Categorias
Notícias

Processo administrativo tributário em perspectiva

A Justiça Tributária, no ambiente econômico nacional, pressupõe, de um lado, a elaboração de sistema intrinsecamente justo, que onere cada sujeito compativelmente à sua respectiva capacidade contributiva; e, de outro, a simplificação dos procedimentos e obrigações acessórias, a serem cumpridos pelos contribuintes. A redução da litigiosidade tributária junto ao Poder Judiciário, que se vê às voltas com milhões de ações tributárias e execuções fiscais, relaciona-se com ambas as perspectivas; e impõe o desenvolvimento e utilização de meios não judiciários, também conhecidos como alternativos, de resolução das questões tributárias. Esse caminho foi trilhado pela Lei 13.988/2020, que fixou requisitos e condições para a realização de transações no âmbito da cobrança de créditos tributários e não tributários da União e suas autarquias e fundações.

Inobstante, a relevância dessa possibilidade, o contencioso administrativo continua a ser o principal método não judiciário de resolução de conflitos tributários no Brasil. Impugnações e recursos apresentados pelos contribuintes e julgados por colegiados no âmbito da administração dos entes tributantes, dentre os quais se destaca o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), responsável pelos julgamentos administrativos na esfera federal.

Várias são as vantagens dos tribunais administrativos: (i) composição formada por julgadores com elevada capacidade técnica na área tributária, garantindo profundidade na análise dos casos; (ii) baixo custo para o contribuinte, tendo em vista a inexistência de exigência de depósitos ou garantias para a realização da defesa; (iii) automática suspensão da exigibilidade dos tributos, por força do art. 151, III, do CTN[1];  (iv) procedimento mais simples e célere que o processo judicial; e (v) o contribuinte ainda possui a via judicial, sem prejuízo de outros meios alternativos, caso a impugnação seja julgada improcedente.

O contencioso administrativo vem sofrendo modificações relevantes, com o intuito de aperfeiçoá-lo, dentre as quais: (i) a implementação de uma nova sistemática de resolver os empates, por meio do art. 19-E, recém inserido na Lei 10.522/2020; e (ii) a nova sistemática de julgamentos virtuais.

Os julgamentos no Carf são regidos pelas regras estabelecidas no Decreto 70.235/1972, ato normativo com natureza jurídica de lei ordinária. Seus colegiados são compostos paritariamente. Dos oito julgadores, metade representa os contribuintes; e metade a Fazenda Nacional. Até o advento da Lei 10.522/2020, a presidência cabia a representante da Fazenda, que em caso de empate resolveria o litígio com voto de qualidade, nos termos do art. 25, § 9º, do citado decreto: “Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o  voto de qualidade, e os cargos de Vice-Presidente, por representantes dos contribuintes.” (não há grifo no original)

O novel artigo 19-E da Lei 10.522/2020, mudou tal sistemática, ao estabelecer, verbis:

Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (não há grifo no original)

Conforme a regra revogada, o presidente da turma possuía competência para, consoante sua convicção, decidir sobre empates, quer favorável, quer desfavoravelmente ao contribuinte [2]. Após a alteração legislativa, passou a viger a regra que, em caso de empate, deve prevalecer o entendimento pró-contribuinte.

A mudança legislativa suscitou controvérsias, tendo sido, inclusive, contestada sua constitucionalidade formal e material. Em razão de as ADI 6.399 (PGR), ADI 6.403 (PSD) e ADI 6.415 (Anfip) terem seguido o rito sumário (art. 12 da Lei 9.868/1999)[3], sem medida liminar suspensiva de seus efeitos, seu dispositivo foi aplicado pelo Carf, em julgamentos recentes.

Prévia às questões tratadas nas ADIs, discute-se a pertinência ou não da medida. Será que ao invés de se modificar sistemática nonagenária do procedimento administrativo federal — que adota o voto de qualidade — , poder-se-ia incrementar a imparcialidade do órgão por outras medidas pontuais, menos radicais?[4]

As ADIs trazem questionamentos de ordem formal a ser analisadas pelo Supremo Tribunal Federal: (i)  a incongruência entre a versão original da Emenda 09, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL/CE), e a versão aglutinada, ao final, no PLV 02/2020 (decorrente da conversão da MP 899/2019), aprovada pelo Congresso Nacional, com substancial alteração em seu conteúdo (que inicialmente se referia somente à exclusão das multas); e (ii) a acusação de ocorrência de contrabando legislativo, devido à suposta falta de pertinência temática desse dispositivo com o conteúdo original da MP 899/2019, que versara sobre a regulação do artigo 171 do CTN, que prevê a transação tributária.

Questionam-se, ademais, aspectos materiais, oriundos da contrariedade em relação à presunção de legitimidade dos atos administrativos (que opera em sentido contrário à presunção de inocência dos réus e acusados), ao se exigir julgamento majoritário para a manutenção da exação, em sentido contrário ao que o Poder Judiciário aplica no caso de empates no julgamento de mandados de segurança.

Há debates também sobre a dinâmica de utilização da nova regra: (i) sobre o alcance, ou seja, a que tipo de casos e de processos administrativos a nova regra se aplica?; e (ii) retroatividade ou não do art. 19-E, aos casos já julgados administrativamente.

Relativamente ao primeiro ponto, há diversas opiniões: a) o dispositivo deve ter uma interpretação literal ou restritiva, aplicando-se apenas “ao processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”; b) o artigo deve ser interpretado ampliativamente ou por analogia, por razões de coerência procedimental e de igualdade, para abranger todos os processos julgados no Carf; e c) o dispositivo teria um alcance mediato mais abrangente, pela apropriação do rito do Decreto 70.235/1972 por meio de regras de remissão, dilatando também o alcance do novo regime[5].

No tocante à retroatividade do art. 19-E, discute-se se a regra possui natureza de direito material ou processual; debatendo-se sequentemente a possibilidade ou não de sua retroação, assim como se a retroatividade abrangeria apenas as multas ou também os tributos.

