ii) baixo custo para o contribuinte, tendo em vista a inexistência de exigência de depósitos ou garantias para a realização da defesa; (iii) automática suspensão da exigibilidade dos tributos, por força do art. 151, III, do CTN[1];  (iv) procedimento mais simples e célere que o processo judicial; e (v) o contribuinte ainda possui a via judicial, sem prejuízo de outros meios alternativos, caso a impugnação seja julgada improcedente.

O contencioso administrativo vem sofrendo modificações relevantes, com o intuito de aperfeiçoá-lo, dentre as quais: (i) a implementação de uma nova sistemática de resolver os empates, por meio do art. 19-E, recém inserido na Lei 10.522/2020; e (ii) a nova sistemática de julgamentos virtuais.

Os julgamentos no Carf são regidos pelas regras estabelecidas no Decreto 70.235/1972, ato normativo com natureza jurídica de lei ordinária. Seus colegiados são compostos paritariamente. Dos oito julgadores, metade representa os contribuintes; e metade a Fazenda Nacional. Até o advento da Lei 10.522/2020, a presidência cabia a representante da Fazenda, que em caso de empate resolveria o litígio com voto de qualidade, nos termos do art. 25, § 9º, do citado decreto: “Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o  voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.” (não há grifo no original)

O novel artigo 19-E da Lei 10.522/2020, mudou tal sistemática, ao estabelecer, verbis:

Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (não há grifo no original)

Conforme a regra revogada, o presidente da turma possuía competência para, consoante sua convicção, decidir sobre empates, quer favorável, quer desfavoravelmente ao contribuinte [2]. Após a alteração legislativa, passou a viger a regra que, em caso de empate, deve prevalecer o entendimento pró-contribuinte.

A mudança legislativa suscitou controvérsias, tendo sido, inclusive, contestada sua constitucionalidade formal e material. Em razão de as ADI 6.399 (PGR), ADI 6.403 (PSD) e ADI 6.415 (Anfip) terem seguido o rito sumário (art. 12 da Lei 9.868/1999)[3], sem medida liminar suspensiva de seus efeitos, seu dispositivo foi aplicado pelo Carf, em julgamentos recentes.

Prévia às questões tratadas nas ADIs, discute-se a pertinência ou não da medida. Será que ao invés de se modificar sistemática nonagenária do procedimento administrativo federal — que adota o voto de qualidade — , poder-se-ia incrementar a imparcialidade do órgão por outras medidas pontuais, menos radicais?[4]

As ADIs trazem questionamentos de ordem formal a ser analisadas pelo Supremo Tribunal Federal: (i)  a incongruência entre a versão original da Emenda 09, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL/CE), e a versão aglutinada, ao final, no PLV 02/2020 (decorrente da conversão da MP 899/2019), aprovada pelo Congresso Nacional, com substancial alteração em seu conteúdo (que inicialmente se referia somente à exclusão das multas); e (ii) a acusação de ocorrência de contrabando legislativo, devido à suposta falta de pertinência temática desse dispositivo com o conteúdo original da MP 899/2019, que versara sobre a regulação do artigo 171 do CTN, que prevê a transação tributária.

Questionam-se, ademais, aspectos materiais, oriundos da contrariedade em relação à presunção de legitimidade dos atos administrativos (que opera em sentido contrário à presunção de inocência dos réus e acusados), ao se exigir julgamento majoritário para a manutenção da exação, em sentido contrário ao que o Poder Judiciário aplica no caso de empates no julgamento de mandados de segurança.

Há debates também sobre a dinâmica de utilização da nova regra: (i) sobre o alcance, ou seja, a que tipo de casos e de processos administrativos a nova regra se aplica?; e (ii) retroatividade ou não do art. 19-E, aos casos já julgados administrativamente.

Relativamente ao primeiro ponto, há diversas opiniões: a) o dispositivo deve ter uma interpretação literal ou restritiva, aplicando-se apenas “ao processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”; b) o artigo deve ser interpretado ampliativamente ou por analogia, por razões de coerência procedimental e de igualdade, para abranger todos os processos julgados no Carf; e c) o dispositivo teria um alcance mediato mais abrangente, pela apropriação do rito do Decreto 70.235/1972 por meio de regras de remissão, dilatando também o alcance do novo regime[5].

No tocante à retroatividade do art. 19-E, discute-se se a regra possui natureza de direito material ou processual; debatendo-se sequentemente a possibilidade ou não de sua retroação, assim como se a retroatividade abrangeria apenas as multas ou também os tributos.

Encerrando o bosquejo sobre a nova sistemática de resolver os empates, relembre-se que um dos pilares da definitividade dos julgamentos administrativos prendia-se ao fato de, historicamente, o voto de qualidade ser competência do conselheiro representante da Fazenda Nacional. Face à mudança havida, à luz dessa nova regra, seria possível a Procuradoria da Fazenda Nacional levar os casos julgados favoravelmente aos contribuintes para apreciação do Judiciário?

Tema de particular relevância, nestes tempos de pandemia, diz respeito à implementação de sessões virtuais de julgamento, nos tribunais administrativos, que se tem dado de forma díspar entre os diversos entes tributantes.

