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A importância da análise econômica do Direito

A discussão sobre a relação entre a economia e o direito não é nova. Qualquer saber (conjunto de saberes, de conhecimentos formalizados) não jurídico que influencie a formação de normas jurídicas e de decisões jurídicas desperta a atenção quando se quer discutir as fronteiras de uma teoria da argumentação e da operacionalidade do direito.

Existiria apenas uma economia científica a orientar o aprimoramento do direito?

Toda análise econômica do direito deveria estabelecer e defender normativamente finalidades (econômicas) apriorísticas tendo o direito como mero instrumento?

Acreditamos que não.

Seria possível defender o uso ainda mais intensivo de economia no direito (um even more economic approach) sem com isso aderir às fileiras daqueles que creem que exista uma análise econômica que seria a melhor e a mais bem testada metodologia jurídica?

E que o uso ainda mais intensivo da economia significaria usar seus instrumentos de forma menos eloquente e ideológica do que a mera defesa de pautas políticas e mais técnica, em reforço (e não superação) à aplicação do direito posto vigente, já que nosso país está marcado pelo direito legislado (estado democrático de direito e separação dos poderes)?

Acreditamos e defendemos que sim.

A economia, assim como o direito, é marcada por abordagens e opiniões distintas. Inocente daquele que acha que a mera citação de um estudo econômico atribuirá ao seu estudo um caráter empírico.

Defendemos, entretanto, a importância do uso de abordagens econômicas para múltiplas situações de interesse jurídico. Porém, como a alusão a um termo como o da “análise econômica do direito” desperta paixões – daqueles que não a suportam e daqueles que pretendem ser seus representantes comerciais exclusivos, ciumentos e raivosos em redes sociais – bem vale uma digressão[1].

Levando em conta que tanto o direito quanto a economia buscam descrever vários fatos sociais (relações intersubjetivas e suas consequências) em comum (com maior ou menor abstração) a partir de vocabulários específicos e próprios e a partir de abordagens distintas, seria de se esperar que suas perspectivas pudessem ser úteis para uma compreensão mais ampla no âmbito restrito de cada campo.

Avançando em uma direção que seja mais profunda ou pretensiosa do que a mera pesquisa de contextos gerais (econômicos) para a compreensão de um determinado tipo de problema legal, há inúmeros exemplos históricos de análise econômica do direito, ou seja, professores dedicados a estudar os dois saberes de forma conjunta. Se adotarmos um sentido bem amplo de análise econômica do direito, podemos citar o primeiro grande movimento americano de law and economics do final do século XIX[2], algumas das escolas marxistas de direito e o ordoliberalismo alemão[3].

Mas o fato é que quando se menciona a expressão Análise Econômica do Direito (AED) ou Law and Economics (L&E) busca-se referir a um determinado método de estudo jurídico construído após o esforço inicial de alguns economistas e juristas que se valeram de técnicas econômicas neoclássicas para estudar assuntos jurídicos a partir de construtos derivados da teoria dos preços. Alguns temas já estavam bem próximos da preocupação econômica, como o direito concorrencial, regulatório e comercial; outros, contudo, pareciam mais distantes, como a responsabilidade civil, contratos, direito de família e direito processual. A origem desse movimento é identificada com o trabalho de Ronald Coase, a partir do ensaio “The Problem of Social Cost”[4] e pelos estudos de Calabresi, e ganhou projeção com a pesquisa realizada na Universidade de Chicago[5].

Antes desses esforços, pode-se dizer que os estudos que utilizavam a economia para a compreensão do direito estavam restritos à obtenção de determinados objetivos econômicos por meio de regras jurídicas (regulação). Após o advento desses novos construtos, o direito passa a ser analisado como importante instituição (na guinada da economia para o estudo das instituições)[6]. Uma forte reação acadêmica não demora a se fazer presente, já que essa abordagem passa a concorrer com outras ciências sociais aplicadas. Convém ressaltar, contudo, que o alvo de boa parte das críticas não é redirecionada àqueles primeiros estudos de Coase ou Calabresi, mas aos textos que se seguiram, notadamente o clássico Economic Analysis of Law, de Richard Posner, publicado em 1973, e isso porque a proposta passa a ser a de usar a economia como forma de aprimorar e influenciar a formação do direito, a partir da perseguição da eficiência econômica ou maximização de riqueza, o que corresponde a usar o direito como instrumento de atingimento de certas finalidades preestabelecidas[7].

