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Clara dos Anjos e as profecias de um triste visionário

O escritor fluminense Lima Barreto dedicou o romance Clara dos Anjos à memória de sua mãe, Amália Augusta. Neta de Maria Conceição, que nasceu na África e que chegou no Brasil em um navio negreiro. Amália foi criada e educada por uma família de proprietários rurais. Chegou a dirigir um colégio para moças no Rio de Janeiro. Amália faleceu em dezembro de 1887. Lima tinha seis anos. A ausência da mãe e uma melancolia decorrente da perda marcaram a personalidade do escritor. A avó paterna de Lima Barreto, Carlota Maria dos Anjos, foi escrava. Chegou ao Brasil a bordo de um navio negreiro.

Pode-se especular que a personagem central de Clara dos Anjos possa representar, em muitos aspectos, reminiscências dessas duas mulheres: a mãe e a avó do escritor, ainda que essa referência não seja direta. Clara pode simbolizar o horizonte e as perspectivas limitadas que o Rio de Janeiro no início do século XX oferecia a mulheres de ascendência africana, marginalizadas em uma sociedade autoritária e marcadamente aristocrática. Além do que, era uma sociedade extremamente racista.

O enredo é simples. Clara dos Anjos era uma mulata, filha de um modesto carteiro (Joaquim) e de uma dona-de-casa, Engrácia, limítrofe na compreensão do mundo. A mãe de Clara era uma mulher medíocre, medrosa, distante da realidade, protetora e que raramente saia de casa. Seu mundo se concentrava nas paredes da residência, na submissão ao marido e na vigilância da filha. Clara praticamente não tinha contato com o mundo externo, e certamente seria uma presa fácil para os escroques conquistadores sedutores que então havia. Foi o que aconteceu.

Cassi (que anexou Jones a seu nome, invocando ascendência inglesa) é o vilão. Filho de Maneco (um pai consciente, que o expulsou de casa) e de Salustiana (a mãe protetora, para quem o filho não poderia se casar com as mulheres simples que seduzia). Deve-se entender o comportamento do vilão, Cassi, à luz das disposições penais à época vigentes. Vigorava o Código Criminal de 1890. O defloramento de mulher menor de idade (como Clara, que tinha 17 anos), mediante sedução, engano ou fraude, suscitava prisão de um a quatro anos. O estupro de mulher honesta (sic) justificava prisão de um a seis anos. Se a violentada fosse prostituta a pena era bem menor, caía para seis meses a dois anos. O ambiente era tão preconceituoso que até juízes achavam que Cassi não deveria se casar com as moças pobres que seduzia. Cassi tocava violão, cantava modinhas e registrava dez defloramentos. Não tinha limites. Seduzia mulheres casadas, engravidou a filha da empregada da casa, cuja mãe, envergonhada, suicidou-se. O marido de uma das mulheres que Cassi seduziu assassinou a mulher.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto denuncia a imprestabilidade da educação que moças de classe média baixa recebiam. Lima afirmava que a educação de Clara, cheia de mimos e vigilâncias, fora totalmente equivocada. Clara deveria ter sido educada, segundo o narrador, para que se defendesse e se batesse contra todas as pessoas que se opusessem à sua elevação social e moral.

Porém, de algum modo, Lima questiona o nível de responsabilidade de Clara para com os fatos que viveu, adiantando-se a uma discussão de política criminal e de criminologia (ocorrida a partir de meados do século XX), relativa ao papel da vítima no contexto do crime. Cassi teria se aproveitado de um mórbido estado d’alma, que era uma característica de Clara, a vítima. Lima Barreto às vezes nos faz perguntar se Clara, e sua família, teriam alguma responsabilidade nos eventos. Não que o narrador defenda o agressor. Pelo contrário. Tem-se a impressão que compartilham um universo desprovido de opções melhores.

