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Moraes e Barroso votam por continuidade do inquérito das fake news

A instauração do chamado inquérito das fake news não apresenta inconstitucionalidades, além de ter em seu escopo a investigação de ataques em massa, orquestrados e financiados com propósitos de intimidar os ministros do Supremo Tribunal Federal e seu familiares. 

O entendimento é compartilhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que votaram nesta quarta-feira (17/6) pela manutenção do inquérito. O julgamento continua à tarde.

Alexandre de Moraes foi designado para relatar o inquérito que apura ameaças contra os ministros do STF e seus familiares
Nelson Jr./SCO/STF

Aberto em março de 2019, por ordem do presidente do Supremo, Dias Toffoli, o inquérito apura ameaças contra ministros da corte. Ele é presidido pelo ministro Alexandre de Moraes e corre sob sigilo. Logo após anunciado, o partido Rede Sustentabilidade ajuizou uma ADPF para questionar a portaria que determinou a abertura do inquérito. 

Na última semana, apenas relator da ação, ministro Luiz Edson Fachin, tinha votado no julgamento. Para ele, o inquérito deve seguir, mas com delimitações. O ministro propôs dar interpretação conforme à Constituição para, dentre outros tópicos, definir que o inquérito deve ser acompanhado pelo Ministério Público.

Nesta sessão, o ministro Alexandre de Moraes acompanhou o relator sobre o cabimento da ação e constitucionalidade da portaria. No entanto, foi contra dar interpretação conforme, por entender que as medidas sugeridas por Fachin já estão sendo cumpridas. 

Relator do inquérito

Em seu voto, Alexandre explicou o que chamou de sistema acusatório híbrido, que permite inquéritos policiais e também autoriza hipóteses de investigações pré processuais. Mais de uma vez afirmou que a privatividade da ação penal pública concedida ao Ministério Público não deve ser confundida com as investigações penais. 

De acordo o ministro, a possibilidade que investigações criminais sejam executadas e conduzidas sem a provocação do MP não conflita com o sistema acusatório. Não existe, disse, o monopólio da investigação por parte das policiais judiciárias e a determinação de instauração de inquérito por parte do Ministério Público. 

Já acerca da instauração do inquérito em análise, Alexandre defendeu que é competência do presidente do Supremo a defesa institucional da corte e a garantia de independência de seus magistrados. “Coagir, atacar, constranger, ameaçar, atentar contra o STF e o Poder Judiciário, seus magistrados e familiares é atentar contra a Constituição Federal, a democracia, o Estado de Direito e a defesa intransigente dos direitos humanos fundamentais.” 

Alvo certo

Moraes apresentou trechos que estão na investigação, que envolvem ataques cibernéticos com e-mails institucionais, ameaças de morte e perseguição. Segundo ele, não se trata de meros xingamentos, mas sim tentativas de coação.

Um dos episódios citados foi o de uma advogada do Rio Grande do Sul que incitou o estupro. “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”, disse a advogada, segundo Moraes. “Em nenhum lugar do mundo isso é liberdade de expressão. Isso é bandidagem, criminalidade”, criticou o ministro.

Em outro caso, disse o ministro, foi registrado que um artefato explodiu em frente à casa de um dos ministros. Noutro momento, também foi rastreada na deep web que criminosos já tinham a planta do STF.

Segundo o ministro, outro trecho dizia: “Quanto custa atirar à queima roupa nas costas de cada filho da puta do STF que queira acabar com a prisão em segunda instância. Se acabar com a segunda instância, só nos basta jogar combustível e tocar fogo do plenário com os ministros dentro. Onde está aqui a liberdade de expressão?”

Por fim, o ministro citou terceiro trecho: “Já temos em poder armas e munição de grosso calibre. Esconda seus filhos e parentes bem escondido na Europa, porque aqui não vai ter onde se esconder. Faremos um tribunal em praça pública com direito ao fuzilamento de todos os parasitas e vagabundos estatais.”

Providência excepcional

O ministro Luís Roberto Barroso seguiu os votos proferidos até então e frisou que o inquérito deve ser interpretado de maneira restrita, sendo considerado uma “providência excepcional”. 

