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Koehlert: Quando a defesa do consumidor é confundida com abutres

Foi sem espanto, mas com preocupação, que nós da Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA) lemos recentemente o artigo “É hora de dar um basta na atuação nociva dos aplicativos abutres“, que nos cita e classifica como aves de rapina.

A falta de espanto se dá por já saber o que esperar de defensores incondicionais das companhias aéreas, sempre preocupados em isolá-las da mínima crítica possível e determinados a atacar empresas sérias e comprometidas com o consumidor brasileiro.

Já a preocupação veio por conta do meio que esses arautos encontraram para tentar deslegitimar a ação das startups do setor aéreo: um artigo completamente contaminado com uma adjetivação sensacionalista e uma tentativa cínica de maquiar aquilo que há de errado no setor da aviação civil.

Durante parte do texto, os autores chegam a tentar sugerir que a chegada da Covid-19 ao Brasil pudesse servir como caminho para que startups que intermedeiam a relação entre consumidores e companhias aéreas pudessem gerar alguma forma indevida de lucro.

Em primeiro lugar, a ADDPA nunca se aproveitaria de um cenário catastrófico como o da Covid-19 para promover o que os defensores das companhias aéreas chamam de judicialização do setor.

As startups ligadas à associação não assumem o atendimento de casos ligados a intempéries e outras situações que evidentemente fogem do controle das companhias aéreas. Também é preciso eliminar teorias conspiratórias chinfrins na hora de se falar de um problema sério.

Não existe nenhum paraíso fiscal por trás de nossas ações, tampouco somos conhecidos em qualquer meio de atuação como abutres. A atividade dos membros da ADDPA é autêntica e bastante comum em outras partes do mundo como os Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Alemanha e Portugal.

A segunda confusão a ser desfeita ao se analisar o trabalho das startups na resolução de problemas com voos está em considerá-las como prestadoras de serviços jurídicos. As startups atuam apenas administrativamente, ou seja, a partir da análise de documentos que possam levar a acordos, ou seja, à solução de problemas por meios extrajudiciais.

Muitas vezes isso significa analisar documentos, enviar e-mails, falar no call center da companhia, ou seja, nós poupamos o cliente desse trabalho enfadonho e isso, definitivamente, não é atividade privativa de advogados. Atuando sob a luz da Lei nº 13140/2015, que baliza a mediação como meio alternativo para sanar conflitos, as startups de tecnologia agem em consonância com o que define o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Caso as vias de negociações diretas com as empresas aéreas se esgotem e o consumidor decida prosseguir com ações judiciais, estas sempre são executadas por profissionais habilitados e contratados pelo consumidor, nunca pelas startups em si. Estamos do lado do consumidor e com nossa atuação o empoderamos com conhecimento.

São fornecidas ao consumidor, por exemplo, informações sobre o que fazer na hora de resolver problemas como extravio de bagagens, atrasos e cancelamentos de voos — dados que, muitas vezes, não são passados pela companhia aérea. Se o atendimento das companhias aéreas não fosse deficiente, não precisaríamos sequer existir.

O cenário da pandemia não alterou a constatação de que os SACs das companhias são falhos e ultrapassados. A própria existência das startups é a prova da insatisfação dos passageiros, que se vêem muitas vezes perdidos em relação a informações básicas e como iniciar uma negociação com a companhia aérea depois de transtornos.

A suposta judicialização do setor é causada pela deficiência no atendimento a clientes e no gerenciamento de voos por parte de companhias aéreas em operação no Brasil, somada à frequente indisposição por parte dessas companhias a resolver a questão administrativamente.

Essas falhas das companhias aéreas é que têm aumentado a atuação de empresas de tecnologia em defesa de consumidores. O mesmo raciocínio vale para a ação de advogados habilitados e que são contratados por consumidores para ingressar com medidas judiciais. São providências tomadas por consumidores que identificam os próprios direitos lesados, com os fatos sendo devidamente avaliados por um juiz competente.

Não se trata de uma responsabilização sem motivo das empresas, tampouco um perseguição sem sentido. O trabalho das startups representa o empoderamento dos consumidores, facilita e desburocratiza o acesso aos seus direitos. Nossa ação incentiva as empresas a cumprirem com as regras de seus serviços, uma vez que os consumidores estão cientes da existência de formas alternativas para preservar os direitos básicos de quem compra passagem.