Os personagens são típicos representantes da vida suburbana carioca do início do século XX. Joaquim dos Anjos, pai de Clara, um carteiro sem muitas pretensões. Engrácia, mãe de Clara, incapaz de atitude própria. Clara, sonhadora e distante da vida real. Dona Margarida, que instruía Clara nas costuras e bordados. Marramaque, o fiel amigo de Joaquim, padrinho de Clara. Cassi Jones, o vilão sedutor. Dona Salustiana, a mãe que superestima o filho. Maneco, pai de Cassi, realista, a ponto de expulsar o filho de casa. Praxedes, o rábula. Arnaldo, o ladrãozinho de galinhas. Nair, a seduzida que terminou na prostituição. Menezes, o dentista prático.

Em Clara dos Anjos o autor também tratou criticamente de outros assuntos, recorrentes em sua obra. Lima Barreto insurgiu-se contra funcionários públicos. Continuou sua cruzada contra os bacharéis e os rábulas. Na figura do Dr. Praxedes, um típico rábula, pintou um personagem obcecado com o mundo dos advogados e juízes. Praxedes só falava em processos, embargos, exceções de incompetência, e todo esse palavrório do fórum. Denunciou o sistema eleitoral vigente, que descreveu como “puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloquentes manifestações eleitorais”.

Censurou o orgulho das mulheres de classe média suburbana, a exemplo da mãe de Cassi, que “tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos”. O orgulho de Salustiana vinha do fato de ter um irmão médico do Exército e de ter estudado no Colégio das Irmãs de Caridade. Não admitia que seu filho fosse um operário, porque sobrinho de um doutor. As irmãs de Cassi, Catarina e Irene, “sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque se julgavam prestes a ‘se formar’, a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pelo indigesta Escola Normal”.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto descreve o subúrbio, que reputava como um “refúgio de infelizes”. Era o lugar dos “que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal”. Lima Barreto contrastava o subúrbio ao centro do Rio de Janeiro, que descrevia de um modo mais ameno e muito mais entusiástico.

Clara dos Anjos é um romance de crítica social, certamente marcado por rancores e referências da trajetória do autor. Lima Barreto não propõe lições de ordem moral ou de índole salvacionista. Simplesmente reproduz um ambiente cheio de insatisfações e frustrações, que bem conhecia, porque as vivia. Um mundo de protagonistas de pequenos expedientes e de funcionários públicos, onde tudo conspira contra o espírito.

Clara dos Anjos é um livro atual. Os problemas que relata são estruturais, típicos de uma sociedade que reluta em compreender seus desajustes e desacertos e que confunde democracia com o ritual do voto, bem-estar social com pleno acesso telemático, informação qualificada com mensagem de WhatsApp, estatística com calúnia, liberdade com escárnio e história com estória. Com o benefício do retrospecto, Clara dos Anjos é profecia de um triste visionário, a apropriar-me do título de uma obra-prima (de Lilia Moritz Schwarz) que trata da vida do reconhecidamente triste Lima Barreto.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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Covid-19 traz lições históricas a tomar

Já se escreveu (Antonio Manuel Hespanha) que a história é um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Tudo se exemplifica, se justifica, se explica. Para tudo há uma lembrança pronta. Eu sempre resisti à armadilha posta por aqueles que acham que a história traz lições e que se repete. É o pensamento de Cícero, o tribuno romano que acreditava que a história era a mestra da vida. Será? Pensava que não. Acho que chegou a hora de mudar de ideia. Penso agora que sim, que a história também ensina e ilustra. Em tempos de Covid-19 há lições históricas a tomar. Quais?

Além de ação (muita ação) o enfrentamento da Covid-19 sugere alguma (muita) reflexão. Há problemas historiográficos, comparativos, dramatúrgicos, políticos (principalmente), epistemológicos (de paradigmas científicos). A Covid-19 sugere também algumas leituras, isto é, para privilegiados que podemos substituir o deslocamento e o trânsito e a espera pela paz dos livros.