Em linguagem direta, a análise econômica do direito tradicional (AED), ligada à Escola de Chicago[8], apresenta-se como teoria normativa a partir da eleição apriorística de uma finalidade (eficiência econômica em seu sentido bem específico, e poucas vezes compreendido, da Escola de Chicago)[9] a ser atingida pelo direito.

Nos Estados Unidos, o advento e posterior domínio dessa metodologia deve ser bem compreendido em suas especificidades, tais como: (i) a política econômica americana (advento do neoliberalismo, crise fiscal, inflação e ascensão ameaçadora da indústria japonesa), (ii) a metodologia americana (e seu certo apreço a abordagens instrumentais do direito – realismo e social science-oriented approach, p.e.) e (iii) um sistema jurídico típico de um commom law, em que o construtivismo jurisprudencial possui maior espaço.

A análise econômica do direito em sentido estrito seria, portanto, uma teoria orientada pela eficiência econômica lastreada no Ótimo de Pareto[10]. Nesse sentido, a interpretação do direito deveria buscar a eficiência econômica típica dos neoclássicos, ainda que isso, metodologicamente, esteja em colisão com as características tipicamente valorativas de algum direito concretamente referido (se pensarmos naqueles que defendem a transposição direta daquele método a outros países, incluindo os que possuem uma ordem econômica constitucional positivada, como o Brasil).

Em termos mais simples, a análise econômica do direito – em seu sentido mais tradicional – prega a utilização de técnicas de estudo das consequências econômicas das decisões jurídicas, sempre em termos de eficiência alocativa. O próprio fundamento do direito seria a economia em seu viés neoclássico, tendo como pressuposto a não intervenção estatal (sempre mais defendida do que adotada, já o sabemos) e a eleição da previsibilidade dos mercados como algo superior a outros argumentos (como os fundamentos e garantias constitucionais)[11]. Trata-se, portanto, de uma teoria normativa, ou seja, comprometida em afirmar como deve ser a aplicação do direito.

Ainda assim, não podemos reduzir a importância de uma análise econômica do direito a determinados expedientes típicos do pensamento norte-americano republicano do final do século XX, cujo argumento da eficiência econômica como elemento normativo e teleológico possuía uma finalidade prática e política nítida, de retomada do neoliberalismo do governo Reagan (“government was the problem and not the solution”) após o predomínio de décadas do pensamento keynesiano.

O uso de instrumentos analíticos econômicos pode ser extremamente importante – e essa é a nossa pauta – para o direito, de forma que evitaremos, aqui, as típicas bravatas metodológicas dos defensores de formas tradicionais de análise econômica em nosso país (aquelas referências mercadológicas do tipo: “a melhor metodologia jurídica”, “a mais testada” etc). Tampouco daremos atenção às provocações de seus defensores de que os juristas não devem ter medo de economia e que o direito deve ser aplicado de forma eficiente (?!), típicas das introduções de livros coletivos ou dos textos de alguns de seus autores.

Ao invés defender o uso do instrumental e do vocabulário econômico para influenciar como os aplicadores do direito deveriam julgar casos (complexos ou não) ou que tipo de ajuda a teoria dos jogos pode dar a quem se depara com possíveis sentidos possíveis da norma, chamarei a atenção para vários exemplos imprescindíveis da economia para a compreensão de desafios jurídicos.

Naquilo que nos interessa mais diretamente, a saber, o direito econômico, financeiro e tributário, o uso de instrumental econômico pode ser interessante, sobretudo em abordagens lege ferenda e na revisão de determinadas políticas econômicas concretas.