Há de haver certa uniformidade procedimental, para evitar prejuízos à defesa dos contribuintes, resguardando o direito de as partes realizarem sustentações orais e de influir por meio destas, efetivamente, no julgamento. Além disso, deve-se franquear ao advogado a oposição ao julgamento virtual, quando este entenda que o procedimento adotado implica em risco ao contraditório. Em nenhuma hipótese o julgamento virtual pode ser pretexto para julgamentos açodados ou com prejuízo aos debates técnicos; precisando ser ao contrário instrumento de acesso à justiça pela viabilização de meios tecnológicos hábeis a replicar a dinâmica dos julgamentos presenciais.

Como foi visto acima, há muito o que se deslindar. Assim, devem ser encorajadas pesquisas e debates sobre o fim do voto de qualidade no Carf, o alcance e retroatividade da nova regra de desempate e a implantação e a prática dos julgamentos virtuais. Dessa forma, estar-se-á contribuindo à evolução e ao aperfeiçoamento do contencioso tributário, relevante instrumento de redução dos conflitos nessa área.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

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Rodrigo Marques: As transformações da Justiça do Trabalho

O ineditismo do momento atual decorrente da pandemia da Covid-19 impôs a todos os setores empresariais e sociais uma grande transformação, a qual não há precedentes na história recente do país. Estamos sendo “obrigados” a reaprender a viver, e isso inclui transformações nas vidas privadas e também no âmbito profissional de cada cidadão.

A Justiça do Trabalho tem como uma das suas principais bases fundamentais ser caracterizada como uma Justiça social, portanto, intrinsecamente ligada a todas as transformações sociais ocorridas ao longo de nossa história.

A pandemia já poderá ser considerada como um grande marco de transformação na Justiça do Trabalho, sendo certo que a últimas grandes mudanças ocorreram no início dos anos 2010, com a implementação do PJe, e em novembro de 2017, com a entrada em vigor da Reforma Trabalhista.

Com toda a mudança de hábitos imposta pela Covid-19, principalmente decorrente do isolamento social, a Justiça especializada do Trabalho se viu mais uma vez tendo que se adaptar ao momento histórico vivido.

Intimações por e-mail, telefone e mensagens de texto ou audiências virtuais são exemplos de fatores que há apenas alguns meses não imaginaríamos que seriam realizados da forma e no montante de suas aplicabilidades atuais.

A concessão de prazos para a apresentação de defesas e para manifestação das partes sobre a necessidade de realização de audiência inicial, além da especificação das possíveis provas a serem produzidas nos autos, são fatores que poderão trazer, respeitando todos os limites legais, maior celeridade processual, bem como auxiliar o “desafogamento” da Justiça do Trabalho.

É de conhecimento de quaisquer operadores do Direito que existem comarcas que possuem audiências designadas para datas distantes, muitas vezes com mais de um ano do ajuizamento da ação, o que, de fato, atrasa o tempo razoável de duração do processo.

Logo, a exclusão de processos dos quais são realizadas audiências por mera formalidade das pautas das diversas varas do Trabalho e, ainda, a realização de audiências iniciais e de conciliação virtualmente, poderão trazer diversos benefícios às partes e ao Judiciário Trabalhista.

As audiências nas quais são realizadas produção de prova oral, tais como depoimento pessoal e/ou testemunhal, serão os grandes desafios para que ocorra de forma telepresencial, de fato, essa não é recomendada, notadamente porque as audiências trabalhistas são atos extremamente complexos, assim, não há como assegurar com 100% de certeza que uma testemunha, por exemplo, não estará assistindo ao depoimento da outra, ou até mesmo lendo e sendo orientada durante sua oitiva, afrontando os artigos 824 da CLT e 385, §2º, do CPC.

Os patronos poderão “perder” o momento de uma contradita em virtude de instabilidade na rede, a conexão de internet de uma das partes ou até mesmo a da testemunha pode cair durante a produção da prova testemunhal e não ser restabelecida, o que poderá causar prejuízos irreversíveis ao processo, vez que poderão ser arguidas nulidades nos autos em decorrência dos pontos citados.

Portanto, com o término da pandemia, o ideal é que todas as assentadas que necessitem de produção de prova oral ocorram de forma presencial, pelos motivos citados.

Sustentações orais em sessões telepresenciais nos Tribunais Regionais do Trabalho certamente são mais uma mudança que traz benefícios para as partes, o patrono não precisará mais percorrer longas distâncias para defender sua tese recursal ou a não reforma de uma decisão que foi extremamente favorável ao seu cliente.

Importante destacar que o devido processo legal, os princípios do contraditório e da ampla defesa deverão ser sempre observados para que se evitem futuras arguições de nulidades.

A certeza é que nós, operadores do Direito do Trabalho, estamos presenciando uma das maiores transformações ocorridas na história desta Justiça especializada, que, respeitando a legislação trabalhista e a Constituição Federal vigente, certamente ratificará benefícios irreversíveis em nossas vidas e dos jurisdicionados.

 é advogado do escritório Nelson Wilians e Advogados Associados, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Candido Mendes e em Direito Processual e Gestão Jurídica pelo IBMEC-RJ.