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Reforma tributária deveria evitar novas distorções

A forma federativa de Estado representa importante mecanismo de controle do poder, dentro da ideia de que a melhor forma de evitar abusos em seu exercício é dividindo-o. Trata-se de uma divisão vertical, com propósitos similares aos que inspiram, no plano horizontal, a separação de funções em Executivo, Legislativo e Judiciário. Acontecimentos recentes — no Brasil e nos EUA — talvez estejam mostrando a importância de tais instituições, e o valor da autonomia de governos estaduais diante de um ente central cujo chefe nem sempre subscreve as melhores práticas democráticas.

Mas para que exista federação, é, por definição, essencial a autonomia dos entes que a integram. E, para tanto, não bastam disposições constitucionais que atribuam competências legislativas ou mesmo materiais a tais entes, ou seja, que lhes atribuam faculdades decisórias. Se tais entes federativos não dispuserem dos recursos financeiros necessários à concretização de suas decisões, permanecendo assim dependentes de recursos a serem enviados (ou não) pelo ente central, essa autonomia desaparece. E, com ela, a própria forma federativa que dela depende. Em termos mais claros: de nada adianta formalmente permitir que o Estado tome decisões de modo autônomo em relação à União, se para dar concretude a essas decisões o Estado depender de recursos da União, a qual só repassará as quantias correspondentes se as decisões estaduais forem de seu agrado.

Tais noções devem ser lembradas quando se discute uma reforma constitucional nas competências para instituir tributos, e nas regras que cuidam da divisão dos recursos arrecadados com tais tributos. Diante delas, dependendo de como a reforma venha a ser levada a efeito, ela pode ser simplesmente inconstitucional, dado que a forma federativa é uma das cláusulas de imodificabilidade do texto constitucional vigente.

Muito já se discutiu, nessa ordem de ideias, a respeito da constitucionalidade, ou não, das propostas de emenda em trâmite no Congresso Nacional. Não é o propósito deste artigo simplesmente renovar tais questionamentos. Almeja-se tratar, ou pelo menos suscitar o enfrentamento, do mesmo tema central, mas por outro ângulo: o da diferença entre o mundo ideal presente na cabeça de quem elabora ou reforma um sistema constitucional, e a realidade institucional que se efetiva, à luz da legislação infraconstitucional e da jurisprudência do STF em torno de tais textos, nos anos seguintes, ao sabor das pressões políticas e dos inúmeros fatores sociais que passam a atuar.

Já se fez isso, aqui na ConJur, em relação a dois pontos que nos parecem muito sensíveis, relativamente ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a saber, a restituição do indébito e os equívocos da jurisprudência em torno do art. 166 do CTN, e as restrições que se criam para o aproveitamento de créditos, na sistemática da não cumulatividade, os quais passam a ser vistos pelo Fisco como um favor, um benefício, concedido com muita má vontade aos contribuintes (clique aqui). Desta vez, neste artigo, pretende-se fazer o mesmo, mas relativamente à questão federativa.

Discute-se se a supressão da competência dos estados-membros e do Distrito Federal, relativamente ao ICMS, e dos municípios, relativamente ao ISS, seria contrária ou não à forma federativa de Estado. Em um extremo, há quem imagine que qualquer alteração no desenho das competências seria inconstitucional. E, no outro, quem defenda que quaisquer alterações são possíveis, desde que se respeite um equilíbrio na divisão das rendas tributárias. Nesse último caso, os tributos poderiam até ser todos federais, desde que o produto da arrecadação fosse equitativamente partilhado, sem a possibilidade de interferências do ente central sobre essa partilha. Em posições intermediárias, há quem reconheça a importância, também, do uso do tributo como instrumento de política fiscal, sendo essencial portanto que os entes federativos periféricos — estados, Distrito Federal e municípios — tenham também competência para legislar sobre o tributo, não bastando garantir-lhes parcela da respectiva arrecadação. Essa é a razão pela qual a PEC 45 introduz uma complicada sistemática de alíquotas estaduais e municipais para o IBS, paralelamente à alíquota federal.