Barroso entende que o inquérito impugnado deve ser interpretado de maneira restrita
Nelson Jr./SCO/STF

No início de seu voto, Barroso afirmou que a regra geral é de que “crime contra ministro não reclama inquérito específico”. Resgatando os valores do princípio republicano, ele disse que todos se sujeitam às mesmas normas e que, portanto, eventual crime contra honra de ministro do Supremo deve ser apurado nas instâncias próprias.

No entanto, fez uma ponderação: o caso analisado trata de legítima defesa, vez que são “ataques massivos, orquestrados e financiados com propósitos intimidatórios de seus ministros”. Nenhuma sociedade civilizada pode tolerar esse tipo de conduta, disse.

Além disso, Barroso afirmou que não se pode confundir liberdade de expressão com outras formas de movimentos. As instituições, disse, “não podem ficar amedrontadas diante de movimentos que visem destruí-las. Ao redor do mundo, é visto uma grave erosão democrática pela incapacidade das instituições muitas vezes reagirem”.

Para ele, a portaria que instaurou o inquérito é válida, mas o objeto é demarcação feita por Fachin é muito importante. O ministro concordou com as modulações do relator, mas inicialmente vota apenas pela improcedência do pedido. Ele preferiu aguardar o decorrer do julgamento para a corte balizar se fará ou não a interpretação conforme.

Bodas de madeira

No início da sessão desta quarta, o presidente Dias Toffoli prestou homenagem ao ministro Luiz Edson Fachin, que completou cinco anos na corte.

Toffoli afirmou que o ministro é detentor de firmeza, independência, vigilância e imparcialidade. Em especial na condução como relator da “lava jato”, Fachin é conhecido por manter a discrição, pronunciando-se apenas nos autos do processo.

“Costumo afirmar que processo não tem capa e que juiz não tem vontade. O Ministro Edson Fachin é um magistrado que sintetiza essa máxima. Ao vestir a toga de juiz do Supremo Tribunal Federal, despe-se das próprias convicções e ideologias e segue à risca a lição de Norberto Bobbio de que a democracia se faz com a observância das regras do jogo democrático”, afirmou. 

ADPF 572

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Reforma tributária deveria evitar novas distorções

A forma federativa de Estado representa importante mecanismo de controle do poder, dentro da ideia de que a melhor forma de evitar abusos em seu exercício é dividindo-o. Trata-se de uma divisão vertical, com propósitos similares aos que inspiram, no plano horizontal, a separação de funções em Executivo, Legislativo e Judiciário. Acontecimentos recentes — no Brasil e nos EUA — talvez estejam mostrando a importância de tais instituições, e o valor da autonomia de governos estaduais diante de um ente central cujo chefe nem sempre subscreve as melhores práticas democráticas.

Mas para que exista federação, é, por definição, essencial a autonomia dos entes que a integram. E, para tanto, não bastam disposições constitucionais que atribuam competências legislativas ou mesmo materiais a tais entes, ou seja, que lhes atribuam faculdades decisórias. Se tais entes federativos não dispuserem dos recursos financeiros necessários à concretização de suas decisões, permanecendo assim dependentes de recursos a serem enviados (ou não) pelo ente central, essa autonomia desaparece. E, com ela, a própria forma federativa que dela depende. Em termos mais claros: de nada adianta formalmente permitir que o Estado tome decisões de modo autônomo em relação à União, se para dar concretude a essas decisões o Estado depender de recursos da União, a qual só repassará as quantias correspondentes se as decisões estaduais forem de seu agrado.

Tais noções devem ser lembradas quando se discute uma reforma constitucional nas competências para instituir tributos, e nas regras que cuidam da divisão dos recursos arrecadados com tais tributos. Diante delas, dependendo de como a reforma venha a ser levada a efeito, ela pode ser simplesmente inconstitucional, dado que a forma federativa é uma das cláusulas de imodificabilidade do texto constitucional vigente.