Encerrando o bosquejo sobre a nova sistemática de resolver os empates, relembre-se que um dos pilares da definitividade dos julgamentos administrativos prendia-se ao fato de, historicamente, o voto de qualidade ser competência do conselheiro representante da Fazenda Nacional. Face à mudança havida, à luz dessa nova regra, seria possível a Procuradoria da Fazenda Nacional levar os casos julgados favoravelmente aos contribuintes para apreciação do Judiciário?

Tema de particular relevância, nestes tempos de pandemia, diz respeito à implementação de sessões virtuais de julgamento, nos tribunais administrativos, que se tem dado de forma díspar entre os diversos entes tributantes.

Há de haver certa uniformidade procedimental, para evitar prejuízos à defesa dos contribuintes, resguardando o direito de as partes realizarem sustentações orais e de influir por meio destas, efetivamente, no julgamento. Além disso, deve-se franquear ao advogado a oposição ao julgamento virtual, quando este entenda que o procedimento adotado implica em risco ao contraditório. Em nenhuma hipótese o julgamento virtual pode ser pretexto para julgamentos açodados ou com prejuízo aos debates técnicos; precisando ser ao contrário instrumento de acesso à justiça pela viabilização de meios tecnológicos hábeis a replicar a dinâmica dos julgamentos presenciais.

Como foi visto acima, há muito o que se deslindar. Assim, devem ser encorajadas pesquisas e debates sobre o fim do voto de qualidade no Carf, o alcance e retroatividade da nova regra de desempate e a implantação e a prática dos julgamentos virtuais. Dessa forma, estar-se-á contribuindo à evolução e ao aperfeiçoamento do contencioso tributário, relevante instrumento de redução dos conflitos nessa área.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Categorias
Notícias

Paulo Queiroz: Manifesto contra o presidencialismo

O presidencialismo é uma loteria, uma aposta arriscada, com grande probabilidade de não dar certo, como nos mostra a história recente.

Com efeito, além de produzirmos em geral políticos medíocres, trata-se de uma aposta num único sujeito: o presidente. E grande é a chance de decepção. Quando eleito um presidente corrupto ou incompetente, a sociedade sangra por quatro anos, quando uma nova aposta tão arriscada quanto a anterior é feita. Ou tem início o desgastante processo de impedimento. O fracasso histórico dos presidentes é o fracasso do presidencialismo.

Além disso, é uma forma de governo que estimula o culto da personalidade e do populismo e a concentração de poder. Como escreve Ferrajoli, o método majoritário e o sistema presidencial favorecem inevitavelmente a autolegitimação da parte vencedora como expressão da soberania popular e seus infalíveis corolários populistas: a deslegitimação dos partidos, a ideia de que o consenso popular legitime qualquer abuso, a personificação do líder [1].

Também por isso, o presidencialismo é uma ameaça permanente à democracia, já que o presidente é o comandante supremo das Forças Armadas e há sempre a tentação de apelar-se à força quando lhe falta a capacidade de diálogo e o poder de impor uma determinada agenda política. De certo modo, o presidencialismo é um tipo de concessão que a democracia faz à tirania.

Também o parlamentarismo é uma aposta, mas uma aposta menos arriscada, pois elegemos muitos possíveis chefes (primeiro-ministro). Quando o eleito não dá certo, pode o Parlamento fazer uma nova eleição sem traumas. Tem ainda a vantagem de permitir uma filtragem das más escolhas populares.

Além disso, no parlamentarismo o primeiro-ministro nasce com maioria no Congresso e, pois, em boas condições de aprovar seus projetos. Já no presidencialismo o presidente é um estrangeiro, porque não integra o Parlamento e tem de fazer mil concessões para formar base parlamentar.

E, como nas democracias tudo tem de passar pelo Parlamento, e é impossível governar sem ele, também por isso o parlamentarismo que não é um sistema perfeito é preferível ao presidencialismo.

Evidentemente, a adoção do parlamentarismo não basta. Outras tantas reformas são importantes, como a abolição do voto obrigatório, a reforma dos partidos políticos, a redução do número de deputados, a extinção do Senado etc.

 

[1] Luigi Ferrajoli. Principia iuris, v. 2. Trotta: Madrid, 2011, p.172/173.

Categorias
Notícias

Osório: Cobrança do ITBI tem várias ilegalidades

O ITBI (Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis) é um imposto de competência municipal cobrado pela transmissão de bens imóveis. Várias são as ilegalidades que permeiam o ITBI, praticadas pelas prefeituras e o Distrito Federal, como a cobrança antecipada do imposto para a lavratura de escritura de compra e venda, a cobrança em duplicidade do imposto sobre a mesma operação de compra e venda na promessa e na escritura definitiva e a exigência de recolhimento do imposto sobre valor fixado previamente pela autoridade fiscal. Esta última, objeto deste artigo.

A base de cálculo do ITBI é o valor venal do imóvel, assim entendido como o seu valor de mercado, ou seja, o valor pelo qual o imóvel encontra compradores, em condições normais.

O ITBI é sujeito a lançamento por homologação, ou declaração, de modo que compete ao contribuinte declarar o valor da transação e efetuar o recolhimento da quantia correspondente. Nessa natureza de lançamento, não há intervenção do Fisco no momento da apuração do imposto, nos termos do artigo 150 do Código Tributário Nacional. O município homologa ou não o lançamento feito pelo contribuinte.

O município apenas poderá interceder para fixar valor diverso daquele tido no instrumento privado como base de cálculo se comprovar que naquela transação os valores consignados não refletem a realidade, na forma do artigo 148 do Código Tributário Nacional. Convém registrar que a declaração, no instrumento, de valor inferior ao valor real caracteriza crime de evasão fiscal.