Sem entrar tanto no mérito das divisões propostas, o que se pretende destacar, neste artigo, é a necessidade de se pensar não apenas em uma divisão equilibrada no presente, ou no momento da aprovação da emenda. Como se espera do texto constitucional alguma longevidade, é importante fechar as portas — e as janelas — que poderiam levar a uma deformação dessa partilha. Não basta dividir o bolo de forma equânime, é preciso garantir que, se ele crescer, a divisão dos excedentes se dê também de maneira equitativa. Do contrário, com o tempo, o que parecia equilibrado pode começar a não ser mais.

Nossa história recente nos dá exemplo eloquente disso. Em 1988, a preocupação com a limitação do poder levou a um incremento do federalismo brasileiro. Municípios ganharam mais autonomia, e as rendas tributárias foram fortemente descentralizadas. A União perdeu impostos importantes sobre combustíveis, energia, comunicação, minerais e transportes, cujas bases passaram a ser alcançadas pelo antigo ICM, cuja sigla para tanto ganhou um “S”. Passou, ainda, a partilhar com estados e municípios parcela expressiva da arrecadação de seus dois principais impostos, suas principais fontes de custeio à época, o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados. Em adição a isso, os estados ganharam um novo imposto, o adicional estadual do imposto de renda (AEIR). E, os municípios, um imposto sobre vendas a varejo de combustíveis (IVVC).

O bolo, conquanto bem dividido, poderia crescer, por certo. Mas isso só poderia ocorrer por meio de impostos residuais, que, se criados pela União, deveriam ter o produto de sua arrecadação partilhado com estados. O equilíbrio na divisão seria mantido.

Esse era o cenário ideal, visualizado pelos que projetaram o sistema constitucional tributário originalmente promulgado em 1988. Mas o que houve, na sequência? Pequenas e paulatinas modificações, que isoladas não pareciam ter grande relevo ou impacto, mas que alteraram completamente a divisão inicial. E, com ela, a efetividade dada ao princípio federativo. É com isso que os reformadores do presente devem estar preocupados, e não apenas com a forma como a divisão ocorrerá no momento inicial de vigência do novo texto.

A Emenda Constitucional 3, de 1993, suprimiu a competência para estados criarem o AEIR, e para os municípios criarem o IVVC. E, em adição, a carga tributária passou a ser majorada, substancialmente, com o uso de “contribuições”, não partilhadas com estados e municípios. Não se criaram impostos residuais, mas contribuições, das mais variadas (sub)espécies: de seguridade, sociais “gerais”, de intervenção no domínio econômico. Figuras que deveriam ser excepcionais tornaram-se a regra, notadamente em virtude da complacência do Supremo Tribunal Federal para com tudo o que ostentasse esse rótulo.

Com efeito, o STF afastou a tese da “parafiscalidade obrigatória”, permitindo que as contribuições de seguridade, previstas no art. 195 da CF, apesar do disposto no art. 194, e no 165, III, da CF, fossem arrecadadas pela Receita Federal, e destinadas à conta única do Tesouro Nacional. Eventual tredestinação dos recursos, em momento posterior, seria ilegalidade que não invalidaria a cobrança da exação. Essa foi a senha para a União usar e abusar, na sequência, dessa figura tributária não partilhada, sob o pretexto de que estaria com elas a atender uma finalidade constitucionalmente determinada.

Como quase toda atuação estatal pode ser enquadrada em alguma ação social, ou de intervenção na economia, praticamente tudo poderia ser instituído sob tal rótulo. Daí o agigantamento da arrecadação federal, e o encolhimento do orçamento dos entes periféricos. Como pá de cal, passou-se a desvincular as receitas da União obtidas com tais exações (DRU), de modo que nem mais os fins (sociais ou interventivos) estavam a tentar justificar os meios (Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Contribuições e federalismo. São Paulo: Dialética, 2004, passim). Tudo foi feito aos poucos, e cada mudança, sozinha, não parecia maltratar tanto a federação, embora todas juntas tenham levado a um efeito desastroso, que jamais seria aceito se efetivado integralmente e em uma mesma oportunidade.