Há títulos disputadíssimos. De algum modo são livros que tratam de pestes e de mortes incontáveis. Nessa lista, “A Peste”, de Albert Camus, “O Decameron”, de Giovanni Boccaccio, “Morte em Veneza”, de Thomas Mann. Cristiano Paixão, competentíssimo professor de História do Direito, inclui ainda “O ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago. Nesse último livro há dois personagens que sobressaem: a mulher do médico e o cão das lágrimas. Simbolizam a solidariedade, a compreensão para com o outro e a disponibilidade permanente para ajudar. Precisamos imitar a mulher do médico e o cão das lágrimas. Necessitamos de solidariedade e de compreensão.

Quanto ao tema da história há semelhanças e paralelos com fatos passados que chamam a atenção, e que dão ao registro histórico uma autoridade inegável. Refiro-me ao problema da varíola e a revolta da vacina (1904), à gripe espanhola (1918) e ao surto de meningite (meados da década de 1970). Pode-se compreender nosso tempo e nossos horrores no contexto dessas experiências? Claro que sim. Tenho a impressão de que sempre houve negacionistas, ignorantes, brutamontes, aproveitadores da desgraça. Mas também há bem-intencionados. Identifiquemos e dialoguemos com essas figuras. Apoiemos essas últimas, repudiemos aquelas primeiras.

Em 1904 o então presidente Rodrigues Alves (que morreu de gripe espanhola 15 anos depois) contou com uma trinca imbatível: Pereira Passos (o prefeito do Rio, que havia estudado a reforma do Barão Haussmann em Paris), Lauro Müller (que coordenou a reforma do porto do Rio de Janeiro) e Oswaldo Cruz (diretor da saúde pública, o tirano da vacina, como seus críticos o definiam). No combate à varíola a vacinação tornou-se obrigatória.

Contra a ciência e a vacina estavam os positivistas, os florianistas, Lauro Sodré e o próprio Rui Barbosa. Quem diria, Rui, a (suposta) mente mais iluminada da época, condenava a vacina, não admitindo se envenenar, com a introdução, em seu corpo “de um vírus cuja influência existem [iam] os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Estava de olho nas eleições, que sempre perdeu. Já havia a necropolítica, bem antes da criação desse neologismo macabro. A má política já tinha a mania de negar a ciência.

O combate à febre amarela foi conspurcado com uma obstinada perseguição de pobres que habitavam o centro do Rio de Janeiro, o que justificou a revolta popular. Bondes incendiados, barricadas e muitas prisões. A necropolítica aproveitou o momento para negligenciar o pobre. Nenhuma novidade.

Sigo com a “influenza”. A censura em tempos de epidemia explica, inclusive, o batismo da gripe de 18-19 como “espanhola”. Era o tempo da primeira guerra mundial. Os países envolvidos no conflito não noticiavam as mortes pela gripe; era propaganda negativa. A Espanha, porque fora da guerra, não se submetia a essa regra. Os jornais espanhóis tratavam do assunto, o que resultou na identificação da gripe com o país. A gripe espanhola é, assim, mais um exemplo do odioso controle de informações, em desfavor da população. A gripe era um segredo de guerra. Matou mais do que os campos de batalha. A necropolítica política desinforma. Ilude.

Nas primeiras páginas do recentemente lançado “Metrópole à beira-mar” o escritor Ruy Castro narra com precisão de pormenores a tragédia da gripe no Rio de Janeiro. Um contemporâneo da tragédia, Lima Barreto, não tratou da gripe espanhola em suas crônicas, talvez porque internado pelo alcoolismo. No entanto, em seu Diário, registrou a violência policial na revolta da vacina. Lê-se em outro contemporâneo, João do Rio, na “Alma encantadora das ruas”, uma crônica, “Sono calmo”, que descreve o ambiente dos cortiços, cujos proprietários alugavam esteiras para dormir. Os locatários foram sistematicamente dizimados pelas autoridades. Pedro Nava, o grande memorialista, conta que viu uma criança tentando mamar no seio da mãe, morta pela gripe, caída no chão. Gilberto Amado, intelectual e político sergipano que vivia no Rio, conta-nos que via defuntos jogados em caminhões.