No âmbito tributário, salta aos olhos a necessidade de estudos econômicos que determinem os potenciais efeitos de um projeto de reforma tributária sobre a economia e sobre específicos setores. Quantas abordagens de matriz insumo-produto poderiam ser evocadas para, ao menos tentar, simular certos efeitos de uma determinada reforma sobre o mercado, a partir de análises de interdependência entre os setores (consistente em um sistema de equações lineares a representar a distribuição da produção de um setor em relação aos demais, na forma de insumos e demanda final, englobando o consumo das famílias, do governo, da formação bruta de capital fixo e das exportações). Seriam elas determinantes? Certamente, não. Basta ver os estudos que foram produzidos antes da transição para a não-cumulatividade do PIS e COFINS. Mas, os elementos oriundos de tais estudos podem fornecer subsídios ao legislador e à sociedade antes de uma reforma e podem ser preferíveis às intuições e armadilhas semânticas de qualquer sorte.

No âmbito da governança executiva das renúncias tributárias, o uso de abordagens econômicas como as da econometria pode ser rico em dar indícios do sucesso ou não de uma legislação já implementada. Basta citar os estudos formulados sobre a desoneração da folha de pagamento no âmbito acadêmico e no da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que subsidiaram a avaliação do gestor da política econômica e do próprio legislador.

A diferença básica, e podemos nos aprofundar nesses exemplos posteriormente nessa coluna – como já o fazemos em diversas palestras – é que, nesses casos, a economia ajuda na compreensão da legislação formulada ou a ser formulada, pode informar o legislador (eleito pelo povo brasileiro) e os juristas sobre potenciais ou prováveis efeitos decorrentes das medidas econômicas implementadas por meio de normas jurídicas (aquilo que outros chamam de políticas públicas).

Além disso, como ocorre com frequência no direito concorrencial da análise de concentrações econômicas, o uso mais intensivo da economia permite uma melhor instrução probatória para a devida aplicação do direito.

O que defendemos, contudo, é que esse instrumental econômico na aplicação do direito ao caso concreto faz parte do campo da teoria das provas e não o da decisão (fundamentação) jurídica, ou seja, a economia está ao lado da boa aplicação do direito vigente e  não a serviço da construção de um novo sistema jurídico (contra legem, por exemplo). E essa parece ser uma diferença radical.

O uso mais intensivo de economia significa, como o entendemos, o manejo transparente de como os modelos são calibrados, como as variáveis de interesse serão analisadas, quais serão os grupos de controle utilizados nas comparações de cunho estatístico e assim por diante. Em termos ainda mais diretos: uma ciência riquíssima e sofisticada como a economia (e também a matemática) jamais serviria a propósitos pré-estabelecidos e de cunho partidário ou de abordagens limitadas ao curto prazo. Por certo, elas podem ser cooptadas, mas nunca a ciência como um todo, apenas alguns autores, certamente mais engajados e com interesses específicos, além dos cegos pela ingenuidade da paixão pelo saber alheio.

Essa tem sido, portanto, a nossa defesa normativa: o uso cada vez mais sofisticado da economia no direito para bem compreender (i) os efeitos da promulgação de certas leis, (ii) a avaliação dos resultados das leis que estão postas e (iii) as provas de convicção utilizadas na construção de argumentos de justificação de decisões jurídicas (norma individual e concreta). Tal uso deve ser acompanhado dos pressupostos e limitações metodológicos de cada modelo (construção de árvores de decisão, econométrico, matriz insumo-produto, equilíbrio geral computacional etc), o que, em geral, são bem conhecidos e apresentados pelos economistas proficientes, e pouco estudados pelo idólatras adventícios do direito, que buscam construir um modelo metodológico genérico, que vê, na teoria dos jogos, um exemplo de livro de autoajuda a ensinar como bem decidir no caso de dúvidas.