E o que isso tem a ver com as propostas atuais de reforma? A pergunta é retórica pois a leitora naturalmente já percebeu, e sabe que quem não respeita a História está fadado a repetir erros do passado. Não há como aplicar o processo de tentativa e erro para aperfeiçoar as instituições humanas se as tentativas — e os erros — anteriores forem esquecidos.

Em primeiro lugar, vale recordar que só se admitiu a invasão das bases imponíveis de estados e municípios (venda de mercadorias e prestação de serviços) por meio de tributos federais, porque se estava diante de “contribuições”, figuras supostamente representativas de um novo perfil de Estado, destinadas a finalidades constitucionalmente definidas. Nessa ordem de ideias, se PIS e Cofins vão ser liquidificadas com impostos estaduais e municipais, para se transformarem em um IBS, elas devem entrar na equação não como algo que o orçamento fiscal federal está “colocando na negociação”, simplesmente porque essas exações, originalmente, não eram fontes de custeio do orçamento fiscal da União. Elas cresceram e invadiram as materialidades dos entes periféricos com o uso de uma justificativa que desaparece quando assumem a real identidade de imposto e passam a atender pelo nome de IBS.

E mesmo que a divisão do produto da arrecadação, no âmbito do IBS, seja feita de forma equânime, já no texto constitucional, é importante fechar as portas para que a carga não aumente, no futuro, apenas em benefício de um dos entes federativos, notadamente da União. Por mais equilibrado que seja o rateio do produto da arrecadação do IBS, se a União puder, na sequência, por exemplo, continuar instituindo contribuições, sejam elas “sociais gerais”, ou de “intervenção no domínio econômico”, ou “de seguridade”, e a contar com a complacência da Corte Suprema quanto ao uso de tais figuras, esse equilíbrio logo será (novamente) perdido. O uso das contribuições nas décadas de 1990 e 2000 dá o testemunho de um erro que não precisamos repetir, principalmente se quisermos preservar algo que, nos dias atuais, se está mostrando tão importante, que é a autonomia dos entes subnacionais.


O tema foi objeto de rica discussão em evento realizado no dia 2/6/2020 (Youtube Live), pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), sob a coordenação de Eurico de Santi e Isaias Coelho, com exposição de Aristoteles Camara e Lina Santin, e debates suscitados por Luiz Bandeira e Raquel Machado.

 é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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Isenção de IPTU para áreas esportivas descobertas em clubes de SP

O IPTU no Município de São Paulo subdivide-se em (i) Imposto Predial Urbano, que grava os imóveis construídos, e (ii) Imposto Territorial Urbano, que onera (ii.1) os terrenos sem nenhuma edificação e (ii.2) as parcelas de terreno consideradas não incorporadas à edificação (“excesso de área”), que ocorrem quando as edificações ocupam uma pequena porção do terreno em que se situam. Essa última situação – prevista no artigo 24, inciso III, da Lei paulistana 6.989/66, que institui o sistema tributário do Município (doravante referida como Lei do STM) — é a única hipótese em que ambos os impostos (o predial e o territorial) incidem em conjunto.

Essa lei isenta do imposto predial “os imóveis construídos pertencentes ao patrimônio das agremiações desportivas, efetiva e habitualmente utilizados no exercício de suas atividades, desde que não efetuem venda de ‘poules’ ou talões de apostas” (artigo 18, inciso II, alínea “h”, na redação da Lei municipal 14.865/2008). Trata-se de saber se certas áreas descobertas de clubes, destinadas à prática de esportes como o futebol, o golfe e o hipismo, atendem ao conceito de “imóveis construídos” da regra isentiva. O Fisco paulistano entende que não, para tanto recorrendo ao artigo 3º, inciso X, do Código Municipal de Obras e Edificações (Lei paulistana 16.642/2017), segundo o qual, “para fins de aplicação das disposições deste Código”, define-se como edificação a “obra coberta destinada a abrigar atividade humana ou qualquer instalação, equipamento e material”.

Considerando-as porções não construídas, aloca-as no numerador da fração conducente à apuração do eventual excesso de área (área total dividida pela área construída), o que — a depender da sua extensão e da zona da cidade em que localizado o clube (ver nota 2 supra) — pode levar à incidência ou ao aumento do imposto territorial.