Muito já se discutiu, nessa ordem de ideias, a respeito da constitucionalidade, ou não, das propostas de emenda em trâmite no Congresso Nacional. Não é o propósito deste artigo simplesmente renovar tais questionamentos. Almeja-se tratar, ou pelo menos suscitar o enfrentamento, do mesmo tema central, mas por outro ângulo: o da diferença entre o mundo ideal presente na cabeça de quem elabora ou reforma um sistema constitucional, e a realidade institucional que se efetiva, à luz da legislação infraconstitucional e da jurisprudência do STF em torno de tais textos, nos anos seguintes, ao sabor das pressões políticas e dos inúmeros fatores sociais que passam a atuar.

Já se fez isso, aqui na ConJur, em relação a dois pontos que nos parecem muito sensíveis, relativamente ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a saber, a restituição do indébito e os equívocos da jurisprudência em torno do art. 166 do CTN, e as restrições que se criam para o aproveitamento de créditos, na sistemática da não cumulatividade, os quais passam a ser vistos pelo Fisco como um favor, um benefício, concedido com muita má vontade aos contribuintes (clique aqui). Desta vez, neste artigo, pretende-se fazer o mesmo, mas relativamente à questão federativa.

Discute-se se a supressão da competência dos estados-membros e do Distrito Federal, relativamente ao ICMS, e dos municípios, relativamente ao ISS, seria contrária ou não à forma federativa de Estado. Em um extremo, há quem imagine que qualquer alteração no desenho das competências seria inconstitucional. E, no outro, quem defenda que quaisquer alterações são possíveis, desde que se respeite um equilíbrio na divisão das rendas tributárias. Nesse último caso, os tributos poderiam até ser todos federais, desde que o produto da arrecadação fosse equitativamente partilhado, sem a possibilidade de interferências do ente central sobre essa partilha. Em posições intermediárias, há quem reconheça a importância, também, do uso do tributo como instrumento de política fiscal, sendo essencial portanto que os entes federativos periféricos — estados, Distrito Federal e municípios — tenham também competência para legislar sobre o tributo, não bastando garantir-lhes parcela da respectiva arrecadação. Essa é a razão pela qual a PEC 45 introduz uma complicada sistemática de alíquotas estaduais e municipais para o IBS, paralelamente à alíquota federal.

Sem entrar tanto no mérito das divisões propostas, o que se pretende destacar, neste artigo, é a necessidade de se pensar não apenas em uma divisão equilibrada no presente, ou no momento da aprovação da emenda. Como se espera do texto constitucional alguma longevidade, é importante fechar as portas — e as janelas — que poderiam levar a uma deformação dessa partilha. Não basta dividir o bolo de forma equânime, é preciso garantir que, se ele crescer, a divisão dos excedentes se dê também de maneira equitativa. Do contrário, com o tempo, o que parecia equilibrado pode começar a não ser mais.

Nossa história recente nos dá exemplo eloquente disso. Em 1988, a preocupação com a limitação do poder levou a um incremento do federalismo brasileiro. Municípios ganharam mais autonomia, e as rendas tributárias foram fortemente descentralizadas. A União perdeu impostos importantes sobre combustíveis, energia, comunicação, minerais e transportes, cujas bases passaram a ser alcançadas pelo antigo ICM, cuja sigla para tanto ganhou um “S”. Passou, ainda, a partilhar com estados e municípios parcela expressiva da arrecadação de seus dois principais impostos, suas principais fontes de custeio à época, o Imposto de Renda e o Imposto sobre Produtos Industrializados. Em adição a isso, os estados ganharam um novo imposto, o adicional estadual do imposto de renda (AEIR). E, os municípios, um imposto sobre vendas a varejo de combustíveis (IVVC).

O bolo, conquanto bem dividido, poderia crescer, por certo. Mas isso só poderia ocorrer por meio de impostos residuais, que, se criados pela União, deveriam ter o produto de sua arrecadação partilhado com estados. O equilíbrio na divisão seria mantido.

Esse era o cenário ideal, visualizado pelos que projetaram o sistema constitucional tributário originalmente promulgado em 1988. Mas o que houve, na sequência? Pequenas e paulatinas modificações, que isoladas não pareciam ter grande relevo ou impacto, mas que alteraram completamente a divisão inicial. E, com ela, a efetividade dada ao princípio federativo. É com isso que os reformadores do presente devem estar preocupados, e não apenas com a forma como a divisão ocorrerá no momento inicial de vigência do novo texto.