Em outras palavras, após o recolhimento do tributo, poderá o Fisco instaurar procedimento administrativo com o intuito de majorar o valor do imposto. Mas lhe incumbirá comprovar que o valor da transação informado, e sobre o qual o imposto foi recolhido, não é verdadeiro.

Ocorre que os municípios e o DF subvertem a sistemática prevista em lei e impõem ao contribuinte o recolhimento do imposto sobre valor previamente fixado, unilateralmente, sem critérios definidos, e muitas vezes acima do valor real de mercado.

Os entes públicos, via de regra, desprezam o valor da transação declarado pelo contribuinte, presumindo má-fé e falsidade por parte deste, e exigem o recolhimento do imposto sobre valor por eles fixado, sem procedimento administrativo, usando apenas o valor fixado genericamente para fins de IPTU, ou mediante uma avaliação discricionária e unilateral, feita sem qualquer vistoria ao imóvel.

A intenção de aumentar ilegalmente a arrecadação dos municípios e do DF fica evidente quando se constata nos decretos autorização para recolhimento do imposto sobre o valor declarado, caso seja superior ao valor fixado em pauta ou apurado pelo ente público. Fica clara a discricionariedade e subjetividade do Fisco, que só atende ao texto legal, que exige a cobrança do imposto sobre o valor da transação, quando lhe favorece e implica em aumento na arrecadação.

Na prática, são raras as situações nas quais o recolhimento do ITBI é feito pelo valor da transação, pois os municípios e o DF, em geral, fixam os valores venais para fins de ITBI em patamar acima aos valores praticados pelo mercado. Isso se tornou particularmente evidente após a crise no mercado imobiliário vivida no país desde 2013. Em São Paulo, há bairros em que se nota uma diferença para cima de mais de 900% entre o valor de mercado dos imóveis e o valor fixado, para fins de ITBI, pelo município.

O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacífico no sentido da indispensabilidade de abertura de processo administrativo para que a Administração Tributária possa arbitrar valor diverso daquele apresentado pelo contribuinte para efeito de base de cálculo. Também considera que o preço efetivamente pago pelo adquirente do imóvel tende a refletir, com grande proximidade, seu valor venal, considerado como o valor de uma venda regular, em condições normais de mercado.

Felizmente, alguns tribunais têm reconhecido a ilegalidade retratada e garantido ao contribuinte o recolhimento do imposto sobre o valor da transação, assim como a restituição do valor pago em excesso a título de ITBI.

 é advogada, sócia do escritório Osório Batista Advogados e especialista em Direito Imobiliário e leilões.

Categorias
Notícias

Miola e Melo: Impactos da Covid-19 na educação básica pública

O momento atual exige todos os esforços para conter a crise sanitária, econômica e social que se instalou no país com a pandemia da Covid-19. Entre suas inúmeras consequências, é necessário discutir e refletir sobre os impactos da pandemia no financiamento da educação básica pública que, assim como a saúde, é um direito fundamental de especial envergadura no nosso ordenamento jurídico.

A Constituição da República prevê, basicamente, três pilares que sustentam o financiamento da educação básica pública no Brasil.

Primeiro, temos a vinculação da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, de, no mínimo, 25% para Estados, municípios e Distrito Federal e 18% para a União à manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212). É tamanha a importância desse direito que a vinculação para a finalidade prevista no artigo 212 é uma exceção ao princípio da não afetação da receita de impostos previsto no artigo 167, IV, da CR/88.

Segundo, o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), previsto no artigo 60 do ADCT como um fundo de natureza contábil e composto por parte dos recursos que os Estados, o Distrito Federal e os municípios devem destinar à educação a que se refere o artigo 212.

Por último, a contribuição social do salário-educação recolhida pelas empresas, na forma da lei, prevista no artigo 212, § 5º, como fonte adicional de financiamento da educação.

Todos os entes federativos são responsáveis pelo financiamento do ensino, mas cada qual atua em etapas definidas expressamente no texto constitucional: aos municípios compete atuar, prioritariamente, na educação infantil e no ensino fundamental (artigo 211, § 2º); aos Estados e ao Distrito Federal, nos ensinos fundamental e médio, prioritariamente (artigo 211, § 3º). Já à União compete organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições de ensino públicas federais (artigo 211, § 1º). Além disso, sendo o ente com a maior arrecadação da federação, a União exerce também, em matéria educacional, “função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios” (artigo 211, § 1º).

Dito isso, todas essas receitas somadas representaram, no ano de 2018, R$ 252 bilhões e serviram para financiar, aproximadamente, 142 mil escolas públicas de educação básica, 40 milhões de alunos e dois milhões de professores [1].

Apesar desse arranjo constitucional protetivo do direito à educação básica pública, de um modo geral pode-se dizer que os recursos já eram insuficientes para garantir uma educação de qualidade antes da pandemia da Covid-19. Dois dados básicos corroboram essa conclusão: o piso salarial dos profissionais do magistério da educação básica é de cerca de R$ 2,8 mil [2], ao passo que o Estado brasileiro gasta R$ 519 em média por mês com o aluno da escola pública da educação básica [3]. Um estudo divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (Education at a glance) revelou que o Brasil investe por aluno três vezes menos que os países desenvolvidos que fazem parte da organização.

Dos três pilares de financiamento antes mencionados, o Fundeb é o principal mecanismo, correspondendo à maior parte dos recursos públicos destinados à educação em milhares de municípios que não possuem receita própria expressiva.

Por força da Constituição da República, a União complementará os recursos dos fundos sempre que, no DF e em cada Estado, o valor médio ponderado por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente (artigo 60, V, ADCT). Essa complementação será de, no mínimo, 10% do total dos recursos estaduais/distritais/municipais, a partir do quarto ano de vigência do fundo (artigo 60, VII, “d”, ADCT). No ano de 2018, a receita vinculada ao Fundeb de Estados e municípios representou R$ 138,8 bilhões, ao passo que a complementação da União ao fundo foi de R$ 13,8 bilhões, o que totalizou R$ 152,6 bilhões.

Uma auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no Fundeb (TC 018.856/2019-5) indicou que quatro fontes de receitas juntas representaram 93% do total dos seus recursos, com expressivo destaque para o ICMS, seguido pelos Fundos de Participação dos Estados e dos municípios (FPM e FPE) e pela complementação da União, nessa ordem.

Naturalmente, ou tragicamente, por força da retração da atividade econômica causada pela pandemia, já está havendo e haverá perda de arrecadação de tributos de toda ordem, o que refletirá na formação dos fundos estaduais e demais fontes de financiamento da educação.

A Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação emitiram recentemente uma nota técnica sobre a queda das receitas da educação no contexto da pandemia Covid-19 e seus efeitos danosos na manutenção e desenvolvimento do ensino [4].

Os pesquisadores coletaram informações em bases de dados governamentais para estimar os cenários de decréscimos nas receitas de impostos e do salário-educação dos governos estaduais e municipais e seus impactos na área da educação. Foram estimados três cenários; no mais otimista, a educação perderia R$ 17,2 bilhões; no intermediário, perderia R$ 34,8 bilhões e, no mais pessimista, R$ 52,4 bilhões.

Em termos de recursos por aluno/mês, foram realizadas as seguintes projeções: de R$ 519 (valor referência em 2018), que já é considerado um patamar de partida muito baixo, estima-se que o valor caia para R$ 483, R$ 447 ou R$ 411, a depender da gravidade do cenário. Segundo a referida nota, a ameaça é imediata em 2020, mas com grandes chances de se estender para os próximos anos.

Outro estudo, intitulado “Covid-19 Impacto Fiscal na Educação Básica”, elaborado pelo movimento Todos pela Educação e o Instituto Unibanco, utilizando a base de dados do Tesouro Nacional, informações consolidadas das receitas tributárias de abril e maio, além de estimativas de especialistas para realizar uma projeção dos tributos vinculados a manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) em 2020, estimou que “o conjunto das redes estaduais devem perder entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos vinculados à MDE, a depender do cenário de crise econômica” [5].

Ainda, o mencionado estudo estimou que as redes públicas terão custo adicional de pelo menos R$ 2 bilhões para 2020 com soluções para o enfrentamento das consequências da pandemia, sobretudo gastos com a implementação do ensino remoto e com o oferecimento de alimentação aos alunos durante a suspensão das aulas presenciais.

Será um impacto enorme para o financiamento da educação básica pública, principalmente se pensarmos que grande parte dos recursos do Fundeb são utilizados no pagamento dos profissionais do magistério da educação básica. A Lei nº 11.494/2007 determina que, no mínimo, 60% dos recursos do fundo devem ser utilizados no pagamento de profissionais da educação e há notícias de que, em várias situações, os montantes do Fundeb são integralmente absorvidos pela folha de pagamento da educação. Mesmo nos entes em que isso não acontecia, quedas na receita tendem a direcionar valores que poderiam ser investidos no incremento da qualidade da aprendizagem para cobrir gastos com pessoal

Temos que lembrar, ainda, que o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que é decenal, está completando seis anos neste mês de junho e os efeitos econômicos da pandemia vão gerar um impacto significativo no atingimento das metas estipuladas, como, por exemplo, na ampliação da oferta da educação infantil.

Por outro lado, enquanto a arrecadação de tributos diminui, afetando as receitas vinculadas para a manutenção e desenvolvimento do ensino, o cenário descortina demandas e gastos extras na área da educação. Como exemplo, é possível antever um aumento no número de matrículas, nas redes públicas, de alunos egressos das escolas particulares cujos pais perderam a condição financeira de arcar com as mensalidades. Além disso, já se pensando no retorno às atividades presenciais, haverá também aumento de despesas com a segurança sanitária nas escolas.

No momento em que foi declarada a ocorrência do estado de calamidade pública no Brasil em decorrência da Covid-19 (Decreto Legislativo nº 06, de 20 de março de 2020), estava em adiantada tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 015/2015, que trata da renovação do Fundeb em caráter permanente, de novas medidas de equidade e da expansão do financiamento da educação básica por meio da elevação da complementação dos recursos Fundeb por parte da União.

A baixa participação da União no financiamento da educação básica sempre foi alvo de críticas, e o quantum de sua complementação ao Fundeb estava finalmente em discussão, não sem uma “queda de braço” entre o Ministério da Educação e o Congresso Nacional com relação ao novo percentual. No relatório apresentado pela deputada Dorinha Seabra Rezende, relatora da PEC, a complementação federal havia sido fixada em 20% do total dos recursos.

Agora, é necessário que o novo Fundeb seja pensado, discutido e votado no paradigma da pandemia e no pós-pandemia, de modo que a complementação da União possa recompor, se não totalmente, ao menos parcialmente as perdas de receitas sofridas por Estados e municípios, porque todos terão perdas expressivas. Para esse propósito, é importante lembrar que a complementação da União ao Fundeb não está limitada pelo novo regime fiscal criado pela Emenda Constitucional nº 95/2016 (teto de gastos), pois foi excluída expressamente pelo artigo 107, § 6º, inciso I, do ADCT.

A situação é grave, e exige uma atuação afirmativa por parte dos entes federativos, a fim de se viabilizar o direito à educação para mais de 40 milhões de crianças e jovens brasileiros. Nesse contexto, a aprovação do Fundeb, com o incremento da complementação da União, é indispensável para recompor as vultosas perdas na educação pública brasileira. A pandemia da Covid-19 trouxe impactos inestimáveis para a economia e já vitima mais de mil pessoas por dia no país. Não se pode permitir que o futuro das nossas crianças e jovens seja mais uma dessas trágicas consequências.

 é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa.