Pois bem: como visto, o Fisco lança mão do Código de Obras e Edificações para definir “edificação” como “obra coberta” e negar a isenção. Contudo, o recurso à analogia — uso de conceito da lei edilícia para definir termo empregado em lei tributária — só teria lugar em caso de lacuna desta última, como decorre do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e, especificamente em matéria fiscal, do art. 108 do CTN. Ocorre que a Lei do STM não é omissa nesse ponto, como se verifica de seu artigo 4º, que nada diz sobre a necessidade de cobertura: “para os efeitos deste imposto, considera-se construído todo imóvel no qual exista edificação que possa servir para habitação ou para o exercício de quaisquer atividades”.

Totalmente dispensável, assim, a remissão ao Código de Obras, sobretudo quando se considera que (i) a definição restritiva de “edificação” que este veicula vale somente “para fins de aplicação das disposições deste Código” (artigo 3º, caput) e que (ii) a sua extensão ao campo tributário levaria à exigência de tributo não previsto em lei, esbarrando na vedação do artigo 108, parágrafo 1º, do CTN.

Cabe aprofundar este segundo ponto. O conceito de “prédio” (na expressão Imposto Predial e Territorial Urbano), utilizado como sinônimo de “edificação” ou “construção” é técnico, pertencendo ao campo da Engenharia Civil, e também jurídico, vinculando-se ao Direito Civil. No primeiro âmbito, confira-se a NBR 13.531 da Associação Brasileira de Normas Técnicas, que trata da Elaboração de Projetos de Edificações — Atividades Técnicas: “2.1.2. Edificação: Produto constituído por conjunto de elementos definidos e articulados em conformidade com os princípios e as técnicas da arquitetura e da engenharia para, ao integrar a urbanização, desempenhar determinadas funções ambientais em níveis adequados. Exemplos: casas, hospitais, teatros, estações rodoviárias, ferroviárias, aeroportuárias, armazéns, estádios, ruas, avenidas, parques e monumentos”.

Os quatro últimos exemplos evidenciam a desnecessidade de cobertura — e os três últimos dispensam mesmo a verticalidade. Ora bem, as pistas de hipismo descobertas e os campos de futebol e de golfe têm finalidade própria e resultam da cuidadosa articulação de inúmeros elementos construtivos, todos sujeitos a rigorosos padrões de engenharia e de segurança definidos pelos órgãos técnicos e pelas federações estadual, brasileira e internacional dos citados esportes. A sua simplicidade é, portanto, aparente, escondendo estruturas complexas e altamente dispendiosas em sua estruturação e em sua constante manutenção.

Passando agora para o campo jurídico, importa observar que o Código Civil também estende o conceito de construção a obras de engenharia não cobertas, como provam os seus artigos 1.292 e 1.293, que regulam o direito de “construir barragens, açudes” e “canais”. Dessa forma, a manipulação dos conceitos de “prédio”, “edificação” e “construção” pelo legislador ou pelo Fisco municipais, para ampliar o campo de incidência do imposto territorial (ou restringir isenção aplicável ao imposto predial), esbarraria também no artigo 110 do CTN, segundo o qual “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal (…) para definir ou limitar competências tributárias”.

A bem dizer, toda ofensa ao artigo 110 do CTN atinge diretamente o comando constitucional que emprega o conceito de Direito Privado em tela — in casu, o artigo 156, inciso I, da Constituição (Imposto Predial e Territorial Urbano). Bem por isso, o STJ recusa recursos especiais fundados naquele dispositivo, afetando a discussão ao Supremo Tribunal Federal (1ª Seção, REsp. 1.168.038/SP, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJe 16.06.2010).

Esses argumentos têm sido acolhidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Relatando acórdão favorável ao Clube Hípico Santo Amaro, registrou o Desembargador Paulo Dimas Mascaretti que “a aparência de terreno ou gramado, na realidade, esconde uma verdadeira construção subterrânea, provavelmente com custo muito superior ao das edificações que são visíveis a olho nu, implicando obras de engenharia que envolvem terraplenagem, paisagismo, drenagem, pavimentação, entre outras, a fim de tornarem o terreno apto à prática do hipismo” (8ª Câmara de Direto Público, Apelação 9162641-69.2006.8.26.0000, j. 17.08.2011).