A Biblioteca Nacional disponibiliza em sua hemeroteca digital os jornais da época. Sugiro a leitura dos classificados do Jornal do Brasil. Vendiam todos os tipos de remédios milagrosos. Pregava-se o uso do sal de quinino, que na verdade matava por intoxicação. Difundia-se o uso da aspirina, que em doses cavalares era letal. Tragédias se equivalem.

Há também uma dramaturgia que acompanha essas levas de mortes maciças. Parece-me a dramaturgia de toda tragédia. Nega-se o fato, resiste-se a um novo cotidiano, o que fundamental para a retomada da situação perdida. Essa negação se fazia por intermédio da divulgação de informações falsas, a exemplo de um reclame do sindicato dos trabalhadores do comércio no Rio, que afirmava que a gripe era benigna e que apenas atacava os mais fracos. Recomendavam um purgante como remédio certeiro.

No caso da meningite, e nesse caso meu registro é biográfico, e não bibliográfico, recordo-me que se confundia meningite com insolação, retomando-se um determinismo sanitário paliativo. Não se explicou o que houve. E também não se perguntava. Por quê?

Uma reflexão em torno dessas três epidemias (varíola, gripe espanhola e meningite) pode permitir o alcance de denominadores comuns de orientação para qualquer forma de ação no momento presente: informação e precaução. A boa informação (o que de imediato exclui a mensagem do zap do tio mala que todos temos ou somos) exige que nos preocupemos com as fontes. Quem disse? Quem escreveu? O que de fato foi dito? O que de fato foi escrito? Há provas ou outras referências? O uso malicioso de informações, nesse campo sanitário, é imperdoável. E se dúvidas há, a precaução é guia seguro para a ação segura.

No limite, a precaução justifica o medo. Filho de Ares e de Afrodite, o Medo era também uma figura mitológica que acompanhava o deus da guerra (Ares) nas batalhas. Apavorava os inimigos, que em desespero fugiam. O medo tem uma função estabilizadora de nossas defesas. Não se confunde com a covardia. A lição histórica que se tira dos fatos aqui narrados, parece-me, consiste em pensarmos que viver cautelosamente, e de par com a informação qualificada, pode ser, em momento crítico, um meio adequado para vivermos mais, e melhor, bem como para acudirmos quem precisa de ajuda nessa hora difícil. E também no limite, como a mulher do médico e como o cão das lágrimas, precisamos ser solidários.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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A biblioteca nacionalista de Policarpo Quaresma

O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Que livro! Lima Barreto era um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre, um insuspeito, para esse tipo de assunto. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias. Na verdade, pode-se pensar no triste fim de Lima Barreto. Muito triste.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que o Policarpo é um Dom Quixote nacional. O Policarpo era um idealista, acreditava no país. Porém, não se dava conta de que tudo e de que todos desdenhavam qualquer projeto nacional sério e genuíno. Era um nacionalista diferente de alguns que há hoje, e que por vezes assumem um nacionalismo de intimidação e de desconsideração para com a ciência e para com qualquer pensamento mais sério.

O nacionalismo era um traço da personalidade do Policarpo, enquanto muitos hoje se dizem nacionalistas, em vários lugares do mundo, justamente por uma completa ausência de resquícios de personalidade. É um nacionalismo tampão. Um nacionalismo bovino, ao qual o Policarpo opunha um nacionalismo de ação e de esperança, ainda que muitas vezes exagerado, a exemplo do esforço para que o tupi fosse a língua nacional, em substituição ao português falado no Brasil.

