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Medida Provisória 966 e (in)segurança jurídica

O momento de pandemia da Covid-19 tem criado inúmeras dificuldades para todas as pessoas. Para os tomadores de decisão, públicos e privados, os desafios são ainda maiores. Na administração pública, há uma responsabilidade especial do gestor público, nos âmbitos federal, estadual e municipal, a quem compete dar as diretrizes de saúde pública à sociedade nesse momento sem precedentes. São muitas as dúvidas que surgem, principalmente quanto ao dilema de manter os estabelecimentos abertos ou fechados.

Nesse contexto preocupante e caótico – marcado por posicionamentos diametralmente opostos e conflitantes por parte de órgãos governamentais diversos —, as linhas que dividem o “certo” e o “errado” são tênues e ondulantes. Ainda mais quando, a cada novo dia, novos estudos quanto ao vírus e sua transmissão impõem a revisão estratégica de que se deve fazer.

Devemos considerar a sequência vertiginosa de leis e atos administrativos que tratam de medidas aplicáveis a setores públicos, estabelecimentos comerciais e à população em geral. Para evitar a aglomeração social, criamos verdadeiro aglomerado de leis. A dificuldade em compatibilizar todo esse novo regime jurídico pandêmico afeta todos, inclusive os agentes públicos responsáveis por regular o controle da transmissão em âmbito nacional, regional e local.

No âmbito federal, fora editada como primeira resposta à Covid-19 a Lei 13.979/2020 — já alterada e complementada por diversas medidas provisórias — que prevê (dentre várias outras providências) a possibilidade de implementação de medidas como isolamento e quarentena. Posteriormente, foi estabelecida a Portaria Interministerial 5/2020, prevendo que a inobservância de eventual determinação de quarentena configura crime (artigo 268 do Código Penal). Mas as normas gerais nacionais em matéria de saúde pública não esgotam as disposições normativas[1]. No âmbito regional, cada estado detém competência legislativa para determinar suas próprias regras, e o mesmo acontece em âmbito local com a legislação municipal.

Apenas para ilustrar, tomando-se por exemplo o estado do Paraná, onde lecionamos e militamos na advocacia, já foram editadas diversas normas, criando um regime jurídico em constante mutação, com diversas leis, decretos, resoluções e portarias[2] que ora restringem ora afrouxam as medidas de distanciamento social.

Quem, sem investir considerável tempo e estudo atento e constante, com auxílio jurídico-técnico, poderá dizer que conhece seguramente o teor das regras aplicáveis aos particulares e à iniciativa privada no combate à pandemia da Covid-19? Sequer os governos federal, estaduais e municipais estão em perfeita sintonia com relação às medidas que adotam dentro de suas esferas de competência. Exemplo disto foi o Decreto 10.344/2020, em que a Presidência da República inclui dentre os serviços considerados essenciais[3] as academias, barbearias e salões de beleza. Apesar de se tratar de norma federal, a disposição não foi seguida por muitos estados. Parece desarrazoado exigir que o particular, em um dado momento, tenha domínio completo sobre esse apanhado vertiginoso de leis, decretos e resoluções.

O cenário caótico de posicionamentos conflitantes por esferas diversas do Poder Público não traz segurança ao particular. Se, de um lado, a política do governo federal aparenta ser de maior flexibilidade nas medidas de isolamento e contenção, de outro, muitos estados e municípios adotam medidas mais rigorosas. Quando há publicidade de medidas em um ou outro sentido na mídia e nas redes, sempre há a dúvida de que fazer, principalmente do lado do particular.

As medidas restritivas costumam vir acompanhadas de disposição estabelecendo que o descumprimento das normas de controle da pandemia acarretará responsabilidade penal, nos termos da Portaria Interministerial 5, para o fim de configurar o crime de infração de medida sanitária preventiva[4]. Há claro uso do Direito Penal como “incentivo” para que as determinações da saúde pública regional ou local sejam cumpridas.

Sob o ponto de vista dogmático, não pode haver crime pelo particular ou gestor público sem que lhe seja imputada a infração a alguma determinação poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, disposta em lei.[5] No caso, a legislação federal nada impôs quanto à contenção da Covid-19, apenas estabeleceu regras gerais.

Apesar disto, parece haver uma preocupação com a responsabilidade de gestores públicos, principalmente quando adotarem medidas de maior flexibilidade quanto ao distanciamento/isolamento social. Poderá haver responsabilidade civil, administrativa ou até criminal caso uma pessoa venha a adoecer ou morrer como produto das decisões tomadas?

Nesse sentido, a Medida Provisória 966/2020 parece buscar limitar ao máximo a responsabilização de agentes públicos, restringindo as hipóteses de responsabilidade civil ou administrativa aos casos de dolo ou culpa grave. É certo que no direito penal não cabe responsabilidade objetiva. Seria possível imputar a prática culposa[6] dos crimes de lesão corporal (artigo 129, parágrafo 6º, do Código Penal) ou homicídio (artigo 121, parágrafo 3º, do Código Penal) caso houvesse demonstração de nexo de causalidade[7] entre a ação ou omissão do gestor público e o contágio.

Ainda que a MP 966 se aplique somente às esferas civil e administrativa — não poderia, por vedação constitucional expressa (artigo 62, parágrafo 1º, I, “b”, da Constituição) dispor sobre matéria penal —, há uma importante chave interpretativa para o direito penal. O objetivo parece ser reduzir a responsabilidade dos gestores públicos nas esferas civil e administrativa. Tratando-se o sistema penal de ultima ratio para a proteção de bens jurídicos[8], seria um contrassenso permitir que a responsabilidade fosse limitada à demonstração de culpa grave (“erro grosseiro” – artigo 3º da MP 966) apenas para instâncias de controle social de menor gravidade, permitindo ampla responsabilização culposa no direito penal. O Direito Penal admite analogia in bonam partem que aproveitaria ao imputado.