Isso também o que observou o Desembargador Arthur Del Guércio em favor do Golf Clube de São Paulo: “depreende-se da leitura dos laudos juntados aos autos que não há qualquer dúvida acerca de ser a área do campo de golfe efetivamente construída, embora sua aparência não dê essa ideia aos leigos. Segundo os laudos, a construção de um campo de golfe implica em verdadeira obra de engenharia que envolve aspectos de terraplanagem, obras hidráulicas e paisagísticas, com a finalidade de atender às exigências técnicas de um campo para a prática do esporte” (15ª Câmara de Direito Público, Apelação 994.06.052060-0, j. 29.07.2010; ver ainda: 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 11ª Câmara de Férias de Janeiro de 2004, Apelação 1.206.087-6, Relator Juiz Vasconcellos Boselli, j, 19.02.2004)

A conclusão é referendada por Roque Carrazza e Elizabeth Carrazza, para quem “também são prédios os campos de futebol, as pistas de atletismo, as quadras de tênis, etc., justamente porque exigem construções, ainda que apenas no nível do solo e do subsolo (tubulações, sistemas de drenagem, fiações elétricas, etc.)” (Os 50 anos do Código Tributário Nacional e sua função explicitadora do IPTU. In Revista do Advogado nº 132. São Paulo: AASP, dezembro de 2016, p. 110).

Cobrir as áreas esportivas a céu aberto, em alguns casos, seria uma saída até barata, mas que degradaria fortemente o bem estar e mesmo a saúde dos respectivos usuários. E que prejudicaria a própria cidade, por reduzir a permeabilidade do solo às águas pluviais, contrariando inúmeros dispositivos da Lei municipal 16.050/2014, que aprova a Política de Desenvolvimento Urbano e o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (artigos 6º, incisos X e XIII; 7º, inciso IX; 8º, inciso II; 265, parágrafo 2º; 268, inciso VII; etc.), como observa André Smith de Vasconcellos Suplicy em estudo inédito.

E tudo isso apenas para atender ao capricho do Fisco municipal, que se recusa a atribuir à expressão “imóvel construído” o sentido inequívoco que lhe dão a Engenharia e o Direito Civil.


https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/fazenda/servicos/iptu/index.php?p=2456

“Parte I, Título I, Capítulo II – Imposto Territorial Urbano

Art. 24. Para os efeitos deste imposto, consideram-se não construídos os terrenos:

(…)

III – cuja área exceder de 3 (três) vezes a ocupada pelas edificações, quando situado na 1ª subdivisão da zona urbana; 5 (cinco) vezes quando na 2ª, e 10 (dez) vezes quando além do perímetro desta última; (…)”

 é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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Não cumulatividade na incidência monofásica do PIS/Cofins

O princípio constitucional de não cumulatividade é uniforme quanto ao tratamento da plurifasia, ao exigir que seja compensado o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, tanto para o IPI (art. 153, § 3º, II) quanto para o ICMS (art. 155, § 2º, I). No que concerne à base de cálculo do PIS e da Cofins, o § 12, do art. 195, da Constituição determina a competência para instituir o regime de não cumulatividade conforme o setor de atividade econômica. Nada dispôs sobre o método.

Este dever de eliminação da “cumulatividade” do PIS e à Cofins define-se pela apuração das “receitas brutas” ou “faturamento”, mediante um sistema de “base-contra-base”, ao estipular os descontos (art. 3º, da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03 e art. 15, da Lei nº 10.865/04), na forma de “créditos”, relativos aos elementos que ingressaram na sociedade empresária, como “insumos” e outros.

A Constituição está a exigir a aplicação de um eficiente sistema de abatimentos, de deduções dos créditos apurados nas operações anteriores para compensação com as seguintes. Nestas, a alíquota (conhecida como “de entrada”), a ser usada na apuração dos descontos (i), deverá ser a mesma alíquota (chamada “de saída”) a ser empregada na apuração do débito tributário (ii), pela determinação da base de cálculo (PIS: 1,65%; Cofins: 7,6%), salvo a aplicação de eventuais regimes especiais, relativos à apuração das bases ou mesmo das alíquotas aplicáveis. Por isso, efetuar a devolução de tributos pagos nas etapas anteriores e que se agregaram ao preço dos bens ou serviços, mediante aproveitamento de créditos do regime não cumulativo, é dever que se impõe como garantia dos princípios de eficiência administrativa e da não cumulatividade.