O que os críticos das startups precisam entender é a natureza do problema que temos em mãos: o cerne da questão é comunicação. Quanto antes as companhias aéreas demonstrarem um interesse real em entender o consumidor que foi lesado e saber como ajudá-lo, sobretudo administrativamente, menos problemas elas terão com a Justiça.

Nós, da ADDPA, já sabemos disso e seguimos dispostos a colaborar, sempre agindo no corpo-a-corpo com o passageiro brasileiro, longe dos paraísos fiscais imaginados nos devaneios de certas pessoas, e sempre servindo de ponte para um diálogo mais igual entre passageiro e prestadoras de serviços aéreos. Pouco preocupados com carniça e muito mais interessados em ajudar a montar o ninho.

 é membro da Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA), bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e especializado em Gestão de Pessoas e Liderança e Estratégia em Marketing, ambos pelo Insper. É um dos fundadores da LiberFly e o atual CCO da startup.

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Daier, Perregil e Pires: Relações humanas na pandemia da Covid-19

A pandemia causada pelo coronavírus colocou o mundo em isolamento social, obrigando-nos, enquanto sociedade, a repensar e reestruturar nossas relações. A diminuição do contato físico entre as pessoas e o aumento da necessidade do uso da inteligência artificial fortalecem a ideia de que os impactos da Covid-19 modificarão a forma como as pessoas interagem com o mundo ao redor.

Ao mesmo tempo em que isola as pessoas e paralisa grande parte dos setores da economia, a pandemia torna o diálogo e a tecnologia essenciais para a gestão da crise, na medida em que respostas e decisões devem ser apresentadas em tempo recorde.

Sabendo que a evolução das relações humanas, historicamente, inicia-se ou é acelerada por crises, ressurge uma inquietação já existente nas sociedades de consumo: como conservar a humanização dentro das relações?

O dicionário Aurélio define humanizar como “inspirar humanidade, tornar-se humano, tornar-se benevolente”. A solidariedade também está vinculada à humanização e tem como fundamento a dignidade humana.

No cenário de pandemia global, a consciência da necessidade de cooperação e a solidariedade podem ser os divisores para a superação da crise, o que também implica dizer que o momento exige um pensamento de coletividade. Isso interfere diretamente nos conflitos surgidos dentro das relações contratuais, relações de trabalho e interpessoais, colocando-os em rota de colisão com valores sociais sedimentados e discutidos ao longo de anos.

Os contratos exercem um importante papel social, apesar de serem negócios jurídicos e fonte de obrigações, também possuem como um de seus objetivos o desenvolvimento econômico.

Legitimando a necessidade de um pensamento humanizado e coletivo, de modo a evitar desequilíbrio e onerosidade excessiva para qualquer das partes (artigos 478 e 480 do Código Civil), o CC e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) determinaram que fossem observados valores éticos também nas relações contratuais, trazendo para o rol dos seus princípios a dignidade da pessoa humana e a boa-fé objetiva.

A visão social, trazida pela legislação vigente, além de evidenciar a importância de o interesse individual estar equilibrado com o coletivo, confirma que o Direito, por regular a vida em sociedade, deve acompanhar o dinamismo dos acontecimentos e as mudanças das necessidades humanas. A mesma linha de pensamento é observada na pandemia da Covid-19, em que o interesse coletivo passa a ser mais importante que o individual na vida em sociedade e a humanização trazida para o ramo dos contratos fica ainda mais necessária.

Fato é que a crise da Covid-19 provocou desequilíbrios, prejuízos financeiros e a necessidade de as partes buscarem soluções dentro dos contratos já firmados. A dúvida que surge é se esse momento pode justificar a revisão de um contrato ou a arguição de excludente de responsabilidade, pelo descumprimento de uma obrigação (artigo 393 do CC).

Nesse contexto, o momento exige a humanização das relações contratuais com a renegociação e readequação de cláusulas, o que vem sendo chamado hardship clause, para que as partes cheguem a um consenso e possam adimplir com suas obrigações, mantendo a relação contratual durante e no pós-pandemia.