 é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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Opinião: Project finance e a infraestrutura na Covid-19

As medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias para a contenção do novo coronavírus, vetor da Covid-19, tais como o isolamento social, trouxeram consigo um cenário de incertezas para os investidores nacionais e estrangeiros. No horizonte do mercado, um possível quadro de recessão econômica mostra que boa parte das expectativas para o ano de 2020 não serão cumpridas, o que faz com que soluções criativas e possíveis sejam buscadas pelos operadores do direito e especialistas em finanças para atravessar esse momento de turbulências.

O crescimento de uma economia demanda iniciativas do Poder Público e da iniciativa privada, não podendo prescindir de mecanismos jurídico-financeiros de grande complexidade técnica, os quais demandam a atuação multidisciplinar de profissionais das mais diversas áreas. Assim, levando-se em conta a necessidade de vultuosos investimentos em projetos não só de implantação, como também de recuperação e ampliação de obras de interesse público, cresce em importância a utilização de instrumentos financeiros como o project finance no segmento da infraestrutura.

Em especial para projetos de alta complexidade, caracterizados por grandes investimentos, dilatados prazos de execução e retorno gradual dos recursos envolvidos, a opção por operações coligadas e estruturadas se mostra como uma opção a ser considerada, no contexto da Covid-19.  

Inicialmente temos que os investimentos realizados em infraestrutura são essenciais para o exercício da atividade produtiva fundamental de uma sociedade, sem a qual o desenvolvimento econômico se mostra inviável. Portanto, quaisquer ações nos diversos segmentos que são naturalmente aceitos como integrantes de um conjunto de infraestruturas, sejam estas efetuadas de forma direta pelo Poder Público, ou incentivado e autorizado por este, devem ser encaradas como determinantes para a concretização de políticas públicas importantes para a sociedade.

Assim, como característica inata da infraestrutura na concretização de interesses econômicos de amplo espectro, tais realizações possuem elevada complexidade em seus projetos, implantação e execução, a demandar grandes somas de dinheiro. Os especialistas em finanças, desta forma, ao buscarem avaliar as mais adequadas maneiras de encarar a avaliação dos riscos envolvidos, as estimativas de custos, e as formas de financiamento logo perceberam a insuficiência do tradicional corporate finance, ou seja, alocação de recursos por meio de aportes de capital diretos, mediante subscrição e integralização de participações, e/ou de dívida, mediante empréstimo, tendo como base o patrimônio dos sócios para estes fins. Um novo e mais eficaz método se fazia necessário.

Temos, então, na década de 1960 o início da disseminação do project finance para o financiamento de grandes obras de infraestrutura. O caso clássico na literatura estrangeira é  a construção da Trans Alaska Pipeline, oleoduto de 1300 Km de extensão realizado por uma joint venture de 8 empresas petrolíferas para viabilizar o transporte de petróleo entre o norte do Alaska e o porto de Valdez, a um custo de US$ 8 bilhões à época, e o envolvimento de 28.000 técnicos.   

Temos no Brasil, também, casos emblemáticos de utilização do project finance para a realização de relevantes obras a partir da década de 1990, como por exemplo, o aumento da capacidade de geração de energia de Serra da Mesa Energia em 1993, com investimentos da ordem de US$ 800 milhões, a construção da Rodovia Via Lagos no Estado do Rio de Janeiro em 1997, e as melhorias da Ponte Rio-Niterói, com um financiamento de R$ 36 milhões pelo BNDES pelo prazo de 10 anos, com garantia sobre os  créditos decorrentes da cobrança do pedágio.  

Ora, o project finance, como técnica financeira por meio da qual a satisfação dos créditos dos credores não depende dos ativos dos sócios, ou dos devedores, mas sim do  fluxo de caixa do próprio projeto, o qual fica comprometido com o pagamento das dívidas e com o retorno do pagamento dos sponsors, mostra-se como a solução adequada para os complexos projetos de  infraestrutura. Neste sentido, o diferencial do project finance se encontra no valor econômico-financeiro do projeto financiado, que não se consubstancia nos ativos dos devedores, mas sim no fluxo de caixa do próprio empreendimento.    