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Categorias
Notícias

Toron: O HC substitutivo de Recurso Ordinário e a 3ª Seção do STJ

Uma questão instrumental sacudiu o julgamento do HC nº 535.063 realizado pela 3ª Seção do STJ na sessão desta quarta-feira (10/6). O ministro Sebastião Reis Jr. trouxe um tema da maior importância: saber se o conceito de insignificância aplicável pela jurisprudência aos tributos federais sonegados também o pode no caso dos impostos estaduais. O assunto foi ventilado pelo conceituado advogado Leonardo Massud e, de saída, o presidente da seção, ministro Nefi Cordeiro, adiantou que, ressalvada a posição do ministro Rogério Schietti, o colegiado estava a conceder a ordem. O advogado, inteligentemente, desistiu da sustentação oral.

Ocorre que o ministro Reynaldo Soares da Fonseca levantou uma questão de ordem sustentando que o Habeas Corpus não deveria ser conhecido porque se tratava de impetração substitutiva do recurso ordinário, mas “concedido de ofício”. Houve um acendrado debate, apesar da advertência de vários ministros de que o quórum não estava completo para se decidir a questão de ordem. O ministro Rogério Schietti, como noticiou a ConJur (“3ª Seção do STJ acolhe questão de ordem para negar jurisprudência sobre HC”), ponderou (corretamente, diga-se) que o não-conhecimento “cria um embaraço até para fins estatísticos. Temos dificuldade de identificar quando houve a denegação ou o efetivo não-conhecimento, além das hipóteses de manifesto descabimento”.

Deixemos de lado o problema estatístico, que é real e importante, e também o igualmente relevante fato, sobretudo para uma corte que se pretende “de precedentes”, de que o Pleno do STF, ao julgar o HC 152.752, relatado pelo ministro Edson Fachin, firmou o entendimento de que “é admissível, no âmbito desta Suprema Corte impetração originária substitutiva de recurso ordinário constitucional” (DJe 27/6/2018). Esqueçamos também a estranheza de se conceder uma ordem de ofício, mas nos termos em que pedida.

Poderia ser que os defensores do não-conhecimento da ordem substitutiva do recurso ordinário tivessem algum argumento de natureza dogmática, científica, a alicerçar seu posicionamento. Mas não! O que se ouviu é que a 1ª Turma do STF, embora majoritariamente, continuava a “não conhecer” e que, na 2ª, talvez a ministra Carmen Lúcia tivesse o mesmo posicionamento. Decepcionante. Argumento de autoridade por autoridade, melhor seria seguir a orientação definida pelo Pleno do STF no citado HC nº 152.752 (caso Lula). Quanto à ministra Carmen Lúcia, é bom dizer que no julgamento do HC nº 157.627, do famigerado caso da cronologia da entrega dos memoriais, que a 5ª Turma do STJ não havia conhecido, ela conheceu e concedeu a ordem.

Mas o ponto é outro! A gênese da confusão está em querer ressuscitar pela via exegética uma proibição que não existe na Constituição de 1988. Foi com o AI-6, de 1º de fevereiro de 1969, que se mudou o processamento do Habeas Corpus. Das decisões denegatórias proferidas pelos Tribunais de Justiça dos Estados e pelo Tribunal Federal de Recursos (lembremo-nos que os Regionais Federais só vieram com a Constituição Federal de 1988) era perfeitamente possível impetrar-se Habeas Corpus originário substitutivo do RHC. A jurisprudência o admitia desde 1951, como percucientemente anotou o ministro Moreira Alves no voto que proferiu no RHC nº 67.788 (STF, Pleno, DJ 22/2/1991).

Como todos sabemos, o regramento constitucional em vigor, estabelecido pela Constituição de 1988, não reproduziu a proibição constante do AI-6 e por essa razão passou-se a admitir o manejo do Habeas substitutivo do RHC. Elucidativo a esse respeito o acórdão relado pelo ministro Costa Lima: “A Constituição em vigor não opõe restrições à impetração originária de habeas corpus, visando a substituir o recurso ordinário” [1]. No STF, a jurisprudência construída pelo pleno, em julgamento realizado em 1º de agosto de 1990, relatado pelo ministro Moreira Alves, foi clara nesse sentido:

Ora, se a atual Constituição se omitiu quanto a essa proibição, quer quanto ao S.T.F. quer quanto ao S.T.J., nos casos em que admite recurso ordinário de Habeas Corpus para eles, o sentido normal dessa omissão é o de ter deixado de haver a proibição, que tanto não era infensa ao sistema processual do Habeas Corpus que o Supremo Tribunal Federal, de 1951 a 1969, admitiu pacificamente essa substituição (RHC nº 67.788)”.

Todavia, no julgamento do HC nº 109.956, em 2011, da relatoria do ministro Marco Aurélio em razão da “sobrecarga de processos”, uma questão funcional, revigorou-se a proibição pela via interpretativa. O próprio ministro Marco Aurélio voltou atrás no julgamento do HC nº 115.601, mas os demais membros da turma, não.

A 2ª Turma do STF não acompanhou o movimento restritivo da 1ª Turma. Em sentido oposto: “Possui entendimento consolidado no sentido da possibilidade de impetração de Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário (HC 122.268, relator ministro Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe de 4/8/2015; HC 112.836, relatora ministra Carmen Lúcia, 2ª Turma, DJe de 15/8/2013; HC 116.437, relator ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 19/6/2013)” [2]. No julgamento do HC nº 106.566, o ministro Gilmar Mendes trouxe à colação o voto proferido no HC 111.670, no qual sustentou o cabimento do Habeas Corpus substitutivo do recurso ordinário. Nesse julgamento, o ministro Gilmar Mendes trouxe um argumento irrebatível e que deveria iluminar essa discussão:

“O valor fundamental da liberdade, que constitui o lastro principiológico do sistema normativo penal, sobrepõe-se a qualquer regra processual cujos efeitos práticos e específicos venham a anular o pleno exercício de direitos fundamentais pelo indivíduo. Ao Supremo Tribunal Federal, como guardião das liberdades fundamentais asseguradas pela Constituição, cabe adotar soluções que, traduzindo as especificidades de cada caso concreto, visem reparar as ilegalidades perpetradas por decisões que, em estrito respeito a normas processuais, acabem criando estados de desvalor constitucional” [3].