O modelo de tributação das contribuições ao PIS e a Cofins assume a não cumulatividade como sua regra geral. Ao lado desta, tem-se o regime cumulativo e outros regimes especiais, como a substituição tributária ou mesmo o tratamento monofásico em determinadas cadeias, por concentração de alíquotas.

Importante destacar que não cumulatividade não é benefício fiscal, mas mecanismo técnico de garantia da desoneração da cadeia, pela tributação do valor agregado, mediante redução do tributo aplicável, mesmo quando sob a forma de monofasia, sem qualquer privilégio ou vocação extrafiscal.

O regime de tributação monofásica ou concentrada de recolhimento do PIS e da Cofins unifica em uma só alíquota o valor das contribuições que o legislador admite, por presunção absoluta, que seria uma média da arrecadação da cadeia plurifásica, com atribuição de alíquota-zero para as etapas seguintes.

O regime de concentração de alíquotas aplicável ao primeiro elo da cadeia de plurifasia foi o meio encontrado pelo legislador para garantir a cobrança dos tributos devidos por toda a cadeia econômica, com o propósito de garantir eficiência arrecadatória e menor impacto nos preços, além de evitar sonegações.

Dizer monofásico não equivale a afirmar que só há uma incidência na cadeia de circulação e produção das mercadorias. Aplicada a incidência monofásica, não se elimina a continuidade da cadeia plurifásica. Ao longo desta, aplicar-se-á, a cada etapa, uma “alíquota-zero” ou outro tratamento jurídico que afaste o ônus tributário, até chegar ao ato último da aquisição, que se pode dar como venda direta ao consumidor ou na forma de insumo.

Assim, a tributação monofásica, à semelhança da substituição tributária, propõe-se a garantir a arrecadação das contribuições ao PIS e à Cofins e evitar distorções econômicas eventualmente acarretadas pelo não recolhimento desses tributos, especialmente em cadeias muito pulverizadas, como é o caso dos setores de combustíveis, medicamentos, cosméticos, produtos de higiene, de produtos farmacêuticos, do setor de bebidas ou mesmo do setor automotivo.

Sem presumir a ocorrência de fatos geradores futuros, mediante a adoção de bases de incidência fictícias (a partir da determinação de Margens de Valor Agregado – MVA), como na hipótese de substituição tributária, optou o legislador, pois, no estágio inicial da cadeia, por uma concentração de alíquotas fixas, para garantia da arrecadação do PIS e da Cofins.

Portanto, a não cumulatividade pode ser igualmente efetivada pela tributação monofásica ou concentrada, porquanto, entre as distintas operações tributáveis em uma cadeia de produção e comercialização, a lei pode eleger um elo para concentrar a tributação.

Desse modo, a tributação monofásica, que seria a negação da tributação em cadeia (cumulativa ou não cumulativa), na espécie, alinha-se à não cumulatividade para servir como instrumento hábil à antecipação dos tributos, com carga tributária compatível com o que seria a arrecadação própria do circuito plurifásico, segundo critérios pertinentes à política fiscal que se pretenda perpetrar na ordem econômica e no setor designado.

Eis porque a tributação monofásica aplicada ao primeiro sujeito de uma dada cadeia de consumo pode perfeitamente conviver com a atribuição de direito de crédito aos sujeitos que se encontram na etapa subsequente, haja vista a agregação do tributo ao custo do produto ou do serviço.

De fato, a lei somente exclui, de modo expresso, a tomada de crédito, quando não há tributação na operação de entrada e na saída (salvo os casos de créditos presumidos) a saber:

“Art. 3º, (…) § 2º Não dará direito a crédito o valor: (Redação dada pela Lei nº 10.865/04) (…)

II – da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse último quando revendidos ou utilizados como insumo em produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou não alcançados pela contribuição. (Incluído pela Lei nº 10.865/04)”.