O cenário econômico brasileiro atual é composto de diversos fatores inibidores de investimentos, tais como a baixa disponibilidade de recursos orçamentários públicos, e a crise financeira, política e institucional que vem assolando o país há alguns anos. Estes elementos vêm afastando a alocação de recursos nas grandes obras necessárias a retomada do desenvolvimento econômico, trazendo consigo a reboque a estagnação do setor produtivo, a queda na arrecadação bem como a redução drásticas dos indicadores de bem estar na população. 

Considerando esse tenebroso quadro de pandemia global, o project finance — ou financiamento de projetos, estrutura econômica e financeira que não se confunde com operações ordinárias de financiamento, apresenta-se como uma alternativa viável e eficiente, a fim de se executar projetos de grande cabedal e que possam gerar bons retornos, minimizando-se os fatores inibidores ao investimento mencionados.

O project finance em apertada síntese, consiste em um instrumento de cunho financeiro e jurídico de características singulares.

Sob a ótica econômica, caracteriza-se por ser um projeto de provisão de fundos a obras de infraestrutura, industriais e de prestação de serviços públicos de vulto de longo prazo, mediante investimento pelos sócios do empreendimento, por meio de aporte de capital em contrapartida a uma participação societária, o que usualmente representa uma pequena parte da inversão, e empréstimo realizado em favor de uma empresa que, na relação jurídica e negocial emanada da coligação contratual, caracterizará uma unidade econômica individualizada. A capacidade de geração de caixa, bem assim os lucros auferidos pela empresa investida e tomadora do empréstimo, constituirão a principal fonte de pagamento do mútuo, ao passo que os ativos e direitos pertencentes à empresa constituirão garantia exclusiva (ou colateral) da operação. É um modelo atrativo à iniciativa privada, pois permite que ela tome parte em grandes projetos sem comprometer as suas métricas econômicas e o seu balanço patrimonial, na medida em que ocorre a afetação econômica e jurídica de um patrimônio ao empreendimento.       

Por seu turno, sob o prisma jurídico, consiste em uma relação societária e contratual estruturada para uma finalidade específica, razão pela qual constitui-se uma sociedade de propósito específico, veículo através do qual o projeto será executado e a partir do qual forma-se a coligação contratual entre sponsors (financiadores), empreendedores, fornecedores, prestadores de serviços, colaboradores, por vezes o Estado e, ao final, os usuários e consumidores do benefício oriundo da obra ou dos serviços públicos. No que tange às garantias, via de regra elas são concedidas como non-recourse collateral, isto é, elas limitar-se-ão aos recebíveis, aos ativos e direitos diretamente relacionados ao empreendimento, não sendo possível o alcance do patrimônio dos sócios para além do montante integralizado na sociedade de propósito específico, elementos que constituem a afetação jurídica do patrimônio do veículo do empreendimento. Finalmente, ainda na seara jurídica, a coligação contratual formada entre os diversos stakeholders tem o propósito de segregar riscos e, portanto, diminuí-los aos envolvidos.

Uma operação de project finance objetiva limitar a responsabilidade dos acionistas e empreendedores, tecnicamente denominados patrocinadores, bem como maximizar o seu eventual retorno, segregar o risco da empreitada entre os acionistas patrocinadores, os financiadores externos, eventuais provedores de serviços terceirizados e fornecedores e, eventualmente, o Estado.