Soa especiosa a criação de limites artificiais, ainda mais quando descolados da lei e da Constituição, para se restringir a discussão de temas fundamentais ligados à liberdade quando se proclama, mais e mais, a instrumentalidade das formas, ou será que tal forma de pensar só vale quando se trata de flexibilizar direitos e garantias preteridos?

O sistema de proteção judicial efetiva reclama que as ilegalidades sejam discutidas sem peias e, obviamente, repudia artificialismos que não se compadecem com outras garantias constitucionais (CF, artigo 5º, e Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 25).

 é advogado, doutor e mestre em Direito pela USP, professor de Processo Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e ex-diretor do Conselho Federal da OAB.

Categorias
Notícias

Sistema registral precisa favorecer utilização de garantias mobiliárias

É indubitável que a racionalização e a modernização das garantias mobiliárias facilitarão seu uso, ampliarão o acesso ao crédito e favorecerão a economia [1]. Tal é sobremodo importante pois, em tempos de pandemia, há que se aumentar o crédito e reduzir seu custo. A utilização de bens móveis (veículos, máquinas equipamentos, estoques etc.), como garantia na obtenção de crédito é valiosa para empresas de qualquer porte. Contudo, é especialmente benéfica para médias, pequenas e microempresas, cujo patrimônio é composto em grande parte por bens móveis, atualmente pouco utilizados como contrapartida de garantia; em grande parte por ser o sistema registral brasileiro, extremamente intrincado e defasado. Tendo em vista que as empresas de menor porte representam cerca de 40% do PIB brasileiro, a economia beneficiar-se-ia consideravelmente se esse segmento empresarial tivesse acesso a crédito barato e fácil. Na prática, há dificuldades tanto para os tomadores quanto para os cedentes de crédito, dificuldades essas transferidas diretamente ao custo da transação financeira via incremento dos juros.

Os interessados em oferecer bens móveis em garantia encontram, mormente, as seguintes dificuldades: I) inscrição e cancelamento de garantia não estarem necessariamente sujeitas a um procedimento padronizado, podendo variar dependendo tão-somente do cartório de registro; II) descumprimento injustificado de prazos pelos participantes do sistema atual de registro, que podem, também, variar de estado federado para estado, atrasando transações quando o mesmo tomador de recursos possui bens dispersos territorialmente; e III) complexidade do cálculo e falta de uniformidade nos valores a serem pagos pelos usuários, além da existência de gastos desnecessários causados pelo duplo registro de bens, que ocorre tanto por insegurança quanto ao lugar correto quanto pela falta de interoperabilidade entre as centrais estaduais de todo o país.

Do prisma dos cedentes de crédito, o sistema atual também impõe desafios limitantes, com  lentidão, onerosidade e insegurança jurídica dos registros, visíveis especialmente pela dificuldade de se obter informações completas e atualizadas sobre a situação dos bens usados como garantia. Mudanças poderiam superar tais dificuldades se fossem implementadas, eficiente e celeremente.

Inúmeros documentos oriundos de organizações internacionais sugerem a adoção de sistema de registro centralizado, eletrônico e de baixo custo: a Lei Modelo Interamericana de Garantias Mobiliárias da OEA (Washington, 2002), a Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da UNCITRAL (Viena, 2016), a Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis da UNIDROIT (Cidade do Cabo, 2001) e seus protocolos aeronáutico e MAC (mineração, agricultura e construção).

A Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA e a da UNCITRAL trazem conceitos de garantia amplos, bem adaptados à realidade atual, permitindo que qualquer coisa possa ser dada em garantia. De fato, podem ser usados como garantia uma coisa individualmente considerada ou um conjunto de bens e direitos, específicos ou de categorias genéricas, ou mesmo todos os bens móveis do devedor, presentes ou futuros, corpóreos ou incorpóreos, suscetíveis de um valor pecuniário, quer no momento da transação, quer no futuro. Tal acrescenta flexibilidade e deixa de lado conceitos frios e rígidos que limitam o uso de garantias.

Além disso, ambas as leis incorporam a ideia de registro eletrônico e remoto acessíveis por senha. As buscas podem ser realizadas pelo nome do devedor e, em alguns casos, permite-se fazer um pré-registro sem necessidade de o contrato de garantia já estar assinado ou o crédito já ter sido outorgado pelo credor. Em tais sistemas, o registro de garantias é bem simples, sendo realizado por meio de formulários que pressupõem apenas cinco dados relevantes dos usuários (sem necessidade de outros documentos comprobatórios, a não ser o contrato de garantia em si): I) nome e endereço do garantidor; II) valor máximo garantido, em vez de valor fixo (vantagem importante em países com inflação alta); III) nome e endereço do credor garantido; IV) descrição dos bens, que pode ser geral ou específica (útil no registro de bens fungíveis ou de bens futuros); e V) nome dos devedores.

A implementação de um registro centralizado, com acesso em um único ponto da internet, resolveria vários dos desafios. Registro central significa uma base central a que se conectariam todas as unidades de serviços do país; ou seja, cartórios, ofícios e centrais. Dessa forma, evitar-se-ia o duplo registro. Em havendo acesso ágil e indiscriminado a certidões e informações, qualquer interessado poderia fazer uso do sistema, inclusive o menos instruído. Além disso, a operação seria mais célere, pois todas as informações estariam em um único local, barateando-se o custo de due diligence e acelerando a análise de riscos pelo cedente do crédito; agilizando a chegada dos recursos ao bolso do tomador. A centralização implicaria também em padronização. Seriam superadas as atuais diferenças entre os estados federados, permitindo interoperabilidade entre as centrais estaduais e os cartórios locais. Ajudaria, ademais, na interconexão das unidades de registro de bens móveis com o Poder Judiciário e outros órgãos da administração pública. Por fim, o registro centralizado será útil caso o Brasil ratifique o Protocolo MAC, a fim de conseguir oferecer e registrar garantias sobre bens móveis de alto valor nos setores de mineração, agricultura e construção a nível internacional.