A Emenda Constitucional 3, de 1993, suprimiu a competência para estados criarem o AEIR, e para os municípios criarem o IVVC. E, em adição, a carga tributária passou a ser majorada, substancialmente, com o uso de “contribuições”, não partilhadas com estados e municípios. Não se criaram impostos residuais, mas contribuições, das mais variadas (sub)espécies: de seguridade, sociais “gerais”, de intervenção no domínio econômico. Figuras que deveriam ser excepcionais tornaram-se a regra, notadamente em virtude da complacência do Supremo Tribunal Federal para com tudo o que ostentasse esse rótulo.

Com efeito, o STF afastou a tese da “parafiscalidade obrigatória”, permitindo que as contribuições de seguridade, previstas no art. 195 da CF, apesar do disposto no art. 194, e no 165, III, da CF, fossem arrecadadas pela Receita Federal, e destinadas à conta única do Tesouro Nacional. Eventual tredestinação dos recursos, em momento posterior, seria ilegalidade que não invalidaria a cobrança da exação. Essa foi a senha para a União usar e abusar, na sequência, dessa figura tributária não partilhada, sob o pretexto de que estaria com elas a atender uma finalidade constitucionalmente determinada.

Como quase toda atuação estatal pode ser enquadrada em alguma ação social, ou de intervenção na economia, praticamente tudo poderia ser instituído sob tal rótulo. Daí o agigantamento da arrecadação federal, e o encolhimento do orçamento dos entes periféricos. Como pá de cal, passou-se a desvincular as receitas da União obtidas com tais exações (DRU), de modo que nem mais os fins (sociais ou interventivos) estavam a tentar justificar os meios (Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Contribuições e federalismo. São Paulo: Dialética, 2004, passim). Tudo foi feito aos poucos, e cada mudança, sozinha, não parecia maltratar tanto a federação, embora todas juntas tenham levado a um efeito desastroso, que jamais seria aceito se efetivado integralmente e em uma mesma oportunidade.

E o que isso tem a ver com as propostas atuais de reforma? A pergunta é retórica pois a leitora naturalmente já percebeu, e sabe que quem não respeita a História está fadado a repetir erros do passado. Não há como aplicar o processo de tentativa e erro para aperfeiçoar as instituições humanas se as tentativas — e os erros — anteriores forem esquecidos.

Em primeiro lugar, vale recordar que só se admitiu a invasão das bases imponíveis de estados e municípios (venda de mercadorias e prestação de serviços) por meio de tributos federais, porque se estava diante de “contribuições”, figuras supostamente representativas de um novo perfil de Estado, destinadas a finalidades constitucionalmente definidas. Nessa ordem de ideias, se PIS e Cofins vão ser liquidificadas com impostos estaduais e municipais, para se transformarem em um IBS, elas devem entrar na equação não como algo que o orçamento fiscal federal está “colocando na negociação”, simplesmente porque essas exações, originalmente, não eram fontes de custeio do orçamento fiscal da União. Elas cresceram e invadiram as materialidades dos entes periféricos com o uso de uma justificativa que desaparece quando assumem a real identidade de imposto e passam a atender pelo nome de IBS.

E mesmo que a divisão do produto da arrecadação, no âmbito do IBS, seja feita de forma equânime, já no texto constitucional, é importante fechar as portas para que a carga não aumente, no futuro, apenas em benefício de um dos entes federativos, notadamente da União. Por mais equilibrado que seja o rateio do produto da arrecadação do IBS, se a União puder, na sequência, por exemplo, continuar instituindo contribuições, sejam elas “sociais gerais”, ou de “intervenção no domínio econômico”, ou “de seguridade”, e a contar com a complacência da Corte Suprema quanto ao uso de tais figuras, esse equilíbrio logo será (novamente) perdido. O uso das contribuições nas décadas de 1990 e 2000 dá o testemunho de um erro que não precisamos repetir, principalmente se quisermos preservar algo que, nos dias atuais, se está mostrando tão importante, que é a autonomia dos entes subnacionais.