O que preocupa na MP 966, contudo, não é a sua má técnica jurídica[9]. Ainda que concordemos com a necessidade de conter o controle social exercido pela repressão penal e punição, a medida apenas contribui para o pandemônio regulatório, pois estabelece um princípio de irresponsabilidade jurídica. A mensagem que pode ser captada pelo gestor público é a de que o afrouxamento das medidas de contenção não acarretará responsabilidade (nem mesmo criminal), independentemente de isto estar ou não no melhor interesse da saúde pública. É preciso salvaguardar os agentes públicos de indevida responsabilidade jurídica. O pêndulo, contudo, parece ter balançado para outro extremo, que não trará benéfico a ninguém.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] O STF reconheceu a competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à Covid-19 no julgamento da ADI n.º 6341.

[2] (i) Decreto n.º 4.230, de 16 de março de 2020, que implementou medidas de enfrentamento à pandemia no âmbito do Estado do Paraná; (ii) Resolução n.º 338, de 20 de março de 2020, da Secretaria da Saúde do Estado do Paraná, que regulamentou o decreto anteriormente mencionado; (iii) Decreto n.º 4.301, de 19 de março de 2020, que alterou o Decreto n.º 4.230; (iv) Decreto Estadual n.º 4.317, de 21 de março de 2020, que dispôs sobre medidas de enfrentamento à pandemia por parte da iniciativa privada no âmbito estadual; e (v) Decreto n.º 4.545, de 27 de abril de 2020, que implementou alterações ao Decreto n.º 4.317.

[3] Importante ressaltar que este já é o terceiro decreto presidencial que alterou a regulamentação da Lei n.º 13.979/2020, para expandir o número de serviços considerados “essenciais”.

[4] “Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena: 1 mês a 1 ano, e multa”

[5] No mesmo sentido, MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. Coronavírus: um diagnóstico jurídico-penal, JOTA. 23 mar. 2020 (https://bit.ly/3bT8N0j); LEITE, Alaor; GRECO, Luís. Direito Penal, saúde pública e epidemia, JOTA. 15 abr. 2020 (https://bit.ly/2Yj51JL).

[6] Poder-se-ia falar também em dolo eventual, o que demandaria estudo mais aprofundado.

[7] A discussão quanto à imputação objetiva em matéria penal é complexa e não cabe no presente artigo. Recomenda-se as seguintes leituras: GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4.ed. São Paulo: RT, 2014; MENDES, Paulo de Sousa. Causalidade complexa e prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

[8] SCHÜNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! Sobre os limites invioláveis do Direito Penal em um Estado de Direito liberal. Trad. Luís Greco. RBCCrim 53/9 (2005).

[9] Ventila-se, inclusive por ministros do STF, a inconstitucionalidade da medida provisória, por inviabilizar a responsabilidade de agentes públicos.

 é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor em Direito pela UFPR e master of laws pela Cornell Law School, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico, secretário-geral do Instituto dos Advogados do Paraná e sócio-fundador do escritório Lucchesi Advocacia.

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STJ não vai examinar pedido de entidades para adiar o Enem 2020

O ministro Gurgel de Faria decidiu que o Superior Tribunal de Justiça não vai analisar o pedido da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) para adiar a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), marcado para 1º e 8 de novembro.

FreepikRelator decide que STJ não examinará pedido de entidades para adiar o Enem

Relator do mandado de segurança impetrado pelas entidades, o ministro afirmou que elas não apresentaram nenhum ato assinado pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, o que inviabiliza a análise do pedido.

Gurgel de Faria destacou que as impetrantes apenas citam editais lançados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação responsável pela realização do exame.

Segundo as entidades estudantis, mesmo após o país inteiro adotar medidas para contenção do coronavírus, o Ministério da Educação manteve a programação do Enem para novembro, com período de inscrição entre 11 e 22 de maio, de acordo com as regras anunciadas pelo Inep em editais publicados em março.

Desigualdade social

A UNE e a Ubes afirmaram que o Inep é subordinado ao Ministério da Educação, o que justificaria o ajuizamento do mandado de segurança contra ele, e que as inscrições para o Enem ocorrem antes mesmo do retorno às aulas presenciais no Brasil – situação que gera prejuízo para milhares de alunos impedidos de estudar e se preparar para as provas em razão do isolamento social.

As entidades mencionaram publicações do Inep em redes sociais, nas quais afirma que o cronograma está mantido, bem como entrevistas em que o ministro da Educação declarou que o Enem 2020 não sofrerá alterações.

Para as demandantes, o cenário atual viola a isonomia e favorece o aumento da desigualdade social, pois os estudantes pobres das cidades ou de áreas rurais têm dificuldade para estudar pela internet e, muitas vezes, nem conseguem se alimentar adequadamente nesse período de isolamento social.

Prova pré-constituída

O ministro Gurgel de Faria ressaltou que, de acordo com o artigo 105, I, b, da Constituição, compete ao STJ processar e julgar mandados de segurança impetrados contra atos do próprio tribunal, de ministros de Estado e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ele observou, porém, que não foi juntado ao mandado de segurança nenhum ato praticado pelo ministro da Educação

“Assim, inexistindo ato concreto praticado pelo ministro de Estado da Educação, evidencia-se a sua ilegitimidade e, em consequência, a incompetência do STJ para processar e julgar o presente feito”, concluiu.

O relator lembrou que, no mandado de segurança, é indispensável que a prova do direito seja pré-constituída, apresentada no momento da impetração, ou seja, não é possível a produção posterior de provas. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

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MS 26.092