O nacionalismo do Policarpo era honesto, por vezes ingênuo, mas sempre comprometido com a busca de soluções factíveis e razoáveis para o enfrentamento de nossos problemas. Era um nacionalismo marcado pelo afeto e pela esperança. Não pregava a violência, e nem propagava a ignorância. Pelo contrário, indignava-se com a guerra interna. E estudou com afinco, sempre, alternativas para saúvas, péssimas colheitas, fome e miséria. O Policarpo lia, e lia muito, e entendia o que lia. O problema é que não havia como transformar tanta leitura em realidade. É o eterno problema dos quixotes.

Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, para quem um índio poderia ser um europeu de tacape e sunga. Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais do Triste fim de Policarpo Quaresma.

Segundo Lima Barreto, a biblioteca do Policarpo assentava-se em estantes de ferro, perto de 10, com quatro prateleiras. Havia também pequenas prateleiras, para os livros menores. Era mais do que uma coleção de livros. Era uma homenagem ao país no qual acreditava. Na sessão de livros de ficção e de poesia o Policarpo reunia apenas autores nacionais ou reconhecidamente brasileiros: Bento Teixeira (Prosopopeia), Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias.

O Policarpo tinha todos os livros do José de Alencar, que foi quem nos explicou o Brasil, do índio ao gaúcho, no singular mesmo. Quem entende do José de Alencar é o Lira Neto, seu grande biógrafo contemporâneo (O Inimigo do Rei). Na biblioteca do Policarpo tinha-se o cânone bem comportado de uma literatura bem comportada que descrevia o Brasil bem comportadamente, com exceção do Gregório de Matos, o boca do inferno, talvez. Quem entende do Gregório de Matos é Ana Miranda, que nos deixou um delicioso romance histórico centrado nessa figura que misturava o diabólico com o serafínico, se possível essa conformação. Não havia livros do Padre Vieira na biblioteca do Policarpo. Quem entende do Padre Vieira é o Alcir Pécora (Teatro do Sacramento), um estudo essencial sobre a unidade teológico-retórico-política do grande sermonista.

A sessão de História do Brasil era completa. Havia todos os cronistas que de algum modo explicaram as singularidades de nossa terra. Estavam todos: Gabriel Soares, Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, o Padre Manoel Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (um alemão que escreveu nossa história, Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu (o cearense não poderia faltar), Southey, Varnhagen. O Policarpo lia em línguas estrangeiras também.

O Policarpo também colecionou (e leu) os viajantes que descreveram o Brasil. Havia nessa sessão o Hans Staden (o alemão que quase foi engolido pelos índios), o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães. E havia ainda Darwin (que esteve no Brasil e que se horrorizou com a escravidão), Freycinet, Cook e Bougainville. Lima Barreto nos conta que o Policarpo também tinha o livro de Pigafetta, um cronista que narrou a viagem de Fernão de Magalhães.

O Policarpo de igual modo possuía dicionários, manuais, enciclopédias e compêndios, em vários idiomas. Livros que chamamos de referência e que Lima Barreto a eles se refere como livros subsidiários. Não havia livros de Direito, talvez poque copiávamos o que europeus escreviam. Bibliotecas (reais ou imaginárias) compõem de forma definitiva uma biografia de seu proprietário, ou de seu utente. É o que se percebe na descrição que Lima Barreto fez da biblioteca do Policarpo Quaresma. Descreva-me tua biblioteca, e direi quem és.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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O dia em que queimaram a biblioteca de Dom Quixote

A queima de livros e de bibliotecas é permanente em livros que tratam de livros. Umberto Eco finalizou o “Nome da Rosa” com páginas inesquecíveis do incêndio da biblioteca do mosteiro. Burgos, o bibliotecário cego (uma homenagem a Borges) em desespero contemplava as chamas, que ameaçavam o personagem central da narrativa, William de Baskerville, que ao mesmo tempo era um homem de livros e de ação. Quixote foi um deles, a seu modo. Umberto Eco não conseguia imaginar um enredo sobre a idade média que não fosse concluído com uma fogueira imensa, destruindo uma biblioteca. Tem-se a impressão que há sempre quem queira queimar livros, recorrentemente.