Deveras, desde que haja tributação nas etapas anteriores, afirma-se como inafastável o direito à tomada do crédito. E, de outra banda, somente não dará direito ao crédito a aquisição de produtos ou serviços quando estes forem isentos, sujeitos à alíquota-zero ou não alcançados por estas contribuições.

Para os fins da tomada do crédito importa unicamente que a operação anterior seja tributada. Portanto, mesmo nas operações nas quais a “saída” de mercadorias se der com suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência, a restituição dos créditos será sempre obrigatória.

Neste sentido, o art. 17 da Lei n. 11.033/2004 não poderia ser mais esclarecedor, ao confirmar a tomada do crédito nestes casos de saídas não tributadas, com prevalência da regra da tomada do crédito pela operação precedente tributada. Não é demasiado repetir o regime normativo assinalado:

“Art. 17. As vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota 0 (zero) ou não incidência da Contribuição para o PIS/PASEP e da Cofins não impedem a manutenção, pelo vendedor, dos créditos vinculados a essas operações.”

Essa regra confere ao contribuinte o direito subjetivo, em cada apuração da base de cálculo do tributo devido, ao abatimento do tributo cobrado na operação anterior, como forma de assegurar o cumprimento dos valores inerentes ao princípio de não cumulatividade.

Qualquer vínculo de exclusividade entre o artigo 17 da lei nº 11.033/04 e o REPORTO deve ser afastado de plano, haja vista a sua natureza interpretativa, de modo que esse dispositivo apenas esclarece que a realização da não cumulatividade independe de benefícios fiscais nas operações de saída, afora o fato de a Lei nº 11.033/04 disciplinar diversas outras matérias, a demover o argumento de natureza puramente topográfica. Em verdade, a Lei nº 11.033/04 não trata apenas do REPORTO, mas de diversos temas relacionados à legislação tributária, com alterações em matérias variadas da incidência das contribuições PIS e Cofins, tais como tributação do mercado financeiro e de capitais.

Vê-se, o revendedor que adquire os bens diretamente do produtor ou importador, com tributação monofásica, permanece enquadrado no regime não cumulativo. E o fato de as vendas subsequentes se sujeitarem à alíquota-zero não tem o condão de inibir o desconto dos créditos das aquisições anteriores.

O artigo 17 da lei nº 11.033/04, como assinalado, autoriza a tomada de créditos de PIS e Cofins vinculados às vendas efetuadas com suspensão, isenção, alíquota zero ou não incidência da Contribuição ao PIS e da Cofins. Ora se o beneficiário do REPORTO deve destinar os bens adquiridos ao seu ativo imobilizado, não haveria qualquer sentido, para o usuário deste regime, em adotar medida que opera com a expectativa de circulação de bens ou serviços.

Ora, após a vigência da Lei nº 10.865/04, não há dúvidas acerca da possibilidade de cômputo da receita proveniente da venda de produtos sujeitos à incidência monofásica, ainda que submetida à suspensão, isenção, alíquota-zero ou não incidência das contribuições ao PIS e à Cofins, no cálculo do rateio proporcional de créditos em relação às referidas contribuições, apurado mensalmente e que impacta diretamente no volume de créditos a ser apropriado efetivamente pela pessoa jurídica.

O princípio da não cumulatividade do PIS e da Cofins, como qualquer outro “princípio”, tem o seu âmbito normativo, e, por isso, todo o ordenamento deve assegurar a sua efetividade e proteção (efeito de bloqueio). Assim, o direito de crédito deve ser interpretado com meio para imputar a máxima realização da não cumulatividade (efetividade); e qualquer restrição somente pode ser oposta por lei, quando não macule o conteúdo essencial do direito à não cumulatividade.

A própria Receita Federal do Brasil tem reconhecido a compatibilidade entre o regime de incidência monofásica e a apuração não cumulativa de PIS e Cofins, assentando a diferença entre o regime de incidência (ou de recolhimento) monofásico e a sistemática de apuração das referidas contribuições, conforme se vê em algumas Soluções de Consulta.