Abandonando-se o uso de papel, uma plataforma de registro eletrônico ensejaria economia apreciável na operação e guarda dos documentos, aumentando a segurança, velocidade e acessibilidade, inclusive em regiões, atualmente, fora do alcance de cartórios, ou de difícil acesso. Qualquer usuário teria o mesmo nível de informação, utilizando seu próprio telefone celular. Os benefícios, em muito, superam os desafios de instalação, manutenção e sigilo, que por sua vez estão ainda começando a ser tratados com maior profundidade pelo legislador.

Registro de baixo custo, a ser adotado, necessita possuir dois predicados: barato o suficiente para atrair os usuários a aceder, embora hábil para que os cartórios obtenham lucro razoável. Para aumentar o número de operações e reduzir gastos individuais é imperativo haver: I) procedimentos homogêneos na fixação dos emolumentos; II) a publicação de tabelas claras; e III) custo de registro de uma transação suscetível de ser orçado prévia e rapidamente.

Com um registro central eletrônico e de baixo custo todos os envolvidos ganham. O aumento no número de transações significaria mais emolumentos para os cartórios, mais juros para os credores e mais crédito para os tomadores injetarem em seus empreendimentos, favorecendo emprego e arrecadação, com um mecanismo pautado na publicidade dos atos e na segurança jurídica.

A proposta acima não exigiria demasiado esforço das autoridades e participantes envolvidos. O Brasil já tem inclusive experiências positivas na utilização de registros públicos únicos e centralizados, como é o caso do Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), usado para registrar hipotecas sobre aeronaves; e a ratificação pelo Brasil da Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e respectivo protocolo, firmados na Cidade do Cabo, em 2001, que faculta registros eletrônicos e centrais, bem como mecanismos de execução das garantias.

Além disso, o Brasil pode se beneficiar da experiência de vários dos países de América Latina [2] que têm adotado esses modelos e reformado seu sistema de garantias mobiliárias. Com isso haveria aumento considerável do fluxo de comércio internacional na região e possível integração por ter um sistema de registro comum.

A crescente necessidade de acesso a capital, em tempos de pandemia, fez com que algumas ideias, anteriormente lançadas, começassem a ser cogitadas. A mais recente foi a possível criação de plataforma de Consulta Unificada de Restrições e Garantias (CURG) que permitiria justamente centralizar as informações sobre garantias e restrições de bens dos cartórios de RTD, RI, Central Nacional de Indisponibilidade de Bens CNB baseada em buscas pelo identificador pessoal (CPF, CNPJ).

As mudanças acima são necessárias para simplificar, agilizar e aproveitar ao máximo a alta capacidade produtiva, hoje desperdiçada pela burocracia, atraindo investidores nacionais e estrangeiros e impulsionando a economia. Um sistema menos complexo certamente gerará muitas oportunidades a todos os envolvidos.

P.S.: O presente artigo segue as linhas mestras e a fundamentação da conferência da professora Constanza Bodini feita no Programa de Conferências online do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes), em 6 de junho de 2020.

 

[1] Rodas, João Grandino. “Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia”. ConJur, 4 de junho de 2020. Publicado em https://www.conjur.com.br/2020-jun-04/olhar-economico-facilitar-uso-garantias-mobiliarias-incrementaria-economia.

[2] Peru, Guatemala, Honduras, Salvador, Panamá, Costa Rica, Colômbia e México.

 é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Categorias
Notícias

Clito Júnior: Sobre paternidade socioafetiva post mortem

A paternidade socioafetiva é um conceito jurídico que ganhou dignidade a partir da regra do artigo 1.593 do Código Civil, que, depois de anunciar ser o parentesco natural ou civil, admite que possa ele resultar de outra origem, como seria ocaso da afetividade. Sua existência se evidencia a partir da demonstração de vínculo de afeto de uma pessoa em relação a outra, marcado por atos próprios de pai em relação a um filho, sem que o seja. Sua constatação, não poucas vezes, se sobrepõe ao próprio vínculo biológico, embora o STF tenha firmado, em julgamento repetitivo, que a paternidade socioafetiva não impede a biológica (Tema 622, RE 898.060, rel. Luiz Fux).

A prevalência do conceito, por exemplo, tem vindo à tona nos casos em que se conteste a paternidade registral, quer pelo suposto pai, quer pelo filho registrado. Nesse sentido, quem registra outrem como seu filho pode, posteriormente, reconhecer tê-lo feito por erro, de modo a se lhe dar o direito de buscar a anulação do registro. Todavia, o questionamento não se tem como procedente se, apesar do erro, criou-se um vínculo afetivo que acaba superando o biológico inexistente (Entre outros: AgInt nos EDcl no REsp 1.784.726, rel. Luís Felipe Salomão). De outro lado, não se nega o direito à verdade a qualquer pessoa, de modo a se fazer possível a filho buscar o reconhecimento de paternidade em relação ao seu verdadeiro genitor. Reconheceu-se, porém, que essa anulação do ato por erro pode ser feita, desde que não tenha sido estabelecido um vínculo socioafetivo (Assim, REsp 1.698.716, rel. Nancy Andrighi). Verifica-se, diante da importância que se confere a esse vínculo afetivo aquilo que João Batista Vilela denomina de “desbiologização da paternidade”. Não se nega a importância do vínculo biológico, mas ele pode esmaecer-se na medida em que o coração fale mais alto.