Há na memória coletiva a imagem das imensas fogueiras que os nazistas organizavam, nas quais ardiam livros que combatiam, especialmente de autoria escritores judeus ou que reputavam judaizantes. Há também a lenda do incêndio da biblioteca de Alexandria. O sultão ordenou a queima dos livros contrários ao Alcorão, justamente porque contrários ao que se deveria ler. E também ordenava que se queimassem os livros que não discordassem do Alcorão, porque desnecessários.

Aqueles que amamos livros reiteradamente nos lembramos com tristeza da noite de 10 de maio de 1933, quando em Berlim cerca de 40 mil livros foram queimados. A valer-me de um neologismo de gosto duvidável, presenciou-se um bibliocausto, quando obras de autores como Sigmund Freud, Emil Ludwig e Erich Maria Remarque foram incineradas. Outros autores, como Helen Keller, Jack London, Heinrich Mann e Albert Einstein também tiveram seus livros queimados. H. G. Wells montou uma biblioteca em Paris, com exemplares desses livros que foram destruídos. Quando da invasão alemã à capital da França, os invasores teriam mantido esse edifício, que recorrentemente visitavam. Paradoxal. Os nazistas haviam proscrito cerca de 500 autores (nem todos eram judeus); bem como respectivos 4 mil livros.

A queima de livros é instância periódica na história da cultura; exemplos há de bibliotecas medievais que sucumbiram ante a sanha de incendiários do pensamento. Porém, e essa a reflexão aqui colocada, a queima dos livros não significa o desaparecimento das ideias. Pelo contrário, ainda que veiculada por livros, ideias transcendem a seus opositores e, como o lendário pássaro que renasce das cinzas, revive, sempre e efetivamente, nas revoluções que provocam. Ideias não morrem simplesmente porque os livros que as divulgaram pereceram no fogo. O assunto é dramático.

Pode-se ainda lembrar a lista dos livros proibidos que a Igreja Católica indexou na cruzada da Contrarreforma. Um ataque ao espírito científico, que afetou Galileu e tantos outros. A queima de livros é uma forma radical de censura. A escolha dos livros que serão queimados é também uma forma radical de crítica literária. Livros não são ingênuos. Servem aos mais variados propósitos. Transitam do incentivo à anarquia ao mais radical libelo totalitário. Alguns não servem para nada, o que já é uma grande serventia, justamente porque também há livros que levam à desrazão. A combinação desses elementos (crítica literária, censura, queima de livros, desrazão) é o substrato do capítulo VI da narrativa de Dom Quixote. Trata-se de um grande e gracioso escrutínio na biblioteca do cavaleiro da triste figura. É uma das partes mais encantadoras do livro.

O padre, o barbeiro, a ama e a sobrinha do Quixote serão, ao mesmo tempo, censores, críticos e incendiários. Trata-se de uma das passagens mais revolucionárias da narrativa. Cervantes ridiculariza a idade média e sua literatura e costumes na pessoa do ensandecido Dom Quixote. Ao longo do livro, em praticamente todas as passagens há nítida crítica aos valores medievais, centrados no ideal da cavalaria. O capitulo VI, mais especificamente, explicita essa crítica, de forma total.

A biblioteca do Quixote era expressiva para os referenciais da época. Contava com cerca de cem volumes dos grandes, muito bem encadernados, além de vários outros, menores, mas também bem cuidados e lidos. A ama pediu que o padre benzesse aquele aposento, onde estavam os livros, fontes de tantos problemas na vida do Quixote. O padre fixou uma metodologia de trabalho e ordenou que o barbeiro lhe passasse livro por livro. Nada escaparia de um seríssimo escrutínio. Advertiu-se que algum alfarrábio poderia escapar da fúria incendiária, desde que seu conteúdo fosse bom e proveitoso. A sobrinha retrucou, insistindo que todos os livros deveriam ser queimados. Não admitia qualquer forma de perdão ou de condescendência. Cervantes conta-nos que a sobrinha tinha uma gana de morte contra aqueles inocentes.