De igual modo, o Ato Declaratório RFB nº 4, de 07 de junho de 2016, esclareceu, com caráter vinculativo para a Administração, que a partir de 1º de agosto de 2004, com a entrada em vigor dos arts. 21 e 37 da Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, as receitas decorrentes da venda de produtos submetidos à incidência concentrada ou monofásica do PIS e da Cofins estão, em regra, sujeitas ao regime de apuração não cumulativa das referidas contribuições, salvo as disposições contrárias estabelecidas pela legislação.

Por força destes valores da não cumulatividade, a interpretação da tipicidade das hipóteses de fatos geradores de créditos deve conferir máxima efetividade ao princípio da não cumulatividade (ou otimização, no sentido atribuído por Robert Alexy), cuja restrição aos referidos fatos somente pode ser introduzida por lei expressa, o que não ocorre na espécie.

Logo, só há “proibição” da tomada de crédito quando a lei, não atos administrativos, o faça expressamente. Se não está proibido, interpreta-se de modo favorável ao direito de crédito, por força do comando constitucional. Como a não cumulatividade é um princípio constitucional (art. 195, § 12 da CF) exigido para vincular os tributos PIS e Cofins, e como estão em vigor os regimes gerais e especiais que prescrevem os meios para efetividade da não cumulatividade, toda e qualquer interpretação das leis somente pode concluir pelo direito de crédito, excetuado os casos de expressa proibição legal.

Em conclusão, a manutenção da cumulatividade nas cadeias submetidas ao regime monofásico de recolhimento do PIS e da Cofins, mediante a negativa de desconto de créditos às etapas intermediárias cujas aquisições sofreram a incidência concentrada das referidas contribuições, equivale a um aumento disfarçado da carga tributária imposta às empresas integrantes dos setores sujeitos à tributação monofásica, cujo ônus econômico fatalmente será repassado – senão todo, em grande parte – ao consumidor final.

Numa interpretação conforme a Constituição dos artigos das Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03, em relação à não cumulatividade na apuração do PIS e da Cofins, a aplicabilidade do regime de concentração de alíquotas impõe o direito ao reconhecimento do crédito na operação seguinte da cadeia. Situação diversa, implicaria contrariar o art. 150, II da CF (princípio da não discriminação), na medida que seriam tratados em modo diferente aqueles que suportam tributação nas etapas anteriores e estão desonerados nas de saída, por alíquota-zero.

Negar ao contribuinte o aproveitamento de saldos credores de PIS e Cofins, acumulados em virtude de vendas submetidas à alíquota-zero, porquanto inseridas na cadeia de incidência monofásica das referidas contribuições, com tributação concentrada na fase inicial do ciclo produtivo, implica afronta aos princípios da não cumulatividade e da não discriminação, além de afetação ao próprio princípio-garantia da segurança jurídica.


Ver: TORRES, Ricardo Lobo. A não cumulatividade no PIS/Cofins. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 53-74; TÔRRES, Heleno Taveira. Monofasia e não cumulatividade das contribuições ao PIS e COFINS no setor de petróleo (refinarias). In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.); CATÃO, Marcos André Vinhas (Coord). Tributação no setor de petróleo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 179-206; GRECO, Marco Aurélio. Não cumulatividade no PIS e na Cofins. In: PAULSEN, Leandro (Coord.). Não cumulatividade do PIS/PASEP e da Cofins. São Paulo: IOB Thomson; Porto Alegre: I.E.T. – Instituto de estudos tributários, 2004, p. 101-122; TOMÉ, Fabiana Del Padre. Natureza jurídica da ”não cumulatividade” da contribuição ao PIS/PASEP e da COFINS: consequências e aplicabilidade. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães; FISCHER, Octavio Campos. PIS – COFINS: questões atuais e polêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 535-555.

Cf. MOREIRA, André Mendes. A não-cumulatividade dos tributos. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2012, p. 453 e seguintes.

Para Alexy, os mandamentos de otimização comportam a indeterminação, se não dos pressupostos de aplicação (existência ou não de fato jurídico), da consequência jurídica, porquanto nas regras isso viria bem determinado, enquanto nos princípios haveria um amplo campo de possibilidades. Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 153.

 é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).