No mesmo sentido, o Estado, por meio do Judiciário, vem sendo obrigado a fornecer respostas rápidas para aquelas relações em que os acordos não foram possíveis, tornando, em algumas situações, indispensável a sua intervenção para preservar a harmonia contratual, a dignidade da pessoa humana, o equilíbrio contratual e a manutenção da ordem econômica.

O lockdown completo ou parcial das empresas, causado pela crise da Covid-19, também impactou as relações de trabalho, afetando o cotidiano de cerca de 2,7 bilhões de trabalhadores. Esse número, segundo os dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na segunda edição do “Monitor OIT: Covid-19 e o mundo do trabalho”, representa quase 81% da força de trabalho do mundo.

Agora é importante que as organizações empresariais reconheçam a necessidade emergencial de conciliação entre lucratividade e humanização, além do reflexo que as decisões institucionais terão em seus valores e posicionamento de mercado. 

De acordo com a OIT, o enfrentamento da crise depende de políticas integradas e focadas em quatro pilares: apoio às empresas, ao emprego e à renda; estímulo à economia e ao emprego; proteção de trabalhadores no local de trabalho; e uso do diálogo social entre governos, trabalhadores e empregadores.

No mundo dos negócios, não é de hoje a importância de ações humanizadas no aspecto de sustentabilidade, meio ambiente e relações de trabalho. Existe uma preocupação com a “cidadania corporativa”, termo bastante utilizado na superação de desafios mercadológicos a serviço de um desenvolvimento efetivamente sustentável, revelando-se como um novo valor no mercado corporativo.

Para evitar o aumento de passivo trabalhista, seja pela falta de cumprimento de obrigações, seja por soluções equivocadas tomadas durante esse período da Covid-19, as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao tema demonstram que as alternativas de solução com base no diálogo social, valor social do trabalho e pensamento coletivo sempre serão sustentáveis a longo prazo. A ideia sempre será utilizar as medidas disponibilizadas pelo governo, mas sem se distanciar dos princípios do direito à vida, saúde e dignidade.

Apesar de afetar toda a sociedade, a proporção dos efeitos da pandemia varia de acordo com critérios econômicos, étnico-raciais, de gênero e diversidade sexual, geopolíticos e etários das vítimas.

Ante a incerteza gerada pela crise, para a garantia de direitos humanos, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas de Direitos Humanos publicou orientações a respeito de medidas a serem tomadas pelos Estados, tais como: acesso à moradia, alimentação saudável, saneamento básico e tratamentos de saúde; defesa dos direitos de idosos, defesa dos direitos das pessoas com deficiência, mulheres e pessoas LGBTI; enfrentamento a estigmatização, xenofobia e racismo. 

Mesmo com as redes de solidariedade e suporte aos grupos de pessoas mais afetados pela pandemia, existem violações a direitos humanos que já acompanham a história do Brasil — genocídio negro e indígena, atraso na igualdade de gênero, péssima distribuição de renda, entre outras — e que ficam ainda mais expostos pela pandemia.

Isso torna necessário que o setor privado e os estados busquem alternativas para manter o cumprimento de obrigações na esfera de direitos humanos, atuando de forma eficaz, com ponderação e adequação, a fim de preservar o máximo de vidas possível.

Assim, o momento tem exigido escolhas e soluções rápidas de governo, Judiciário, Legislativo e das empresas, a fim de agirem em meio à crise que nos afeta como sociedade, mas que ameaça, principalmente, os direitos humanos básicos de pessoas em contextos mais vulneráveis. Levando em conta a necessidade de humanização no cuidado, no acolhimento dos vulneráveis, é preciso dar especial atenção aos grupos com menos capacidade de reagir de maneira isolada à paralisação das atividades.

Luanda Pires é advogada, especialista em Direto Contratual, coordenadora do Núcleo de Mulheres LBT’s e Gênero na Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP e membro das comissões da Mulher Advogada e da Igualdade Racial da OAB-SP.

Felipe Daier é advogado do Centro de Cidadania LGBTI Edson Néris Sul, da Prefeitura de São Paulo, e coordenador do Núcleo de Acolhimento LGBTQIA+ da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

 é advogada, sócia no escritório Innocenti Advogados e membro da Comissão de Direito do Trabalho e da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB.