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Bolsonaro representa ameaça à democracia, alerta Financial Times

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, tem muitas semelhanças com o dos Estados Unidos, Donald Trump, mas é mais “perturbador” em um aspecto: desiludido com o sistema democrático que o levou à presidência, Bolsonaro agora parece disposto a atacar as instituições que sustentam o país.

A opinião é do jornal britânico Financial Times, em editorial publicado neste domingo (7/6). O jornal destaca que quem soou o alarme sobre o risco que Bolsonaro representa para a democracia foi o decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello. 

Em mensagem privada, Celso comparou o Brasil à República de Weimar, na Alemanha, destacando que apoiadores de Bolsonaro estão “dispostos a destruir a democracia e substituí-la por uma ditadura abjeta”.

Poucos presidentes eleitos, destaca o Financial Times, considerariam a possibilidade de participar de um protesto que pede o fechamento do Congresso e do Supremo e defende intervenção militar. Mas é exatamente isso o que Bolsonaro fez — e mais de uma vez.

O jornal lembra que, desde o fim da ditadura militar, que deixou como sequelas uma dívida pública galopante e os terrores da perseguição política e tortura, o Brasil vinha avançando no caminho da democracia.

O fato de os militares terem se afastado da política garantiu a credibilidade das Forças Armadas, e a liberdade de atuação do Congresso, do STF e da imprensa levou ao afastamento de dois presidentes — o que é positivo, na visão do jornal.

Agora, no entanto, as instituições estão na mira de Bolsonaro. “Ele está particularmente irritado com uma investigação do STF em uma operação contra fake news que supostamente envolveria seus filhos”, destacou o Financial Times.

A preocupação dos brasileiros, prosseguiu, é a de que Bolsonaro esteja forçando uma crise entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário para justificar uma intervenção militar.

A queda nas taxas de aprovação do presidente e os problemas intermináveis da epidemia do coronavírus estão diminuindo as possibilidades de uma reeleição de Bolsonaro. Não há mais esperança de reforma econômica e os investidores estão deixando o país.

“Até agora, as instituições brasileiras resistiram ao massacre, com amplo apoio público. É improvável que o Exército venha a apoiar um golpe militar para transformar Jair Bolsonaro em autocrata. Mas outros países devem prestar atenção: os riscos para a maior democracia da América Latina são reais, e estão crescendo.”

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A importância da análise econômica do Direito

A discussão sobre a relação entre a economia e o direito não é nova. Qualquer saber (conjunto de saberes, de conhecimentos formalizados) não jurídico que influencie a formação de normas jurídicas e de decisões jurídicas desperta a atenção quando se quer discutir as fronteiras de uma teoria da argumentação e da operacionalidade do direito.

Existiria apenas uma economia científica a orientar o aprimoramento do direito?

Toda análise econômica do direito deveria estabelecer e defender normativamente finalidades (econômicas) apriorísticas tendo o direito como mero instrumento?

Acreditamos que não.

Seria possível defender o uso ainda mais intensivo de economia no direito (um even more economic approach) sem com isso aderir às fileiras daqueles que creem que exista uma análise econômica que seria a melhor e a mais bem testada metodologia jurídica?

E que o uso ainda mais intensivo da economia significaria usar seus instrumentos de forma menos eloquente e ideológica do que a mera defesa de pautas políticas e mais técnica, em reforço (e não superação) à aplicação do direito posto vigente, já que nosso país está marcado pelo direito legislado (estado democrático de direito e separação dos poderes)?

Acreditamos e defendemos que sim.

A economia, assim como o direito, é marcada por abordagens e opiniões distintas. Inocente daquele que acha que a mera citação de um estudo econômico atribuirá ao seu estudo um caráter empírico.

Defendemos, entretanto, a importância do uso de abordagens econômicas para múltiplas situações de interesse jurídico. Porém, como a alusão a um termo como o da “análise econômica do direito” desperta paixões – daqueles que não a suportam e daqueles que pretendem ser seus representantes comerciais exclusivos, ciumentos e raivosos em redes sociais – bem vale uma digressão[1].

Levando em conta que tanto o direito quanto a economia buscam descrever vários fatos sociais (relações intersubjetivas e suas consequências) em comum (com maior ou menor abstração) a partir de vocabulários específicos e próprios e a partir de abordagens distintas, seria de se esperar que suas perspectivas pudessem ser úteis para uma compreensão mais ampla no âmbito restrito de cada campo.

Avançando em uma direção que seja mais profunda ou pretensiosa do que a mera pesquisa de contextos gerais (econômicos) para a compreensão de um determinado tipo de problema legal, há inúmeros exemplos históricos de análise econômica do direito, ou seja, professores dedicados a estudar os dois saberes de forma conjunta. Se adotarmos um sentido bem amplo de análise econômica do direito, podemos citar o primeiro grande movimento americano de law and economics do final do século XIX[2], algumas das escolas marxistas de direito e o ordoliberalismo alemão[3].