Afim de atingir tais objetivos, o project finance tem como uma de suas características básicas a segregação do empreendimento, ou seja, patrimônio (ativo, passivo e patrimônio líquido) especificamente destinado ao projeto, o qual não será imiscuído ao  das empresas acionistas patrocinadoras, o que é normalmente realizado por meio da constituição de uma sociedade de propósito específico — seja uma sociedade limitada ou por ações — de forma a limitar a responsabilidade dos patrocinadores. Geralmente, os patrocinadores integralizam capital correspondente a 20 e 30% do montante do investimento necessário à execução do empreendimento. Podemos citar ainda a alavancagem financeira, ou seja, contração de dívida por meio de mútuos ou outros instrumentos afins, provido por financiadores externos, o financiamento garantido pelo empreendimento, ou seja, as receitas, lucros e ativos do empreendimento e, eventualmente, outros instrumentos de garantia ou mesmo alguma garantia prestada pelos patrocinadores – esta última não permitirá que se satisfaça débitos ilimitadamente no patrimônio do patrocinador, e finalmente, uma rede de contratos coligados, os quais objetivam a alocação de riscos de uma forma muito precisa e definida.

Justamente por ser dotado destas características, o project finance tem relacionamento estreito com as Concessões de Parcerias Público-Privadas, as quais foram introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei n. 11.079/2004 como uma reação ao esgotamento dos modelos tradicionais de delegação das atividades do Estado para o setor privado em seus modelos clássicos no regime de concessões, permissões e autorizações.  Em conjunto, são poderosos instrumentos viabilizadores de políticas públicas aptos a angariar os volumosos recursos necessários ao aprimoramento e desenvolvimento da infraestrutura no Brasil.

Assim, a PPP constitui uma forma viável de cooperação entre o Estado e a iniciativa privada quando embasada em uma sólida estrutura de financiamento alavancada em project finance, se prestando a captar recursos econômicos de forma eficiente. Sua composição, com limitação de responsabilidade dos investidores e alocação adequada de riscos entre os envolvidos na relação negocial, é um grande incentivo a participação dos investidores nestes empreendimentos de forte interesse público.

Esta estratégia financeira, portanto, tem relação direta com a retomada do desenvolvimento econômico no país após a fase mais aguda da pandemia de Covid-19, pois, caso seja usada de maneira adequada para as contratações de grandes obras de infraestrutura, ela potencializará a entrada de capital no segmento, fomentando a concretização do interesse público.

Considerando, portanto, que o Brasil, em geral, carece de infraestrutura, tal como saneamento, rodovias, portos, aeroportos, energia, hospitais e meios de transporte, dentre outros, o project finance, juntamente com as Concessões de Parcerias Público-Privadas, cuida-se de um instrumento poderoso e eficiente à disposição do Estado e da iniciativa privada para tal fim, sendo imprescindível para o restabelecimento do curso do desenvolvimento e do crescimento econômico do país neste momento único e delicado de nossa história.

Marcos Roberto de Moraes Manoel é advogado coordenador da área de Direito Empresarial e dos Negócios da Nelson Wilians & Advogados Associados.

 é advogado, sócio coordenador do Núcleo de Direito Administrativo, Regulatório e Infraestrutura do Nelson Wilians & Advogados Associados.

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Lilian Maciel: “One man, one vote?”

Há décadas, observa-se uma incessante busca por parte das mulheres pelo reconhecimento de sua capacidade para assumir cargos e funções historicamente ocupados por homens. Não se pode negar a existência de muitos avanços e conquistas nesse sentido, seja na esfera pública, seja na privada.

Efetivamente, aquelas mulheres que se revelam destaque por suas excepcionais qualidades naquela área específica de saber são aprovadas em concursos públicos para cargos até então ocupados por homens. Da mesma forma, setores particulares, com a aguçada visão empresarial, buscam tais talentos para integrá-los a seu time.

Constituição Federal trouxe a igualdade como direito fundamental em seu art. 5º, inciso I. Por óbvio que, para não ser somente um mero escrito numa “folha de papel”, na clássica lição de Lassale, deve ser concretizado no plano material junto à sociedade e às instituições públicas e privadas.

Por isso que, a partir de concepções de um Estado voltado para prestações positivas, garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, foi que surgiram as festejadas ações afirmativas, como forma de minimizar as desigualdades entre os indivíduos.