A riqueza do instituto, porém, vem de ser maculada pelo crescente número de ações post mortem intentadas pelo pretenso filho afetivo em face do espólio de seu pranteado e querido pai, como certamente diria com lágrimas nos olhos o novel pretenso órfão. Postulações neste sentido transpiram oportunismo. A busca da paternidade afetiva não se pode transformar numa mesquinha caça de patrimônio, que se mostra na maioria dessas ações, tanto que a inicial já traz pretensão de herança, antecipando o autor o que efetivamente lhe interessa. Demandas voltadas a tanto pecam até pela ilegitimidade, pois são promovidas pelo pretendente a filho, que se arvora em conhecedor da alma do falecido e diz que ele pretendia fosse o demandante seu filho. Nesse sentido, já houve decisão de primeiro grau indeferindo liminarmente a inicial por falta de legitimidade do autor (Processo nº 1013476-58.2018.8.26.0002, juíza Analuísa Livorati Oliva de Biasi Pereira da Silva), embora tenha sido a sentença reformada para que se enfrentasse o mérito.

Se não se faz possível de antemão negar a possibilidade de postular o reconhecimento, é certo que é imprescindível que se demonstre a vontade clara e inequívoca do pretenso pai, como colocado por Marco Aurélio Bellizze, o que não pode ser extraído de atos de caridade. Nessa linha, já se negou o reconhecimento a partir da existência de dependência econômica (Apelação nº 1003029-38.2017.8.26.0360, relator Carlos Alberto de Salles), que não é incomum existir entre o enteado e o companheiro de sua mãe. Da mesma forma, também não se aceitou o fato de ter o pretendente sido criado por um parente, na medida em que não se demonstrou que a afetividade transpunha o natural carinho entre tio e sobrinho, avós e neto, primos etc., pois mais do que isso seria necessário (Apelação cível nº 10000051-41.2019.8.26.0547). Já se pressentiu uma conduta maliciosa no fato de se buscar o reconhecimento por apenas um dos parentes, exatamente o que deixou bens, quando fora criado por um casal.

Parece razoável presumir-se inexistente a vontade do falecido reconhecer como filho a outrem sempre que se fez possível adotar o postulante ou mesmo contemplá-lo em testamento, circunstância que lhe permitiria desfrutar do patrimônio que vem postular por meio da ação de reconhecimento, porém o falecido não o fez. Mais forte, sem dúvida, se torna a presunção quando o falecido deixa testamento e nele não faz qualquer referência neste sentido ao pretendente da filiação. Não resta dúvida que permitir o reconhecimento da paternidade até poderia ter lugar por meio até de provas orais, todavia, deferir a atribuição de bens fora do contexto de um testamento enfraquece este instituto, deixando, então, de ter sentido toda o formalismo que cerca o ato de manifestação da derradeira vontade de qualquer pessoa.

Impõe-se, pois, que se tenha rigor com postulações deste naipe, a fim de que não sirva o Judiciário como caminho seguro para o enriquecimento sem causa.

Clito Fornaciari Júnior é advogado, mestre em Direito pela PUC-SP e ex-presidente da Aasp e ex-conselheiro da OAB-SP.

Categorias
Notícias

Corregedor suspende cobrança de contribuições ilegais de cartórios

Em decisão liminar, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou ao Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais (Cori) a imediata suspensão da prestação de serviços não previstos no Provimento  89/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça, pela Central Eletrônica de Registro de Imóveis (CRI-MG), bem como a cobrança de contribuição de 4,89%, descontada do valor a ser repassado aos cartórios, ante a sua manifesta ilegalidade.

ReproduçãoCorregedor suspende cobranças de contribuição ilegais de cartórios de MG

Segundo o ministro, a CRI-MG extrapolou suas finalidades previstas no Provimento 317/2016, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que são de armazenar, concentrar e disponibilizar informações, bem como efetivar comunicações obrigatórias sobre os atos praticados nos serviços de registro de imóveis, além de prestar os respectivos serviços por meio eletrônico e de forma integrada.

“Verifica-se que, em nenhum momento, é atribuída à CRI-MG a função para prestar ou intermediar a prestação de serviços a terceiros, como se fosse um cartório de registro de imóveis. Além disso, instituiu e cobra uma taxa pelos serviços que presta. Taxa é uma espécie tributária, portanto, vinculada à prévia existência de lei que a institua. Além de ser manifestamente ilegal, é tratada pelo Colégio Registral com absoluta normalidade, conforme consta do comunicado aos associados, de 28 de abril de 2020”, enfatizou o corregedor nacional.

Cobranças

Com relação à cobrança, o ministro Humberto Martins destacou que o CRI-MG, sob o fundamento de déficit mensal considerável, instituiu uma “contribuição” de 4,89%, a ser descontada do valor repassado aos cartórios e que incidirá sobre a visualização de matrícula, pedido de certidão e prenotação.

“Não cabe a nenhuma central cartorária do país efetuar cobranças dos seus usuários, ainda que travestidas de contribuições ou taxas, pela prestação de seus serviços, sem previsão legal. A atividade extrajudicial é um serviço público, exercido em caráter privado, cujos valores dos emolumentos e taxas cartorárias pressupõem a prévia existência de lei estadual ou distrital”, disse.

Portanto, segundo o ministro, as cobranças praticadas pelo Cori-MG na Central Eletrônica de Imóveis, bem como em qualquer central eletrônica de registro de imóveis existentes em todo o território nacional, são manifestamente ilegais.

Restituição

Ainda em sua decisão, o corregedor nacional de Justiça determinou a restituição em até 24 horas de qualquer valor retido ou pago pelos cartórios de Minas Gerais, a contar de 30 de abril, até o julgamento final do pedido de providências formulado contra o Colégio Registral Imobiliário de MG.

Além disso, o ministro Humberto Martins determinou a imediata suspensão da prestação de serviços não previstos no Provimento 89/2019 a todas as Centrais Eletrônicas de Registro de Imóveis dos Estados e do Distrito Federal, bem como da exigibilidade de quaisquer cobranças de valores, ainda que sob a denominação de “taxas e contribuições”, sem previsão legal. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.