Mas o fato é que quando se menciona a expressão Análise Econômica do Direito (AED) ou Law and Economics (L&E) busca-se referir a um determinado método de estudo jurídico construído após o esforço inicial de alguns economistas e juristas que se valeram de técnicas econômicas neoclássicas para estudar assuntos jurídicos a partir de construtos derivados da teoria dos preços. Alguns temas já estavam bem próximos da preocupação econômica, como o direito concorrencial, regulatório e comercial; outros, contudo, pareciam mais distantes, como a responsabilidade civil, contratos, direito de família e direito processual. A origem desse movimento é identificada com o trabalho de Ronald Coase, a partir do ensaio “The Problem of Social Cost”[4] e pelos estudos de Calabresi, e ganhou projeção com a pesquisa realizada na Universidade de Chicago[5].

Antes desses esforços, pode-se dizer que os estudos que utilizavam a economia para a compreensão do direito estavam restritos à obtenção de determinados objetivos econômicos por meio de regras jurídicas (regulação). Após o advento desses novos construtos, o direito passa a ser analisado como importante instituição (na guinada da economia para o estudo das instituições)[6]. Uma forte reação acadêmica não demora a se fazer presente, já que essa abordagem passa a concorrer com outras ciências sociais aplicadas. Convém ressaltar, contudo, que o alvo de boa parte das críticas não é redirecionada àqueles primeiros estudos de Coase ou Calabresi, mas aos textos que se seguiram, notadamente o clássico Economic Analysis of Law, de Richard Posner, publicado em 1973, e isso porque a proposta passa a ser a de usar a economia como forma de aprimorar e influenciar a formação do direito, a partir da perseguição da eficiência econômica ou maximização de riqueza, o que corresponde a usar o direito como instrumento de atingimento de certas finalidades preestabelecidas[7].

Em linguagem direta, a análise econômica do direito tradicional (AED), ligada à Escola de Chicago[8], apresenta-se como teoria normativa a partir da eleição apriorística de uma finalidade (eficiência econômica em seu sentido bem específico, e poucas vezes compreendido, da Escola de Chicago)[9] a ser atingida pelo direito.

Nos Estados Unidos, o advento e posterior domínio dessa metodologia deve ser bem compreendido em suas especificidades, tais como: (i) a política econômica americana (advento do neoliberalismo, crise fiscal, inflação e ascensão ameaçadora da indústria japonesa), (ii) a metodologia americana (e seu certo apreço a abordagens instrumentais do direito – realismo e social science-oriented approach, p.e.) e (iii) um sistema jurídico típico de um commom law, em que o construtivismo jurisprudencial possui maior espaço.

A análise econômica do direito em sentido estrito seria, portanto, uma teoria orientada pela eficiência econômica lastreada no Ótimo de Pareto[10]. Nesse sentido, a interpretação do direito deveria buscar a eficiência econômica típica dos neoclássicos, ainda que isso, metodologicamente, esteja em colisão com as características tipicamente valorativas de algum direito concretamente referido (se pensarmos naqueles que defendem a transposição direta daquele método a outros países, incluindo os que possuem uma ordem econômica constitucional positivada, como o Brasil).

Em termos mais simples, a análise econômica do direito – em seu sentido mais tradicional – prega a utilização de técnicas de estudo das consequências econômicas das decisões jurídicas, sempre em termos de eficiência alocativa. O próprio fundamento do direito seria a economia em seu viés neoclássico, tendo como pressuposto a não intervenção estatal (sempre mais defendida do que adotada, já o sabemos) e a eleição da previsibilidade dos mercados como algo superior a outros argumentos (como os fundamentos e garantias constitucionais)[11]. Trata-se, portanto, de uma teoria normativa, ou seja, comprometida em afirmar como deve ser a aplicação do direito.

Ainda assim, não podemos reduzir a importância de uma análise econômica do direito a determinados expedientes típicos do pensamento norte-americano republicano do final do século XX, cujo argumento da eficiência econômica como elemento normativo e teleológico possuía uma finalidade prática e política nítida, de retomada do neoliberalismo do governo Reagan (“government was the problem and not the solution”) após o predomínio de décadas do pensamento keynesiano.

O uso de instrumentos analíticos econômicos pode ser extremamente importante – e essa é a nossa pauta – para o direito, de forma que evitaremos, aqui, as típicas bravatas metodológicas dos defensores de formas tradicionais de análise econômica em nosso país (aquelas referências mercadológicas do tipo: “a melhor metodologia jurídica”, “a mais testada” etc). Tampouco daremos atenção às provocações de seus defensores de que os juristas não devem ter medo de economia e que o direito deve ser aplicado de forma eficiente (?!), típicas das introduções de livros coletivos ou dos textos de alguns de seus autores.