O tema foi objeto de rica discussão em evento realizado no dia 2/6/2020 (Youtube Live), pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), sob a coordenação de Eurico de Santi e Isaias Coelho, com exposição de Aristoteles Camara e Lina Santin, e debates suscitados por Luiz Bandeira e Raquel Machado.

 é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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Agronegócio está na mira da fiscalização tributária

É fato incontroverso que o setor do agronegócio tem sido de fundamental importância para o desenvolvimento econômico e social brasileiro, seja pela sua representatividade no PIB e nas exportações, como ainda pela própria vocação existente em nosso país para seu exercício.

Da mesma forma, não resta dúvida de que sua tributação, por força de suas peculiaridades e propósitos, inclusive, constitucionais, deve ser regulada de forma a ser fomentada e incentivada, o que se concretiza por meio de instrumentos fiscais de incentivos e tratamento diferenciado, o que não se confunde com privilégio.[1]

Apesar de sua importância e necessidade de instrumentos fiscais de fomento e tratamento peculiar, percebe-se que as medidas tributárias nos tempos atuais têm entre seus objetivos alterar esta realidade, extinguindo, inclusive, com claro risco de aumento da carga fiscal.

Isto pode ser comprovado, por exemplo, por projetos que pretendem revogar tributação da cesta básica com alíquota zero de PIS e COFINS, Projetos de Reforma Tributária que tratam o setor como todos os demais, ignorando suas peculiaridades, necessidades e importância[2], além dos próprios incentivos de ICMS como é o caso do Convênio 100/97.

Também não devemos olvidar do atual movimento dos Municípios, os quais, após receberem a delegação quanto à fiscalização e cobrança do ITR, tem realizado medidas arbitrárias quanto à exigência deste imposto, sobretudo, com relação ao VTN, ônus da prova, competência territorial e lançamentos de ofícios.

Todavia, o movimento de agravamento em face do setor do agronegócio vai além de tais exemplos, uma vez, atualmente, quem pretende apontar sua mira é a Receita Federal.

A Receita Federal, como de costume, anualmente, faz a divulgação de seu “Plano Anual de Fiscalização”, onde temos os números do ano anterior e as ações que pretendem efetivar no ano corrente.

Neste sentido, ao divulgar o plano de ação de 2020, a Receita Federal esclarece que, entre as principais operações, estaria o fortalecimento dos tradicionais cruzamentos de dados das pessoas físicas, onde cita mais especificamente “Omissão de rendimentos e despesas fictícias da atividade rural exercida pelo contribuinte, utilizando também as informações das notas fiscais eletrônicas para identificar eventuais divergências”.

Portanto, o produtor rural pessoa física, no plano anual de fiscalização da Receita Federal de 2020, entra como um dos principais focos de fiscalização, seja quanto às receitas e respectivas despesas.

Diante a informatização e nova realidade existente, uma vez que, atualmente, temos SPED, Livro Caixa Digital do Produtor Rural, Nota fiscal eletrônica, Declaração de Ajuste Anual de IRPF, Declaração de ITR, GFIP, E-social, além das informações bancárias resultantes de movimentações financeiras, o produtor rural ficará exposto à uma nova realidade e rigores fiscais.

Com isso temos, duas consequências relevantes: (i) — além das tentativas de mudanças na legislação revogando o tratamento diferenciado tributário ao setor, sofreremos um maior rigor quanto às operações fiscais voltadas ao produtor rural; e (ii) – necessidade de maior gestão e organização do ponto de vista fiscal no controle e apuração de seus tributos, bem como planejamentos tributários.

Deste modo, cabe este alerta, pois sabemos que, ainda, não são todos os produtores rurais que estão devidamente estruturados para enfrentar a severa atuação da fiscalização tributária, especialmente, da Receita Federal.

E, por outro lado, o foco da não se encerra em face do produtor rural, na medida em que também consta entre os objetivos principais da fiscalização em 2020:

“Planejamento tributário internacional abusivo e erosão da base tributária do IRPJ

As exportações de commodities apresentam valores relevantes em nosso país. Entretanto, as informações declaradas revelam que os maiores adquirentes de tais mercadorias se localizam em paraísos fiscais ou países de tributação favorecida, enquanto que os destinos dos produtos nos embarques são efetivamente os maiores consumidores, em prática conhecida por “triangulação na exportação”.