O padre, de algum modo mais equilibrado, queria, ao menos, ler os títulos. Começaram com a narrativa de Amadis de Gaula, que segundo o narrador fora o primeiro livro de cavalaria impresso na Espanha. Deveria ser poupado, contra o que se insurgiu o barbeiro. Afinal, por ser o primeiro livro, era o núcleo de todos os demais, a fonte de todo os problemas. Era a referência e estímulo de todos os dogmas que enlouqueceram Quixote. Deveria ir para o fogo. O barbeiro se opôs veementemente porque, por ser o melhor de todos os livros é que deveria (necessariamente) ser preservado.

Os livros que seguiram não mereceriam melhor sorte, argumentavam padre e barbeiro. Eram cópias de uma ideia original. O escrutínio alcançava todos os livros. O padre conhecia as obras, as explicava, contextualiza seus autores. O capítulo VI do Quixote é crítica literária pura, comentando-se, inclusive, dureza e secura de estilo. Cervantes inventaria os autores da época, direta ou indiretamente: Rodrigues de Montalvo, Vasco Lobeira, Antonio de Torquemada, Melchor Ortega, Alonso de Salazar, Pedro de Luján, Feliciano de Silva, e tantos outros.

Ao indicar e criticar as obras da cavalaria o livro de Cervantes fecha um ciclo, e mostra-se como o último livro da cavalaria. No entanto, e a opinião é de José Veríssimo, a sátira de Cervantes perde seu objeto, porque não se leem mais livros de cavalaria. Esse é um dos grandes enigmas desse livro encantador. Dom Quixote é permanentemente contemporâneo, ainda que seu conteúdo não alcance mais nenhum objetivo, e que a cavalaria seja apenas um capitulo de história.

Discutem o livro de Ludovico Ariosto (Orlando Furioso) escrito em italiano, e não em latim, um cânon que à época vicejava, a exemplo das obras de Dante, de Boccaccio e de Petrarca. Cansados de avaliar tantos livros resolveram mandar todos de uma vez para a fogueira. Passariam para uma outra seção da biblioteca, onde havia alguns livros sobre outros assuntos. Ama e sobrinha opinaram que também ser queimados. Quando o Quixote sarasse da loucura e os lesse, se remanescentes, louco ficaria de novo, ainda que em outros temas.  Ainda que salvo da doença cavaleiresca, era suscetível a outras influências devastadoras.

Cervantes critica a si mesmo! Inventaria na biblioteca a obra “Galatea”, de um tal Cervantes. O barbeiro se dizia seu amigo. Cervantes é definido como alguém mais versado em desgraças do que em versos. No entanto, observam os censores, o livro de Cervantes tinha algo de boa intenção, ainda que propondo algo, nada concluía. Anunciava uma segunda parte do livro (que é de 1581) que, no entanto, sabe-se que nunca foi concluída. O livro foi para a fogueira. Cervantes queimou o próprio livro! Preservaram os livros de poesia, guardados como exemplares da rica produção literária espanhola. Reconheceram que estavam cansados e resolveram queimar indistintamente os livros que faltavam.

Dos livros de cavalaria, no entanto, na opinião do crítico brasileiro José Veríssimo, o Quixote havia obtido os ideais e virtudes que a cavalaria exigia de seus modelos: sobriedade, castidade, honestidade e dedicação ilimitada. Nesse sentido, suas qualidades excediam sua loucura. Os livros ensinam, mesmo os de cavalaria, e mesmo os que provocam a desrazação, porque nunca se sabe nem mesmo o que é razão. Não sabemos nada. E também por isso não se podem queimar livros. Os que os queimam nada leram, se leram, nada aprenderam, e se aprenderam, tudo esqueceram.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.