Ao invés defender o uso do instrumental e do vocabulário econômico para influenciar como os aplicadores do direito deveriam julgar casos (complexos ou não) ou que tipo de ajuda a teoria dos jogos pode dar a quem se depara com possíveis sentidos possíveis da norma, chamarei a atenção para vários exemplos imprescindíveis da economia para a compreensão de desafios jurídicos.

Naquilo que nos interessa mais diretamente, a saber, o direito econômico, financeiro e tributário, o uso de instrumental econômico pode ser interessante, sobretudo em abordagens lege ferenda e na revisão de determinadas políticas econômicas concretas.

No âmbito tributário, salta aos olhos a necessidade de estudos econômicos que determinem os potenciais efeitos de um projeto de reforma tributária sobre a economia e sobre específicos setores. Quantas abordagens de matriz insumo-produto poderiam ser evocadas para, ao menos tentar, simular certos efeitos de uma determinada reforma sobre o mercado, a partir de análises de interdependência entre os setores (consistente em um sistema de equações lineares a representar a distribuição da produção de um setor em relação aos demais, na forma de insumos e demanda final, englobando o consumo das famílias, do governo, da formação bruta de capital fixo e das exportações). Seriam elas determinantes? Certamente, não. Basta ver os estudos que foram produzidos antes da transição para a não-cumulatividade do PIS e COFINS. Mas, os elementos oriundos de tais estudos podem fornecer subsídios ao legislador e à sociedade antes de uma reforma e podem ser preferíveis às intuições e armadilhas semânticas de qualquer sorte.

No âmbito da governança executiva das renúncias tributárias, o uso de abordagens econômicas como as da econometria pode ser rico em dar indícios do sucesso ou não de uma legislação já implementada. Basta citar os estudos formulados sobre a desoneração da folha de pagamento no âmbito acadêmico e no da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que subsidiaram a avaliação do gestor da política econômica e do próprio legislador.

A diferença básica, e podemos nos aprofundar nesses exemplos posteriormente nessa coluna – como já o fazemos em diversas palestras – é que, nesses casos, a economia ajuda na compreensão da legislação formulada ou a ser formulada, pode informar o legislador (eleito pelo povo brasileiro) e os juristas sobre potenciais ou prováveis efeitos decorrentes das medidas econômicas implementadas por meio de normas jurídicas (aquilo que outros chamam de políticas públicas).

Além disso, como ocorre com frequência no direito concorrencial da análise de concentrações econômicas, o uso mais intensivo da economia permite uma melhor instrução probatória para a devida aplicação do direito.

O que defendemos, contudo, é que esse instrumental econômico na aplicação do direito ao caso concreto faz parte do campo da teoria das provas e não o da decisão (fundamentação) jurídica, ou seja, a economia está ao lado da boa aplicação do direito vigente e  não a serviço da construção de um novo sistema jurídico (contra legem, por exemplo). E essa parece ser uma diferença radical.

O uso mais intensivo de economia significa, como o entendemos, o manejo transparente de como os modelos são calibrados, como as variáveis de interesse serão analisadas, quais serão os grupos de controle utilizados nas comparações de cunho estatístico e assim por diante. Em termos ainda mais diretos: uma ciência riquíssima e sofisticada como a economia (e também a matemática) jamais serviria a propósitos pré-estabelecidos e de cunho partidário ou de abordagens limitadas ao curto prazo. Por certo, elas podem ser cooptadas, mas nunca a ciência como um todo, apenas alguns autores, certamente mais engajados e com interesses específicos, além dos cegos pela ingenuidade da paixão pelo saber alheio.

Essa tem sido, portanto, a nossa defesa normativa: o uso cada vez mais sofisticado da economia no direito para bem compreender (i) os efeitos da promulgação de certas leis, (ii) a avaliação dos resultados das leis que estão postas e (iii) as provas de convicção utilizadas na construção de argumentos de justificação de decisões jurídicas (norma individual e concreta). Tal uso deve ser acompanhado dos pressupostos e limitações metodológicos de cada modelo (construção de árvores de decisão, econométrico, matriz insumo-produto, equilíbrio geral computacional etc), o que, em geral, são bem conhecidos e apresentados pelos economistas proficientes, e pouco estudados pelo idólatras adventícios do direito, que buscam construir um modelo metodológico genérico, que vê, na teoria dos jogos, um exemplo de livro de autoajuda a ensinar como bem decidir no caso de dúvidas.

 é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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Interpretações equivocadas sobre intervenção militar

Já havia criticado o jornalista Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da “intervenção das forças armadas”, assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a critica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de “bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. “Lei e ordem” não significam “autorização para intervenção golpista”.

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado “A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar“, quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”.

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).