Tais operações triangulares visam à transferência do lucro operacional para que sejam tributados em paraísos fiscais ou países com tributação favorecida, deixando-se de pagar o Imposto de Renda Pessoa Jurídica devido no Brasil.

Foram identificados contribuintes que realizam 100% de suas exportações por meio de tais triangulações simulando operações mercantis justamente para transferir ao exterior o lucro das verdadeiras operações de compra e venda.”

Naturalmente, por sua vocação exportadora e serem os produtos rurais em sua maioria comodities, mais uma vez o agronegócio ficará exposto à fúria da Receita Federal no tocante a tais operações, supostamente, denominadas de “planejamento tributário abusivo”.

Possível, assim, concluir que, infelizmente, um dos principais setores econômicos nacionais, o qual deve ser fomentado e garantido, tem sido objeto de “ataques tributários”, os quais somente prejudicarão à própria sociedade, economia nacional e participação do Brasil no cenário internacional.

Da mesma forma que muitos outros países tem orgulho e defendem suas vocações, está na hora de termos uma verdadeira defesa de um dos principais (para não dizer principal) segmentos econômicos do Brasil, com relevância inquestionável no cenário internacional.    

[1] https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio

 é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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Aith e Fuziger: A Lei de Abuso de Autoridade e o abuso

O genial escritor francês Paul Valéry certa feita afirmou que “o poder sem abuso perde o encanto”. Nesse sentido, é inequívoco que na esfera pública os poderes investidos a indivíduos não raro geram uma trajetória perniciosa que parte da posição de autoridade para uma concretude em atos autoritários. Tal movimento deturpa o poder estatal, que tem por premissa o seu exercício numa perspectiva técnica, em desencanto — pois sem o deslumbramento típico dos excessos — nunca ensimesmado e jamais direcionado a finalidades ilegítimas a seus estritos propósitos.

Em virtude disso, todo o ordenamento jurídico está permeado por normas que visam a assegurar a contenção do comportamento dos agentes públicos, sendo certo que vasta parcela desse conteúdo está insculpido na Constituição Federal brasileira, profundamente inspirada na limitação do arbítrio estatal como uma necessidade de primeira ordem ao Estado democrático de Direito. Para tanto e inclusive, a noção de freios e contrapesos entre os poderes constitucionais é fundamental na incumbência de balancear forças e limitar abusos.

Ocorre que o equilíbrio nos arranjos entre os três poderes tem uma conformação frágil, notadamente ainda mais em virtude de crises institucionais que marcam o Brasil nos últimos tempos. Há alguns dias, tal contenda ganhou um sensível marco.

Trata-se da decisão recente do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello que determinou o levantamento do sigilo da fatídica reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril. Tal decisão continua reverberando na imprensa e nos meios políticos e jurídicos. Isso porque muitos correligionários do presidente Jair Bolsonaro apontaram que ela teria ofendido o artigo 28 da Lei 13.869/2019 (o próprio presidente publicou um tuíte com a transcrição do dispositivo alguns dias após a decisão). Tal artigo dispõe, in verbis: “Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado. Pena: detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Após alguns dias e muitas opiniões depois, é possível sintetizar — depois desse breve, contudo necessário, período de maturação do debate — uma posição desapaixonada sobre o tema, nos estritos limites da dogmática penal e dos preceitos constitucionais atinentes.

Nesse sentido, a decisão do ministro Celso de Mello não perfectibiliza o delito em tela. Há pelo menos três razões indubitáveis (que seriam suficientes, per si, mas quando somadas demonstram que a tentativa de imputar o delito à conduta em questão é uma inequívoca teratologia) para tanto:

O tipo penal em comento exige que a divulgação seja exibida “expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”. É despiciendo alongar-se no seguinte argumento: tratava-se de uma reunião entre o presidente, seu vice e seus ministros no desempenho de suas funções. Não há qualquer exposição da intimidade, da vida privada ou aviltamento da honra ou imagem, eis que o conteúdo divulgou falas proferidas justamente por tais indivíduos.