Com relação às mulheres, pode-se citar a legislação eleitoral que estabelece o percentual de cargos eletivos que devem ser destinados a elas e que traz à tona a polêmica na adequação das políticas de cotas nas democracias, em que os cidadãos devem eleger, livremente, os seus representantes.

O senso comum também representa um excelente paradigma para se entender o quanto as pessoas reconhecem a capacidade, o valor, o denodo das mulheres ocupantes de cargos destacados no ambiente de trabalho e liderança.

Todavia, entre a vontade feminina, a lei, o senso comum e a realidade há um imenso vácuo quando se foca na efetiva participação da mulher em órgãos diretivos das instituições públicas, onde a composição numérica masculina é sobejamente superior à representatividade feminina. Nesta situação, se esvazia sobremaneira a chance de uma mulher, que se disponha a se candidatar, ocupar alguma função ou cargo nessas organizações públicas.

Cite-se como exemplo o Poder Judiciário nas eleições aos cargos diretivos e funções administrativas da instituição, que passa por um processo de escolha dentre os membros do órgão colegiado, composto por desembargadores. Traz-se de modo mais particular, a eleição recentemente ocorrida no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais composto por 140 desembargadores. Os votantes masculinos eram em número de 116 e as mulheres em 24. Havia 17 vagas dentre cargos diretivos e funções. O total geral de candidatos era de 35, sendo 31 homens e quatro mulheres.

Nesse contexto, vem a primeira indagação: alguma mulher foi eleita? Infelizmente não. Ainda que todas as mulheres votantes concentrassem seus votos em uma única candidata, nem assim ela teria chance de se eleger já que, relembrando, no tribunal mineiro o número de desembargadoras não atinge sequer o quantitativo de 30 membros.

O segundo questionamento que emerge é o seguinte: diante desse cenário, o que fazer? Será que as mulheres devem se recolher, se abster de colocar seus nomes na disputa a tais cargos majoritariamente ocupados pelo contingente masculino?

Acredita-se que não. Se assim o fizerem, estarão referendando o status quo, assumindo a atitude cômoda e omissa do não enfrentamento. Por certo que, se houver vontade política em realmente colocar as mulheres em uma disputa justa, o voto proporcional é a solução. Assim cada voto feminino deve ter um peso maior que o masculino. Não se pode institucionalizar, neste caso, a antiga regra “one man one vote” se, de fato, há uma busca pela efetiva participação da mulher nos órgãos colegiados e diretivos.

Cumpre destacar que, o que se pretende não são privilégios atrelados ao fato de ser mulher. Não se objetiva colocar a mulher na posição de pedir favores, benesses, concessões ou tantos outros substantivos que, na verdade, a diminuem como ser humano e a desqualificam profissionalmente.

O que se propõe está claramente postulado por John Rawls quando aprofunda a reflexão sobre a justiça distributiva. O filósofo traz o conceito de reciprocidade social, por meio da qual se expõe a ideia de igualitarismo democrático. Para ele, as instituições sociais devem ser estruturadas de modo que produzam um benefício maior aos menos favorecidos a longo prazo. Para isso, devem-se empregar arranjos institucionais alternativos.

Uma instituição política, para cumprir este papel, deve prover a liberdade a todos igualitariamente, a partir de promover justos termos de cooperação entre seus membros. Daí porque, a proposta é a de que se tragam soluções concretas, afirmativas, fundadas na equidade, para que se efetive a participação das mulheres e, em particular, no Poder Judiciário que, por ser a casa da justiça, deve ser o primeiro a tomar a frente.

Por que então, como primeira iniciativa, no âmbito dos Tribunais de Justiça, não se pensar na criação da seguinte ação afirmativa: “one man one vote, one woman more than one vote”? Fica a reflexão!

Lilian Maciel Santos é desembargadora do TJ-MG, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduada em processo civil pela Universidade Gama Filho e em gestão em Poder Judiciário pela UnB e professora de direito constitucional na Uni-BH.