Não estão presentes os elementos subjetivo do injusto, previstos no §1º do artigo 1º da Lei de Abuso de Autoridade. O referido disposto estabelece “que constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Destarte, finalidade específica de para a configuração dos crimes de abuso de autoridade são: 1) prejudicar outrem; 2) beneficiar a si mesmo; 3) beneficiar a terceiro; 4) mero capricho; e 5) satisfação pessoal. Para configuração dos delitos da Lei de Abuso de Autoridade exige-se um dos elementos específicos do injusto, sob pena de atipicidade do delito.

O ministro Celso de Mello em sua decisão pontuou que “ao assistir ao vídeo em questão e ao ler a transcrição integral do que se passou em referida assembleia ministerial, que não foi classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada (Lei nº 12.527/2011, arts. 23 e 24), constatei que, nela, parece haver faltado a alguns de seus protagonistas aquela essencial e imprescindível virtude definida pelos Romanos como ‘gravitas’, valor fundamental de que decorriam, na sociedade romana, segundo o ‘mos majorum’, a  ‘dignitas’ e a ‘auctoritas’. Essa é uma das razões pelas quais um dos investigados, o Senhor Sérgio Fernando Moro, pretende, a partir do exame do contexto global em que se desenvolveu semelhante reunião ministerial, identificar e revelar, na busca da verdade em torno dos fatos, os reais motivos subjacentes à conduta presidencial.

Estender-se o manto do sigilo aos eventos que só a liberação total do vídeo seria capaz de revelar implicaria transgredir o direito de defesa de referido investigado, que deve ser amplo (CF, artigo 5º, LV), além de sonegar aos eminentes senhores ministros do Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102, I, ‘b’), aos ilustres senhores deputados federais (CF, artigo 51, I) e aos protagonistas desse procedimento penal o conhecimento pleno de dados relevantes constantes da gravação em referência, vulnerando-se, frontalmente, desse modo, o dogma constitucional da transparência, instituído para conferir visibilidade plena aos atos e práticas estatais”.

Portanto, a fundamentação construída pelo ministro afasta peremptoriamente as finalidades estampadas no artigo 1º, §1º, da Lei 13.869/2019.

Por outro lado, não se pode olvidar que o artigo 1º, §2º, estabelece uma excludente consistente na impossibilidade de se atribuir “crime de hermenêutica”, que assim dispõe: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Trata-se de mais um argumento que afasta em absoluto qualquer vislumbre de incriminação.

Assim, a tentativa de subsunção pela simples análise da descrição típica do artigo. 28 da Lei 13.869 é uma flagrante atecnia, eis que deixa de lado pressupostos e ressalvas previstas no próprio corpo do diploma.

É certo que a Lei 13.869 trouxa uma alvissareira perspectiva de contenção dos frequentes e intoleráveis abusos de agentes públicos. No entanto, a efetividade de tal diploma em tal propósito está imprescindivelmente ligada à sua correta aplicação: intransigente e enérgica quanto às condutas típicas de agentes públicos que abusam de poder e deturpam a razão de ser de suas funções (qual seja, servir à sociedade); com esmero técnico, de modo a não ser instrumentalizada de forma oportunista de modo a constranger agentes públicos que atuam com correção.

Do contrário, o potencial benéfico da lei dará lugar a um cacofônico e pernicioso fenômeno da Lei de Abuso de Autoridade como um instrumento de abuso. Esse parece ter sido o sentido da referência por alguns à lei no episódio da decisão do ministro Celso de Mello: o desiderato de intimidação e enfraquecimento do dever de atuação de um proeminente representante de um dos poderes constitucionais, visando a um desequilíbrio de forças, o que, conforme a História é pródiga em demonstrar, é terreno fértil do arbítrio e autoritarismo.

 é especialista em Direito Criminal e Direito Público e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito.

 é advogado, PhD e mestre em Direito Penal pela USP, PhD em Estado de Direito e Governança Global pela Universidade de Salamanca e professor da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.